"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

27 dezembro 2004

"A RODA DO MUNDO" - DEFINIÇÕES DE BANTO, IORUBÁ E OUTRAS CULTURAS

Da África os negros trouxeram seus costumes, religiões, trajes, técnicas e idiomas. Quer dizer, os africanos possuíam uma cultura que, através dos escravos, se transmitiu ao Brasil. Por este motivo é que encontramos tantas influências africanas em diversas regiões brasileiras e mesmo algumas contribuições que se estenderam a todo o país. Tal é o caso do samba, dança de origem congo-angolana e que se transformou em um ritmo nacional.

Como os escravos provinham de regiões diversas, também diferentes eram as suas culturas. Os povos de cultura mais adiantados, eram principalmente os dos grupo iorubá. É o caso dos povos que vieram da Nigéria, do Daomé e de Gana. Estes falavam nagô, língua que deixou numerosas palavras no português que falamos no Brasil. Também influenciaram na culinária, especialmente nos pratos da cozinha baiana, como o vatapá, o caruru,o acarajé e o uso do azeite-de-dendê. Como os escravos iorubanos já conheciam o emprego dos metais, sua contribuição foi muito importante na atividade mineradora. Outra influência muito importante e bastante espalhada no Brasil é a que se exerceu sobre os cultos religiosos, os quais aqui, notadamente nas camadas mais humildes da população, resultam da mistura de crenças africanas e cristãs. No filme O Pagador de Promessas, o personagem principal acreditava que Santa Bárbara e Iansã, divindade africana, eram uma só pessoa. O mesmo aconteceu com outros santos da Igreja Católica, que os escravos procuravam confundir com os seus orixás ou deuses.

A festa, bastante popular, em que se distribuem doces às crianças no dia dos santos Cosme e Damião tem origem africana. O costume veio da confusão entre esses santos cristãos e os orixás chamados Ibejis, que protegiam as crianças.

Entre os grupos sudaneses havia alguns que se converteram à religião maometana. São os de cultura negro-maometana e, por isso, muito influenciados pelos árabes. É o caso do traje conhecido como baiana, onde o turbante, os balangandãs, o pano-da-costa indicam contribuições árabes.

Outro grupo muito importante foi o banto. Era formado pelos negros vindos de Angola, Moçambique e do Congo. Além de outras contribuições, eles trouxeram o samba, o batuque, instrumentos musicais, o esporte da capoeira e numerosas palavras.

Foi por influência africana que vários termos e expressões vieram enriquecer a nossa língua. Tal é o caso de caçula, indicando o filho mais moço; careca, mais usado do que o português calvo, ou, cochilar, que praticamente substituiu dormitar.
Enciclopédia Delta de História do Brasil, de Colônia a Nação, vol.6. pág. 1502-1503.

BANTO:
Conjunto de populações da África sul-equatorial (com exceção dos bosquímanos e dos hotentotes), de línguas da mesma família, mas com traços culturais específicos (na África do Sul todos os povos negros são chamados banto, em oposição aos brancos, coloreds e asiáticos). Numerosos foi o contingente de escravos bantos trazidos para o Brasil. A influência por eles exercida sobre costumes, religião e superstições nacionais foi profunda e marcante. Trouxeram muitas lendas, mitos e tradições; sua contribuição folclórica e etnográfica frutificou e reforçou os elementos já existentes no Brasil, através de sua participação entusiástica e predileção viva pelo canto e dança coletivos. Os indígenas também possuíam esse encanto pelas danças de roda, instrumentos de sopro e cantos, mas o negro valorizou essas constantes no seio da sociedade em formação. Não é, pois, privativo e originário do africano tudo quanto recebemos por seu intermédio, mas indubitavelmente foi ele precursor mais poderoso e decisivo, depois do português. O nome bantos compreendia todos os negros africanos que outrora abasteciam o mercado de escravos do Brasil. Sua popularidade afirmou-se no século XVII, nas agremiações e irmandades de Nossa Senhora do Rosário, quando os negros passaram a tomar parte ativa nos autos populares. São bantos os préstitos do maracatu do carnaval pernambucano e as congadas vistas em todo o território brasileiro. A cuíca e o berimbau-de-barriga foram por eles trazidos da África; a capoeira, tanto quanto o complexo etnográfico do samba, também deve a eles sua difusão no Brasil. O ciclo do quibungo, circunscrito à zona litorânea da Bahia, é exemplo de sua contribuição à tradição oral brasileira.
Grande Enciclopédia Larousse Cultural, vol. 3. pág. 631-632

17 dezembro 2004

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PSICOLOGIA DO ESCOLAR

Temos uma sensação esquisita, quando, já na idade madura, mais uma vez recebemos ordem de fazer uma redação escolar. Mas obedecemos automaticamente, como o velho soldado que, a voz de ‘Sentido!’, deixa cair o que tiver nas mãos e se surpreende com os dedos mínimos apertados de encontro às costuras das calças. É estranho como obedecemos às ordens prontamente, como se nada de particular houvesse acontecido no último meio- século. Mas, na realidade, ficamos velhos nesse intervalo, estamos às vésperas do nosso sexagésimo aniversário e as nossas sensações físicas, bem como o espelho, mostram inequivocamente quanto vela de nossa vida já se queimou.
Talvez há dez anos atrás, pudéssemos ter tido ainda momentos em que, de repente, nos sentíamos novamente jovens. Caminhando pelas ruas de Viena – já de barbas grisalhas e vergados por todas as preocupações da vida familiar – podíamos encontrar inesperadamente algum cavalheiro idoso e bem conservado, ao qual saudávamos quase humildemente, porque o reconhecêramos como um de nossos antigos professores. Mas depois parávamos e refletíamos: ‘Seria realmente ele? Ou apenas alguém muito semelhante? Como parece jovem! E como estamos velhos! Que idade poderá ter hoje? Será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, sejam realmente tão pouco mais velhos que nós?’
Em momentos como esse, costumava achar que o tempo presente parecia mergulhar na obscuridade e os anos entre os dez e os dezoito surgiam dos escaninhos da memória, com todas as suas conjeturas e ilusões, suas deformações dolorosas e seus incentivadores sucessos – meus primeiros vislumbres de uma civilização extinta (que, no meu caso, deveria trazer-me tanta compensação quanto tudo o mais nas lutas da vida), meus primeiros contatos com as ciências, entre as quais me parecia aberta a escolha daquela à qual dedicaria os meus indubitavelmente inestimáveis serviços. E pareço relembrar que, durante todo esse tempo, tinha a premonição de uma tarefa futura, até que esta encontrou expressão manifesta na minha redação de despedida da escola, como um desejo de que pudesse, no decurso de minha vida, contribuir com algo para o nosso conhecimento humano.
Mais tarde tornei-me médico – ou antes, psicólogo – e pude criar uma nova disciplina psicológica, conhecida como ‘psicanálise’, que desperta atualmente um interesse excitado e é acolhida com louvores e ataques por médicos e investigadores de países vizinhos e terras distantes e estrangeiras – menos, naturalmente, em nosso próprio país.
Como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente que pela consciente. Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituia uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores. Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos – porque não admitir outros tantos? – ela foi por causa disso definitivamente bloqueada.
Nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas, imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam, estudávamos seus caráteres e sobre estes formávamos ou deformávamos os nossos. Eles provocavam nossa mais enérgica oposição e forçavam-nos a uma submissão completa; bisbilhotávamos suas pequenas fraquezas e orgulhávamos-nos de sua excelência, seu conhecimento e sua justiça. No fundo, sentíamos grande afeição por eles, se nos davam algum fundamento para ela, embora não possa dizer quantos se davam conta disso. Mas não se pode negar que nossa posição em relação a eles era notável, uma posição que bem pode ter tido sua inconveniências para os interessados. Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e a respeitá-los. A psicanálise deu nome de ‘ambivalência’ a essa facilidade para atitudes contraditórias e não tem dificuldade em indicar a fonte de sentimentos ambivalentes desse tipo.
A psicanálise nos mostrou que as atitudes emocionais dos indivíduos para com outras pessoas que são de tão extrema importância para o seu comportamento posterior, já estão estabelecidas numa idade surpreendentemente precoce. A natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de sua vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções mas não pode mais livrar-se delas. As pessoas a quem se acha assim ligada são os pais e irmãos e irmãs. Todos que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos. (Deveríamos talvez acrescentar aos pais algumas outras pessoas como babás, que dela cuidaram na infância) Essas figuras substitutas podem classificar-se do ponto de vista da criança, segundo provenham do que chamamos as ‘imagos’, do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, e assim por diante. Seus relacionamentos posteriores são assim obrigados a arcar com uma espécie de herança emocional, defrontam-se com simpatias e antipatias para cuja produção esses próprios relacionamentos pouco contribuíram. Todas as escolhas posteriores de amizade e amor seguem a base das lembranças deixadas por esses primeiros protótipos.
De toda as imagens (imagos de uma infância que, via de regra, não é mais recordada, nenhuma é mais importante para um jovem ou um homem que a do pai. A necessidade orgânica introduz na relação de um homem com o pai uma ambivalência emocional que encontramos expressa de forma mais notável no mito grego do rei Édipo. Um rapazinho esta fadado a amar e a admirar o pai, que lhe parece ser a mais poderosa, bondosa e sábia criatura do mundo. O próprio Deus, em última análise, é apenas uma exaltação dessa imagem do pai, tal como é representado na mente durante a mais tenra infância. Cedo, porém, surge o outro lado da relação emocional. O pai identificado como o perturbador máximo da nossa vida instintiva; torna-se um modelo não apenas a ser imitado, mas também a ser eliminado para que possamos tomar o seu lugar. Daí em diante, os impulsos afetuosos e hostis para com ele persistem lado a lado, muitas vezes, até o fim da vida, sem que nenhum deles seja capaz de anular o outro. É nessa existência concomitante de sentimentos contrários que reside o caráter essencial daquilo que chamamos de ambivalência emocional.
Na segunda metade da infância, dá-se uma mudança na relação do menino com o pai – mudança cuja importância não pode ser exagerada. De seu quarto de criança, o menino começa a vislumbrar o mundo exterior e não pode deixar de fazer descobertas que solapam a alta opinião original que tinha sobre o pai e que apressam o desligamento de seu primeiro ideal. Descobre que o pai não é mais poderoso, sábio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a criticá-lo, a avaliar o seu lugar na sociedade; então; em regra, faz com que ele pague pesadamente pelo desapontamento que lhe causou. Tudo que há de admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai.
É nessa fase do desenvolvimento de um jovem que ele entra em contato com os professores, de maneira que agora podemos entender a nossa relação com eles. Estes homens, nem todos pais na realidade, tornaram-se nossos pais substitutos. Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-nos como tão maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferidos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa. Confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido em nossas próprias famílias, e, ajudados por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com os nossos pais em carne e osso. A menos que levemos em consideração nossos quartos de crianças e nossos lares, nosso comportamento para com os professores seria não apenas incompreensível, mas também indesculpável.
Como escolares, tivemos outras e um pouco menos importantes experiências com os sucessores de nossos irmãos e irmãs – nossos colegas de escola – mas estas devem ser descritas em outra oportunidade. Numa comemoração do jubileu de nossa escola, é aos professores que nossos pensamentos devem ser dirigidos.
Sigmund Freud. Volume XIII

11 dezembro 2004

"JUDAS, O OBSCURO", DRAMA E TRAGÉDIA DE NOSSA CIVILIZAÇÃO

É indiscutível que o século XIX e o XX vão ambos ficar caracterizados, literariamente, pelo predomínio quase absoluto do romance como gênero literário. Ora, dentro do romance, também é fora de dúvida que a Inglaterra não cede um passo a França na luta pela primazia mundial. Ainda seguindo o mesmo critério de excelência, ninguém negará que, na Inglaterra, Thomas Hardy pertence a uma categoria absolutamente ímpar, junto com Dickens, Meredith, Falsworthy, Lawrence e alguns poucos outros. E com mais certeza ainda se poderá afirmar que, na obra de Thomas Hardy, nenhum romance pode disputar a primazia a “Judas, o Obscuro”.

Resulta, portanto, de tudo isso, que este romance é, inegavelmente, uma das maiores obras-primas que a humanidade possui e um dos livros que mais fielmente podem refletir o drama ou a tragédia que a nossa civilização vive. Toda a problemática do homem moderno, na sua vida íntima, aí está refletida, graças à extraordinária sensibilidade e ao excepcional poder criador de perfeitas incarnações do homem sensível e delicado, bom e puro, que a máquina impiedosa das convenções sociais e dos egoísmos individuais não hesita em esmagar, sem nem sequer desconfiar da desgraça que está ocasionando. Mas, que pode ele fazer senão ser ele mesmo? E pode ela fazer senão ser ela mesma? Judas não só não conseguirá construir o seu futuro, realizar os sonhos de infância, como nada poderá fazer contra o seu destino de perseguido e de eterno ignorado. Desconhecido, incompreendido, enganado, só poderá responder aos golpes da vida com a pureza do seu gesto, tantas vezes repetido, de desvendar inutilmente aos olhos de todos o seu coração de homem. Os que o rodeiam viram então a face, porque suas feridas ferem a eles próprios. Não o compreende, na cegueira dos seus pequenos preconceitos de mulher conscientemente inteligente demais para o seu meio, a criatura que ama e amará a vida interia acima de todas as coisas. E a outra é só mentiras e engodo. Uma e outra dele só se aproximarão para reforçar, de um dos modos mais trágicos a que já nos foi dado assistir, o grito lancinante do poeta contra a mulher: “Tu n’es jamais la soeur de charité, jamais!”.

Por outro lado, o que torna ainda maior e mais classicamente trágico “Judas, o Obscuro” é que essa verdadeira Biografia de um fracassado foi escrita por um dos homens que mais profunda e mais delicada, mais piedosamente, souberam se inclinar sobre o sofrimento humano. Poucos livros serão mais tristes – amargo, nas suas páginas finais, com poucos livros terão sido amargos. Poucos possuem, em tão alto grau, o sentido da tragédia humana, no que ela tem de mais absolutamente insolúvel e eterno. Acompanhando Judas, passo a passo, no seu terrível calvário, é o próprio homem que Thomas Hardy acompanha. É o Absoluto que se atinge, através dessa experiência de homem, e de homem em luta com as realidades sociais de usa época. E é por isso que o valor da obra me parece inexcedível, como inexcedível é a sua importância para a nossa experiência individual.
Octávio de Faria – Tradutor do romance – Judas, o Obscuro – de Thomas Hardy, em Nota Preliminar – ed. Itatiaia – 1958.

29 novembro 2004

A COR DA PELE - COMPREENDENDO A POESIA DO LIVRO A "A RODA DO MUNDO"

O elemento negro no poema não é produto da ornamentação vocabular, o que apenas denotaria certo exotismo tão ao gosto de poetas de linha romântica. O negro como produto da ornamentação vocabular acaba por dar origem a uma poesia (...) que é ‘macumba prá turista’. (...) O elemento negro no poema, íntimo ou histórico, social ou racial, é antes sujeito ou objeto de reflexão do que arabesco de decoração. Enquanto reflexão, apela para a consciência crítica do leitor e para a revolta contra o estado passado e presente.
Para o poeta negro a cor do vocabulário não tem importância, ou não tem importância que a ela emprestam os ‘estudiosos brancos’ da questão negra nos trópicos.
O homem se descobre negro na tessitura da pele, e nesta vê as marcas da escravidão e do degredo, e sente os sofrimentos e a Mãe-Africa.
A cor do vocabulário importa para o folclorista, o antropólogo e o poeta branco. São estes que visam a preservar através de um discurso condescendente, piedoso, cientifico e reparador, os crimes e injustiças cometidas pelos próprios brancos contra os negros, e acrescentemos: contra os índios. São ele que insistem em guardar as relíquias da destruição, num desejo de preservação póstuma por parte da cultura branca dominante.
O poeta negro sabe mais do que a cor das palavras e o valor das relíquias póstumas.
A cor da pele é marca indelével que não se apaga com os bons sentimentos humanitários ou patrióticos, nem com a política paternalista dos governadores ou populistas de oposição. Por isso é que o elemento negro não é relíquia ou simples vocábulo (...).
As referências culturais são vagas e apagadas para o negro no Brasil, ao contrário do que acreditam os nossos cientistas sociais, imbuídos da teoria do mulato tropical. "sua voz fálida/ pelas portas adentro". Tão vagas e apagadas são que elas apenas servem para construir o "preto de alma branca".

Constituído para não ser, o negro teve de incorporar os valores brancos, dados como positivos, para poder aparecer sócio - economicamente. A alma branca é a aparência que resguarda o negro da violência e do anonimato e que baliza as suas ações comedidas e mesquinhas, controladas. Combatendo as falsas aparências, Adão insiste para com que o negro assuma a sua alma negra e vire o que é na pele, um negro, buscando assim uma identidade que escapa às pressões da sociedade cordial.

Nomear o aviltamento do negro pela escravidão é a única maneira de poder construir o negro como não ser no passado e como identidade social a ser construída no presente. Tudo isso sem as peias da ideologia da cordialidade.

Vale Quanto Pesa – A cor da Pele – Silviano Santiago – Paz e Terra – pág. 121-125

16 novembro 2004

AS IDÉIAS FORA DO LUGAR - UM ENSAIO PARA SE ENTENDER MELHOR O LIVRO "MINHA FORMAÇÃO" DE JOAQUIM NABUCO


Roberto Schwartz
Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos princípios da Economia Política é o trabalho livre. Ora, no Brasil domina o fato "impolítico e abominável" da escravidão.
Este argumento – resumo de um panfleto liberal, contemporâneo de Machado de Assis – põe fora o Brasil do sistema da ciência. Estávamos aquém da realidade a que esta se refere; éramos antes um fato moral, "impolítico e abominável". Grande degradação, considerando-se que a ciência eram as Luzes, o Progresso, a Humanidade etc. Para as artes, Nabuco expressa um sentimento comparável quando protesta contra o assunto escravo no teatro de Alencar: "Se isso ofende o estrangeiro, como não humilha o brasileiro!". Outros autores naturalmente fizeram o raciocínio inverso. Uma vez que não se referem à nossa realidade, ciência econômica e demais ideologias liberais e que são, elas sim, abomináveis, impolíticas e estrangeiras, além de vulneráveis. "Antes bons negros da costa da África para felicidade sua e nossa, a despeito de toda a mórbida filantropia britânica, que, esquecida de sua própria casa, deixa morrer de fome o pobre irmão branco, escravo sem senhor que dele se compadeça, e hipócrita ou estólida chora, exposta ao ridículo da verdadeira filantropia, o fado de nosso escravo feliz".
Cada um a seu modo, estes autores refletem a disparidade entre a sociedade brasileira, escravista, e as idéias do liberalismo europeu. Envergonhando a uns, irritando a outros, que insistem na sua hipocrisia, estas idéias – em que gregos e troianos não reconhecem o Brasil – são referências para todos. Sumariamente está montada uma comédia ideológica, diferente da européia. É claro que a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às aparências, encobrindo o essencial a exploração do trabalho. Entre nós, as mesmas idéias seriam falsas num sentido diverso, por assim dizer, original. A Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo, transcrita em parte na Constituição Brasileira de 1824, não só não escondia nada, como tornava mais abjeto o instituto da escravidão. A mesma coisa para a professada universalidade dos princípios, que transformava em escândalo a prática geral do favor. Que valiam, nestas circunstâncias, as grandes abstrações burguesas que usávamos tanto? Não descreviam a existência – mas nem só disso vivem as idéias. Refletindo em direção parecida, Sérgio Buarque observa: "Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão do mundo e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa terra". Essa impropriedade de nosso pensamento, que não é acaso, como se verá, foi de fato uma presença assídua, atravessando e desequilibrando, até no detalhe, a vida ideológica do Segundo Reinado. Freqüentemente inflada, ou rasteira, ridícula, ou crua, e só raramente justa no tom, a prosa literária do tempo é uma das muitas testemunhas disso.
Embora sejam lugar-comum em nossa historiografia, as razões desse quadro foram pouco estudadas em seus efeitos. Como é sabido, éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro do mercado externo. Mais ou menos diretamente, vêm daí as singularidades que expusemos. Era inevitável, por exemplo, a presença entre nós do raciocínio econômico burguês – a prioridade do lucro, com seus corolários sociais – uma vez que dominava no comércio internacional, para onde a nossa economia era voltada. A prática permanente das transações escolava, neste sentido, quando menos uma pequena multidão. Além do que, havíamos feito a Independência há pouco, em nome de idéias francesas, inglesas e americanas, variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais, viver com eles. No plano, das convicções, a incompatibilidade é clara, e já vimos exemplos. Mas também no plano prático ela se fazia sentir. Sendo uma propriedade, um escravo pode ser vendido, mas não despedido. O trabalhador livre, nesse ponto, dá mais liberdade seu patrão, além de imobilizar menos, capital. Este aspecto – um entre muitos – indica o limite que a escravatura opunha à racionalização produtiva. Comentando o que vira numa fazenda, um viajante escreve: "não há especialização do trabalho, porque se procura economizar a mão-de-obra". Ao citar a passagem, Fernando Henrique Cardoso observa que "economia" não se destina aqui, pelo contexto, a fazer o trabalho num mínimo de tempo, mas num máximo. É preciso espichá-lo, a fim de encher e disciplinar o dia do escravo. O oposto exato do que era moderno fazer. Fundada na violência e na disciplina militar, a produção escravista dependia da autoridade, mais que da eficácia. O estudo racional do processo produtivo, assim como a sua modernização continuada, com todo o prestígio que lhes advinha da revolução que ocasionavam na Europa, eram sem propósito no Brasil. Para complicar ainda o quadro, considere-se que o latifúndio escravista havia sido na origem um empreendimento do capital comercial, e que portanto o lucro fora desde sempre o seu pivô. Ora, o lucro como prioridade subjetiva e comum às formas antiquadas do capital e às mais modernas. De sorte que os incultos e abomináveis escravistas até certa data – quando esta forma de produção veio a ser menos rentável que o trabalho assalariado – foram no essencial, capitalistas mais conseqüentes do que nossos defensores de Adam Smith, que no capitalismo achavam antes que tudo a liberdade. Está-se vendo que para a vida intelectual o nó estava armado. Em matéria de racionalidade, os papéis se embaralhavam e trocavam normalmente: a ciência era fantasia e moral, o obscurantismo era realismo e responsabilidade, a técnica não era prática, o altruísmo implantava a mais-valia etc. E, de maneira geral, na ausência do interesse organizado da escravaria, o confronto entre humanidade e inumanidade, por justo que fosse, acabava encontrando uma tradução mais rasteira no conflito entre dois modos de empregar os capitais do qual era a imagem que convinha a uma das partes.
Impugnada a todo instante pela escravidão a ideologia liberal, que era a das jovens nações emancipadas da América, descarrilhava. Seria fácil deduzir o sistema de seus contra-sensos, todos verdadeiros, muitos dos quais agitaram a consciência teórica e moral de nosso século XIX. Já vimos uma coleção deles. No entanto, estas dificuldades permaneciam curiosamente inessenciais. O teste da realidade não parecia importante.
É como se coerência e generalidade não pesassem muito, ou como se a esfera da cultura ocupasse uma posição alterada, cujos critérios fossem outros – mas outros em relação a quê? Por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das idéias liberais; o que entretanto é menos que orientar-lhes o movimento. Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo da vida ideológica. A chave desta era diversa. Para descrevê-la é preciso retomar o país como todo. Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o "homem livre", na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários seu acesso à vida e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida, em conseqüência, por este mesmo mecanismo. Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre á relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção européia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto. O favor é a nossa mediação quase universal – e sendo mais simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência, que sempre reinou na esfera da produção.
O escravismo desmente as idéias liberais; mais insidiosamente o favor, tão incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e desloca, originando um padrão, particular. O elemento de arbítrio, o jogo fluido de estima e auto-estima a que o favor submete o interesse material, não podem ser integralmente racionalizados. Na Europa, ao atacá-los, o universalismo visara o privilégio feudal. No processo de sua afirmação histórica, a civilização burguesa postulara a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho etc. contra as prerrogativas do Ancien Regime. O favor, ponto por ponto, pratica a dependência dá da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração, e serviços pessoais. Entretanto, não estávamos para a Europa como o feudalismo para o capitalismo, pelo contrário, éramos seus tributários em toda linha, além de não termos sido propriamente feudais – a colonização é um feito do capital comercial. No fastígio em que estava ela, Europa, e na posição relativa em que estávamos nós, ninguém no Brasil teria a idéia e principalmente a força de ser, digamos, um Kant do favor, para bater-se contra o outro. De modo que o confronto entre esses princípios tão antagônicos resultava desigual: no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou melhor, adotávamos sofregamente os que a burguesia européia tinha elaborado contra arbítrio e escravidão; enquanto na prática, geralmente dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o favor reafirmava sem descanso os sentimentos e as noções em que implica. O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia e justiça, que embora regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do estado burguês moderno. Além dos naturais debates, este antagonismo produziu, portanto, uma coexistência estabilizada – que interessa estudar. Aí a novidade: adotadas as idéias e razões européias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente "objetiva", para o momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo de existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas. Esta recomposição e capital. Seus efeitos são muitos, e levam longe em nossa literatura. De ideologia que havia sido – isto é, engano involuntário e bem fundado nas aparências – o liberalismo passa, na falta de outro termo, a penhor intencional duma variedade de prestígios com que nada tem a ver. Ao legitimar o arbítrio por meio de alguma razão "racional", o favorecido conscientemente engrandece a si e ao seu benfeitor, que por sua vez não vê, nessa era de hegemonia das razões, motivo para desmenti-lo. Nestas condições, quem acreditava na justificação? A que aparência correspondia? Mas justamente, não era este o problema, pois todos reconheciam – e isto sim era importante – a intenção louvável, seja do agradecimento, seja do favor. A compensação simbólica podia ser um pouco desafinada, mas não era mal­agradecida. Ou por outra, seria desafinada em relação ao Liberalismo, que era secundário, e justa em relação ao favor, que era principal. E nada melhor, para dar lustre às pessoas e à sociedade que formam, do que as idéias mais ilustres do tempo, no caso as européias. Neste contexto, portanto, as ideologias não descrevem sequer falsamente a realidade, e não gravitam segundo uma lei que lhes seja própria – por isso as chamamos de segundo grau. Sua regra é outra, diversa da que denominam; é da ordem do relevo social, em detrimento de sua intenção cognitiva e de sistema. Deriva sossegadamente do óbvio, sabido de todos – da inevitável "superioridade" da Europa – e liga-se ao momento expressivo, de auto-estima e fantasia, que existe no favor. Neste sentido dizíamos que o teste da realidade e da coerência não parecia, aqui, decisivo, sem prejuízo de estar sempre presente como exigência reconhecida, evocada ou suspensa conforme a circunstância. Assim, com método, atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio etc. Combinando-se à prática de que, em princípio, seria a crítica, o Liberalismo fazia com que o pensamento perdesse o pé. Retenha-se no entanto, para analisarmos depois, a complexidade desse passo: ao tornarem-se despropósito, estas idéias deixam também de enganar.
É claro que esta combinação foi uma entre outras. Para o nosso clima ideológico, entretanto, foi decisiva, além de ser aquela em que os problemas se configuram da maneira mais completa e diferente. Por agora bastem alguns aspectos. Vimos que nela as idéias da burguesia – cuja grandeza sóbria remonta ao espírito público e racionalista da Ilustração- tomam função de ... ornato e marca de fidalguia: atestam e festejam a participação numa esfera augusta, no caso a da Europa que se ... industrializa. O qüiproquó das idéias não podia ser maior. A novidade no caso não está no caráter ornamental de saber e cultura, que é da tradição colonial e ibérica; está na dissonância propriamente incrível que ocasionam o saber e a cultura de tipo "moderno" quando postos neste contexto. São inúteis como um berloque? São brilhantes como uma comenda? Serão a nossa panacéia? Envergonham-nos diante do mundo? O mais certo é que nas idas e vindas de argumento e interesse todos estes aspectos tivessem ocasião de se manifestar, de maneira que na consciência dos mais atentos deviam estar ligados e misturados. Inextricavelmente, a vida ideológica degradava e condecorava os seus participantes, entre os quais muitas vezes haveria clareza disso. Tratava-se, portanto, de uma combinação instável, que facilmente degenerava em hostilidade e crítica as mais acerbas. Para manter-se precisa de cumplicidade permanente, cumplicidade que a prática do favor tende a garantir. No momento da prestação e da contraprestação – particularmente no instante-chave do reconhecimento recíproco – a nenhuma das partes interessa denunciar a outra, tendo embora a todo instante os elementos necessários para fazê-lo. Esta cumplicidade sempre renovada tem continuidades sociais mais profundas, que lhe dão peso de classe: no contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes, em especial à mais fraca, de que nenhuma e escrava. Mesmo o mais miserável dos favorecidos via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma. Lastreado pelo infinito de dureza e degradação que esconjurava – ou seja a escravidão, de que as duas partes beneficiam e timbram em se diferençar – este reconhecimento é de uma conivência sem fundo, multiplicada, ainda, pela adoção do vocabulário burguês da igualdade, do mérito, do trabalho; da razão. Machado de Assis será mestre nestes meandros. Contudo veja-se também outro lado. Imersos que estamos, ainda hoje, no universo do Capital, que não chegou a tomar forma clássica no Brasil, tendemos a ver esta combinação como inteiramente desvantajosa para nós, composta só de defeitos. Vantagens não há de ter tido; mas para apreciar devidamente a sua complexidade considere-se que as idéias da burguesia, a princípio voltadas contra o privilégio, a partir de 1848 se haviam tornado apologética: a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a universalidade disfarça antagonismos de classe. Portanto, para bem lhe reter o timbre ideológico é preciso considerar que o nosso discurso impróprio era oco também quando usado propriamente. Note-se, de passagem, que este padrão iria repetir-se no séc. XX, quando por várias vezes juramos, crentes de nossa modernidade, segundo as ideologias mais rotas da cena mundial. Para a literatura, como veremos, resulta daí um labirinto singular, uma espécie de oco dentro do oco. Ainda aqui, Machado será o mestre.
Em suma, se insistimos no viés que escravismo e favor introduziram nas idéias do tempo, não foi para as descartar, mas para descrevê-las enquanto enviesadas, – fora de centro em relação à exigência que elas mesmas propunham, e reconhecivelmente nossas, nessa mesma qualidade. Assim, posto de parte o raciocínio sobre as causas, resta na experiência aquele "desconcerto" que foi o nosso ponto de partida: a sensação que o Brasil dá de dualismo e factício – contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, - anacronismos, contradições, conciliações e o que for – combinações que o Modernismo, o Tropicalismo e a Economia Política nos ensinaram a considerar. Não faltam exemplos. Vejam-se alguns, menos para analisá-los, que para indicar a ubiqüidade do quadro e a variação de que é capaz. Nas revistas do tempo, sendo grave ou risonha, a apresentação do número inicial é composta para baixo e falsete: primeira parte, afirma-se o propósito redentor da imprensa, na tradição de combate da Ilustração; a grande seita fundada por Gutenberg afronta a indiferença geral, nas alturas o condor e a mocidade entrevêem o futuro, ao mesmo tempo que repelem o passado e os preconceitos, enquanto a tocha regeneradora do Jornal desfaz as trevas da corrupção. Na segunda parte, conformando-se às circunstâncias, as revistas declaram a sua disposição cordata, de "dar a todas as classes em geral e particularmente à honestidade das famílias, um meio de deleitável instrução e de ameno recreio". A intenção emancipadora casa-se com charadas, união nacional, figurinos, conhecimentos gerais e folhetins Caricatura desta seqüência são os versinhos que servem de epígrafe à Marmota na Corte: "Eis a Marmota/ Bem variada/ P’ra ser de todos/ Sempre estimada.// Fala a verdade,/ Diz o que sente,/ Ama e respeita/ A toda gente." Se, noutro campo, raspamos um pouco os nossos muros, mesmo efeito de coisa compósita: "A transformação arquitetônica era superficial. Sobre as paredes de terra, erguidas por escravos, pregavam-se papéis decorativos europeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a criar a ilusão de um ambiente novo, como os interiores das residências dos países em industrialização. Em certos exemplos, o fingimento atingia o absurdo: pintavam-se motivos arquitetônicos greco-romanos – pilastras, arquitraves, colunatas, frisas etc. – com perfeição de perspectiva e sombreamento, sugerindo urna ambientação neoclássica jamais realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local. Em outros, pintavam-se janelas nas paredes, com vistas sobre ambientes do Rio de Janeiro, ou da Europa, sugerindo um exterior longínquo, certamente diverso do real, das senzalas, escravos e terreiros de serviço". O trecho refere-se a casas rurais na Província de São Paulo, segunda metade do séc. XIX. Quanto à corte: "A transformação atendia à mudança dos costumes, que incluíam agora o uso de objetos mais refinados, de cristais, louças e porcelanas, e formas de comportamento cerimonial, como maneiras formais de servir à mesa. Ao mesmo tempo conferia ao conjunto, que procurava reproduzir a vida das residências européias, uma aparência de veracidade. Desse modo, os estratos sociais que mais benefícios tiravam de um sistema econômico baseado na escravidão e destinado exclusivamente à produção agrícola procuravam criar, para seu uso, artificialmente, ambientes com características urbanas e européias, cuja operação exigia o afastamento dos escravos e onde tudo ou quase tudo era produto de importação". Ao vivo esta comédia está nos notáveis capítulos iniciais do Quincas Borba. Rubião, herdeiro recente, é constrangido a trocar o seu escravo crioulo por um cozinheiro francês e um criado espanhol, perto dos quais não fica à vontade. Além de ouro e prata, seus metais do coração, aprecia agora as estatuetas de bronze – um Fausto e um Mefistófeles – que são também de preço. Matéria mais solene, mas igualmente marcada pelo tempo, é a letra de nosso hino à República, escrita em 1890, pelo poeta decadente Medeiros e Albuquerque. Emoções progressistas a que faltava o natural: "Nós nem cremos que escravos outrora /Tenha havido em tão nobre país!" (outrora é dois anos antes, uma vez que a Abolição é de 88). Em 1817, numa declaração do governo revolucionário de Pernambuco, mesmo timbre, com intenções opostas: "Patriotas, vossas propriedades inda as mais opugnantes ao ideal de justiça serão sagradas". Refere-se aos rumores de emancipação, que era preciso desfazer, para acalmar os proprietários. Também a vida de Machado de Assis é um exemplo, na qual se sucedem rapidamente o jornalista combativo, entusiasta das "inteligências proletárias, das classes ínfimas", autor de crônicas e quadrinhas comemorativas, por ocasião do casamento das princesas imperiais, e finalmente o Cavaleiro e mais tarde Oficial da Ordem. da Rosa. Contra isso tudo vai sair a campo Sylvio Romero. "É mister fundar uma nacionalidade consciente de seus méritos e defeitos, de sua força e de seus delíquios, e não arrumar um pastiche, um arremedo de judas das festas populares que só serve para vergonha nossa aos olhos do estrangeiro. (...) Só um remédio existe para tamanho desideratum: – mergulharmo-nos na corrente vivificante das idéias naturalistas e monísticas, que vão transformando o velho mundo". À distancia é tão clara que tem graça a substituição de um arremedo por outro. Mas é também dramática, pois assinala quanto era alheia a linguagem na qual se expressava, inevitavelmente, o nosso desejo de autenticidade. Ao pastiche romântico iria suceder o naturalista. Enfim, nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a mesma composição "arlequinal", para falar com Mário de Andrade: o desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser o seu contexto. – Consolidada por seu grande papel no mercado internacional, e mais tarde na política interna, a combinação de latifúndio e trabalho compulsório atravessou impávida a Colônia, Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República, e hoje mesmo é matéria de controvérsia e tiros. O ritmo de nossa vida ideológica, no entanto, foi outro, também ele determinado pela dependência do país: à distância acompanhava os passos da Europa. Note-se, de passagem, que é a ideologia da independência que vai transformar em defeito esta combinação; bobamente, quando insiste na impossível autonomia cultural, e profundamente, quando reflete sobre o problema. Tanto a eternidade das relações sociais de base quanto a lepidez ideológica das "elites" eram parte a parte que nos toca - da gravitação deste sistema por assim dizer solar, e certamente internacional, que é o capitalismo. Em conseqüência, um latifúndio pouco modificado viu passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista, modernista e outras, que na Europa acompanharam e refletiram transformações imensas na ordem social. Seria de supor que aqui perdessem a justeza, o que em parte se deu: No entanto, vimos que e inevitável este desajuste, ao qual estávamos condenados pela máquina do colonialismo, e ao qual, para que já fique indicado o seu alcance mais que nacional, estava condenada a mesma máquina quando nos produzia. Trata-se enfim de segredo mui conhecido, embora precariamente teorizado. Para as artes, no caso, a solução parece mais fácil, pois sempre houve modo de adorar, citar, macaquear, saquear, adaptar ou devorar, estas maneiras e modas todas, de modo que refletissem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos reconhecemos. Mas, voltemos atrás. Em resumo, as idéias liberais não se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis. Foram postas numa constelação especial, uma constelação prática, a qual formou sistema e não deixaria de afetá-las. Por isso, pouco ajuda insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é acompanhar-lhes o movimento, de que ela, a falsidade, é parte verdadeira. Vimos o Brasil, bastião da escravatura, envergonhado diante delas – as idéias mais adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já vinha à ordem do dia – e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de modernidade e distinção. E naturalmente foram revolucionárias quando pesaram no Abolicionismo. Submetidas à influência do lugar, sem perderem as pretensões de origem, gravitavam segundo uma regra nova, cujas graças, desgraças, ambigüidades e ilusões eram também singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e praticados por todos como uma espécie de fatalidade, para os quais, entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era a sua natureza. Largamente sentido como defeito bem conhecido, más pouco pensado, este sistema de impropriedades decerto rebaixava o cotidiano da vida ideológica e diminuía as chances da reflexão. Contudo facilitava o ceticismo em face das ideologias, por vezes bem completo e descansado, e compatível aliás com muito verbalismo. Exacerbado um nadinha, dará na força espantosa da visão de Machado de Assis. Ora, o fundamento deste ceticismo não está seguramente na exploração refletida dos limites do pensamento liberal. Está, se podemos dizer assim, no ponto de partida intuitivo, que nos dispensava do esforço. Inscritas num sistema que não descrevem nem mesmo em aparência, as idéias da burguesia viam infirmada já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que elas próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de arbítrio e favor. Abalava-se na base a sua intenção universal. Assim, o que na Europa seria verdadeira façanha da critica, entre nós podia ser a singela descrença de qualquer pachola, para quem utilitarismo, egoísmo, formalismo e o que for, são uma roupa entre outras, muito da época mas desnecessariamente apertada. Está-se vendo que este chão social é de conseqüência para a história da cultura: uma gravitação complexa, em que volta e meia se repete uma constelação na qual a ideologia hegemônica do Ocidente faz figura derrisória, de mania entre manias. O que é um modo, também, de indicar o alcance mundial que têm e podem ter as nossas esquisitices nacionais. Algo de comparável, talvez, ao que se passava na literatura russa. Diante desta, ainda os maiores romances do realismo francês fazem impressão de ingênuos. Por que razão? Justamente, é que a despeito de sua intenção universal, a psicologia do egoísmo racional, assim como a moral formalista, faziam no Império Russo efeito de uma ideologia "estrangeira e portanto localizada e relativa. De dentro de seu atraso histórico, o país impunha ao romance burguês um quadro mais complexo. A figura caricata do ocidentalizante, francófilo ou germanófilo, de nome freqüentemente alegórico e ridículo, os ideólogos do progresso, do liberalismo, da razão, eram tudo formas de trazer à cena a modernização que acompanha o Capital. Estes homens esclarecidos mostram-se alternadamente lunáticos, ladrões, oportunistas, crudelíssimos, vaidosos, parasitas etc. O sistema de ambigüidades assim ligadas ao uso local do ideário burguês – uma das chaves do romance russo – pode ser comparado àquele que descrevemos para o Brasil. São evidentes as razões sociais da semelhança. Também na Rússia a modernização se perdia na imensidão do território e da inércia social, entrava em choque com a instituição servil e com seus restos, – choque experimentado como inferioridade e vergonha nacional por muitos, sem prejuízo de dar a outros um critério para medir o desvario do progressismo e do individualismo que o Ocidente impunha e impõe ao mundo. Na exacerbação deste confronto, em que ó progresso é uma desgraça e o atraso uma vergonha, está uma das raízes profundas da literatura russa. Sem forçar em demasia uma comparação desigual, há em Machado – pelas razões que sumariamente procurei apontar – um veio semelhante, algo de Gogol, Dostoievski, Gontcharov, Tchecov, e de outros talvez, que não conheço. Em suma, a própria desqualificação do pensamento entre nós, que tão amargamente sentíamos, e que ainda hoje asfixia o estudioso do nosso século XIX, era uma ponta, um ponto nevrálgico por onde passa e se revela a história mundial.
Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente Brasil põe e repõe idéias européias , sempre em sentido impróprio. É nesta qualidade que elas serão matéria e problema para a literatura. O escritor pode não saber disso, nem precisa, para usá-las. Mas só alcança uma ressonância profunda e afinada caso lhes sinta, registre e desdobre – ou evite – o descentramento e a desafinação. Se há um número indefinido de maneiras de fazê-lo, são palpáveis e definíveis as contravenções. Nestas registra-se, como ingenuidade, tagarelice, estreiteza, servilismo, grosseria etc., a eficácia específica e local de uma alienação de braços longos – a falta de transparência social, imposta pelo nexo colonial e pela dependência que veio continuá-lo. Isso posto, o leitor pouco ficou sabendo de nossa história literária ou geral, e não situa Machado de Assis. De que lhe servem então estas páginas? Em vez do "panorama" e da idéia correlata de impregnação pelo ambiente, sempre sugestiva e verdadeira, mas sempre vaga e externa, tentei uma solução diferente: especificar um mecanismo social, na forma em que ele se torna elemento interno e ativo da cultura; uma dificuldade inescapável – tal como o Brasil a punha e repunha aos seus homens cultos, no processo mesmo de sua reprodução social. Noutras palavras, uma espécie de chão histórico, analisado, da experiência intelectual. Pela ordem, procurei ver na gravitação das idéias um movimento que nos singularizava. Partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as idéias estavam fora de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo Capital. Em suma, para analisar uma originalidade nacional, sensível no dia-a-dia, fomos levados a refletir sobre o processo da colonização em seu conjunto, que é internacional. O tic-tac das conversões e reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um mecanismo planetário. Ora, a gravitação cotidiana das idéias e das perspectivas práticas é a matéria imediata e natural da literatura, desde o momento em que as formas fixas tenham perdido a sua vigência para as artes. Portanto, é o ponto de partida também do romance, quanto ais do romance realista. Assim, o que estivemos descrevendo é a feição exata com que a História mundial, na forma estruturada e cifrada de seus resultados locais, sempre repostos, passa para dentro da escrita, em que agora influi pela via interna – o escritor saiba ou não, queira ou não queira. Noutras palavras, definimos um campo vasto e heterogêneo, mas estruturado, que ê resultado histórico, e pode ser origem artística. Ao estudá-lo, vimos que difere do europeu, usando embora o seu vocabulário. Portanto a própria diferença, a comparação e a distância fazem parte de sua definição. Trata-se de uma diferença interna – o descentramento de que tanto falamos – em que as razões nos aparecem ora nossas, ora alheias, a uma luz ambígua, de efeito incerto. Resulta uma química também singular, cujas afinidades e repugnâncias acompanhamos e exemplificamos um pouco. É natural, por outro lado, que esse material proponha problemas originais à literatura que dependa dele. Sem avançarmos por agora, digamos apenas que, ao contrário do que geralmente se pensa, a matéria do artista mostra assim não ser informe: é historicamente formada, e registra de algum modo o processo social a que deve a sua existência. Ao formá-la, por sua vez, o escritor sobrepõe uma forma a outra forma, e é da felicidade desta operação, desta relação com a matéria pré­formada – em que imprevisível dormita a História – que vão depender profundidade, força, complexidade dos resultados. São relações que nada têm de automático, e veremos no detalhe quanto custou, entre nós, acertá-las para o romance. vê-se, variando-se ainda uma vez o mesmo tema, que embora lidando com o modesto tic-tac de nosso dia-a-dia, e sentado à escrivaninha num ponto qualquer do Brasil, o nosso romancista sempre teve como matéria, que ordena como pode, questões da história mundial; e que não as trata, se as tratar diretamente.
Bibliografia:
Da Introdução ao ensaio sobre Machado de Assis "Ao Vencedor As Batatas", Livraria Duas Cidades.

28 outubro 2004

MORTE - HENRIQUETA LISBOA

"Henriqueta Lisboa é, de todos os poetas do modernismo brasileiro, o que mais alto cantou o sentimento de morte. É, coisa que surpreendeu em Cruz e Souza, à medida que ia amadurecendo o tema e progredindo na técnica, passou a trabalhá-la por dentro, a quase participar da interioridade da morte".
Fábio Lucas – O Tema e a Técnica - 1959

18 outubro 2004

FLOR DA MORTE - HENRIQUETA LISBOA

Qualquer coisa, que eu escrevesse neste blog, na tentativa de elucidar, sobre a obra de Henriqueta Lisboa, seria mera repetição, pois a UFMG disponibiliza pela internet boa parte do acervo da escritora: Vida e Obra, Antologia, Recepção Crítica, Correspondência. Diga-se de passagem, muito bem elaborado. Não deixem de visitá-lo: HENRIQUETA LISBOA
Segundo Carlos Drummond de Andrade, Flor da Morte, de Henriqueta Lisboa, escrito em 1949, é dos raros casos, na poesia brasileira, de um livro de versos que constitui, organicamente, um só poema. E o constitui, sem recorrer ao mero expediente formal de agenciar todos os versos numa composição de amplos limites, dividida em cantos regulares. Suas páginas abrigam aparentemente as produções mais variadas, cada uma delas com título próprio, e com estrutura diferenciada, dentro da rítmica peculiar à autora nesta sua fase. Os 'temas', a julgar pela maioria dos títulos, parecem ainda distintos uns dos outros; o pássaro de fogo, as jaulas, o véu, a rosa príncipe-negro, Nossa Senhora da Pedra Fria. Contudo, uma só é a matéria do livro, como é única a sua essência, a inspiração que o ditou, o clima espiritual em que foi elaborado, única a preocupação de quem o escreveu, ou, melhor dito, de quem o viveu. O livro de Henriqueta Lisboa é uma persistente, ondulante e apaixonada meditação sobre a morte. Quase que o poderíamos chamar: tratado poético da morte."

Por que a freqüente presença da morte como tema em seus trabalhos?
A morte é uma realidade inevitável e inenarrável, tanto quanto misteriosa. Por isso mesmo nos instiga a inquiri-la e enfrentá-la superiormente. E quem nunca foi ferido por ela?
Entrevista concedida a José Afrânio Moreira Duarte em 1970
Diário de Minas, Belo Horizonte, 5 jul. 1970.

E o tema da morte foi outra obsessão, parece. A senhora foi chamada, inclusive, de "Poeta da Morte". "À paisagem do morto nada falta de cômodo. /A paisagem do morto é insípida." Hoje, com 80 anos, mudaria a abordagem do tema?
Em certa fase de minha vida, em virtude de dolorosas ocorrências, este assunto se tornou explosivo. Celebrei-o em Flor da Morte, depois de abordá-lo em A Face Lívida, texto de angústia e perplexidade, à época em que se alastrava a 2ª Guerra Mundial. Todavia, tenho visado de modo constante a essência do ser, a substância do vital, a ansiedade humana em busca de perfeição e infinito, os mistérios da natureza, o relacionamento entre a alma e Deus. A cada tempo o seu cuidado. Em cada livro meu predomina um tema, prevalece um clima. O Menino Poeta constitui a revivescência da infância. Madrinha Lua e Montanha Viva interpretam e comemoram tradições mineiras. E assim por diante. Hoje, não me sinto propensa a desafiar a idéia ou o sentimento da morte, como fiz em outra época, em termos de mediação entre a fatalidade e a resistência.
Entrevista concedida a Edla Van Steen
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 maio 1984

Silêncio da Morte

Silêncio da morte, perfeito
como uma flor e seu cálice.
Nudez de céu de ponta a ponta
azul sem mácula.
Neve por toda a eternidade
consumada nos píncaros.
Silêncio da morte, campo
de ópio. Adormecedor
balanço entre margens.
Anjos que se debruçam e alçam,
confundindo-se com os turíbulos.
Contemplação beatífica
de ciprestes. Gozo
do vácuo.
Silêncio da morte, pavor
das furnas. Trágica escassez
de cinzas. Fera
de olhos oblíquos espreitando
a ampulheta.
Impossível recuo. Tempo máximo.
Salto de corpo ao mar,
urgente, urgente mar
sobre a presa, fechando-se.

SOBRE A OBRA DE HENRIQUETA LISBOA

Acentuava Mário de Andrade, a propósito de Prisioneira da Noite (1941), que havia nos versos de Henriqueta Lisboa "graça inquieta, simples e um pouco agreste, um pouco ácida, dos passarinhos", e divisava em seu lirismo "uma carícia simples, dor recôndita em sorriso leve e frase contida. A poesia de Henriqueta Lisboa é de fato uma poesia de pudor, discrição, suavidade, ás vezes de leve encantamento com coisas ou palavras, por exemplo ao se deter no vocábulo ‘trasflor’: ‘Lavor de ouro sobre esmalte: / linda palavra – trasflor’." Essa dileção pela palavra nobre ou rara lhe dá às vezes certo preciosismo, e faz sua expressão artificializar-se um pouco, como se fosse o canto de cigarras sem sangue. Mas nos momentos de equilíbrio sua poesia assume aquele "leve tom cinza, cinza-pérola", que a poetiza deseja extrair da tarde. Essa dicção policiada às vezes se torna cálida como ricos perfumes: assim nos versos de Madrinha Lua (1952), livro sobre os velhos vultos e cidades de Minas Gerais, sobre cujos versos perpassa um luar de almíscar, um capitoso aroma de angélicas que floriram noutros séculos.
Henriqueta Lisboa estreou com Fogo Fátuo (1925), mas foi com os versos de Velário (1936) que transitou para a modernidade. Lírica reúne com exclusões seus versos até 1958.
AFRÂNIO COUTINHO – A LITERATURA NO BRASIL - Modernismo
Vol. V, 2º edição, 1970, pág. 180.

Obs.: O crítico literário Afrânio Coutinho, coloca Henriqueta Lisboa entre os poetas da segunda fase do Modernismo. Que ele considera, como sendo, os poetas surgidos de 1930 a 1945.
Nesta fase, os temas, antes circunscrito de modo geral à ambivalência brasileira, votam-se para o homem e seus problemas, como ser individual ou social: pode-se falar em fase de extensão de campos (ou, em certa designação, pós-modernismo).

10 outubro 2004

AINDA SOBRE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO: O SEU ESTILO LITERÁRIO – A CRÔNICA


A Crônica: Um gênero menor?

"É um gênero literário que tem assumido no Brasil, além da personalidade de gênero, um desenvolvimento e uma categoria que fazem dela uma forma literária de requintado valor estético, um gênero específico e autônomo.
Realmente, se algo existe em nossa literatura, que pode ser tomado como exemplo frisante da nossa diferenciação literária e lingüistica, é a crônica. Dificilmente poderá apontar-se coisa parecida, mesmo na literatura portuguesa, a uma crônica de Rubem Braga. E este autor ainda apresenta esta singularidade: é um grande escritor que entra para a história literária exclusivamente como cronista. Fato singular da literatura brasileira atualmente. Como fato muito significativo é a posição da crônica, sua importância, o grau de perfeição a que atingiu, depois de longa evolução através da qual se especializou, se desenvolveu uma forma literária específica, inclusive com um estilo próprio, uma maneira peculiaríssima.
Em primeiro lugar, é mister ressaltar a natureza literária da crônica. O fato de ser divulgado em jornal não implica em desvalia literária do gênero. Enquanto o jornalismo tem no fato seu objetivo, seu fim, para a crônica o fato só vale, nas vezes em que ela o utiliza, como meio ou pretexto, de que o artista retira o máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espirito, de sua graça, de suas faculdades inventivas. A crônica é na essência uma forma de arte, arte da palavra, a que se liga forte dose de lirismo. É um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima, ante ao espetáculo da vida, as coisas, os seres. O cronista é solitário com ânsia de comunicar-se. E ninguém melhor se comunica do que ele, através desse meio vivo, álacre, insinuante, ágil que é a crônica. A literatura, sendo uma arte – cujo meio é a palavra – e portanto oriunda da imaginação criadora, visando a despertar o prazer estético – nada mais literário do que a crônica, que não pretende informar, ensinar, orientar. E tanto ela não é indissoluvelmente ligada ao jornal, que esse prazer decorre da sua leitura mesmo em livro.
Outra característica é a natureza ensaística da crônica. É claro que se deve, para compreendê-la, distinguir o ensaio formal, crítico, biográfico, histórico, filosófico, discursivo, e que entre nós vai ficando sinônimo de estudo, e o ensaio informal, familiar, coloquial, em que são exímios os ingleses. Pois bem, esse último tipo confunde-se pelas suas características com a nossa crônica. Basta compararmos os pequenos ensaios de Steele, Addison, Hazlitt, Lamb, Chesterton, e outros da numerosa família inglesa, com a página de nossos cronistas, para vermos os seu parentesco. Evidentemente, não teremos que mudar de nome, pois é interessante a especialização da palavra "crônica" em português para designar o gênero. Pois, como se sabe, o sentido antigo da palavra, que vigorava no renascimento por exemplo, e ainda é corrente em outras línguas neolatinas, fazia da crônica um gênero histórico. Crônica, cronista (do grego cronos, tempo) relacionavam-se com o relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar. Desapareceu esse conteúdo, ficando a palavra para designar as pequenas produções em prosa, de natureza livre, em estilo coloquial, provocadas pela observação dos sucessos cotidianos ou semanais, refletidos através de um temperamento artístico.
De qualquer modo, o que se deve ressaltar é a importância que o gênero vem assumindo em nossa literatura. A crônica tem que valer-se da língua falada, coloquial, adquirindo inclusive certa expressão dramática no contato da realidade da vida diária.
As dificuldades em classificar a crônica resultam, como acentuou Eduardo Portela, do fato de que ‘tem a caracterizá-la não a ordem ou a coerência mas exatamente a ambigüidade’, que ‘não raro a conduz ao conto, ao ensaio por vezes, e freqüentemente ao poema em prosa’. A crônica, insiste o mesmo crítico, vive presa ao dilema da transcendência e do circunstante. As suas condições jornalísticas e sua base urbana tem que ser superadas para que ela ganhe em transcendência, seja construindo ‘uma vida além notícia’, seja enriquecendo a notícia ‘com elementos de tipo psicológico, metafísico’ ou com o humour, como Carlos Drummond de Andrade, seja fazendo ‘subjetivismo do artista’, ‘o seu universo interior’, sobrepor-se ‘a preocupação objetiva do cronista’, como Rubem Braga e Ledo Ivo."
Afrânio Coutinho – A Literatura no Brasil – 2º edição, vol. IV, pág. 77-78

24 setembro 2004

A ETERNA PRIVAÇÃO DO ZAGUEIRO ABSOLUTO - COLETÂNEA SOBRE O AUTOR - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO


O livro de Luiz Fernando Veríssimo, "A Eterna Privação do Zagueiro Absoluto", escolhido como leitura para o vestibular da UFMG 2005. Abaixo, algumas notas colhidas para auxiliar na leitura do livro, visto a precariedade do material que vem sendo publicado pelos cursinhos de Belo Horizonte.
RETRATISTA DO COTIDIANO
Jorge Luís Borges, ítalo Calvino, Vladimir Nabokov estão no céu, conversando sobre o direito de os escritores lá habitarem depois da morte por uma questão de mérito adquirido. Discutem maneiras de coibir vocações literárias equivocadas. A conclusão é categórica: ao crítico caberia ser impiedoso com autores novos - deveria até mesmo executá-los. Esta é a síntese da parábola "No céu", incluída em "O suicida e o computador", de Luís Fernando Veríssimo, que se inscreve naquela categoria especial de autores que conseguem ser extremamente prolixos sem cair em redundâncias ou vazios.
Tentar aprisionar a obra deste autor num só gênero é uma tarefa inócua. Escrevendo crônicas, contos, ensaios e mesmo poemas, Veríssimo expressa suas opiniões com argúcia, originalidade e talento. Nas temáticas sobre as quais se debruça - sempre relacionadas ao Brasil urbano de classe média - política ou comportamento, quase nada escapa aos olhos e ouvidos deste escriba perspicaz. O senso de humor, a ironia e o lirismo eventual de suas críticas transformam a mesquinhez do cotidiano em momentos únicos.

"Prefiro pensar que sou um cronista que às vezes tem teses", De Daniel Piza. Gazeta Mercantil, 26-28/11/99.
A crônica no Brasil teve alguns autores de grande qualidade literária que também chegaram ao sucesso popular. João do Rio, Rubem Braga e Nelson Rodrigues são exemplos que logo vêm à mente. Depois deles, o grande cronista famoso do país é, claro, Luís Fernando Veríssimo. Ele é lido por um público tão amplo quanto fiel. Prova disso é a presença precoce na lista de mais vendidos de suas três coletâneas recém-lançadas: "Aquele Estranho Dia que Nunca chega" (sobre política e economia), "A Eterna Privação do Zagueiro Absoluto" (futebol, cinema e literatura) e "Histórias Brasileiras de Verão" (sobre "vida íntima").
Conclusão imediata: a crônica brasileira vai bem, obrigado. Mas que isto não deixe de fazer pensar naquilo que Veríssimo trouxe para o gênero que tanto era do gosto do maior escritor brasileiro, Machado de Assis. Veríssimo modernizou a crônica nacional assimilando - como Machado assimilara na ficção - a influência da literatura de língua inglesa, especialmente a de humor. Isso se vê em sua linguagem concisa e coloquial, mas cheia de entrelinhas, um tanto diferente da "sinceridade" mais confessional, seja da vertente lírica de Rubem Braga, seja da vertente assertivista de Nelson Rodrigues. Meio que mesclando crônica e artigo, relato pessoal e análise jornalística, e sem cair nos destemperos explícitos de outros praticantes da modalidade, Veríssimo renovou a crônica.
Tem grande percepção para o comportamento social e suas mudanças e semelhanças no passar do tempo, revelando mais sobre a atual classe média brasileira em seus textos (para não falar nos desenhos como os da "Família Brasil") do que todos os ficcionistas vivos do país, somados. E trunfo dos trunfos: é um homem de idéias, não um mero diarista, e ele as defende com um charme que nenhuma discordância pode negar. Seu intimismo não é nostálgico, é reflexivo; ele não precisa rir para que se perceba que está contando uma piada; e jamais deixa de dar sua opinião, incisivamente quando necessário, em assuntos variados. Sobre influências, métodos e assuntos, ele fala na entrevista a seguir:

"- Acho que a crônica pegou no Brasil pelo acidente de aparecerem bons cronistas, como Rubem Braga, que conquistaram o público. Ou seja, não existem tantos cronistas porque existia uma misteriosa predisposição no púbico pela crônica, acho que foram os bons cronistas que criaram o mercado. Outros países têm bons cronistas, mas só no Brasil, que eu saiba, eles chegaram a ter reputação literária sem fazer outra coisa, como o Rubem Braga e os outros. Fora o Paulo Mendes Campos, que também era poeta.
- o cronista é sempre seu assunto. A crônica não é lugar para objetividade. Ser mais pessoal, mais coloquial, depende do estilo de cada um. Mas a gente está se confessando sempre.
- Prefiro pensar que sou um cronista que às vezes tem teses, mas nunca vai buscá-las muito fundo. O negócio é pensar sobre as coisas e tentar pensar bem, mas nunca esquecer que nada vai ficar gravado em pedra, ou fazer muita diferença.
- Escrevo com informalidade e com a preocupação de ser claro e o pai também era assim. Ficar em Porto Alegre e não procurar muito a "vida literária" também foi uma escolha dele, mas neste caso não foi uma imitação minha, pelo menos não consciente. Mais uma questão de personalidade.
- Na verdade, crônica esportiva literária, ate há pouco tempo, só quem fazia era o Armando Nogueira e, aqui no sul, o Ruy Carlos Osterman. Muitos escreviam bem sobre futebol, mas sem outras pretensões. Hoje tem aí o Torero e outros fazendo coisas excelentes.
- Ronaldo foi a grande frustração da Copa e, ao mesmo tempo, revendo aqueles jogos, a gente nota como ele foi efetivo, mesmo errando tanto. Mas desde então ele nunca mais acertou, e agora vai ser operado outra vez. É uma pena. Problemas de mulher e de articulação, os mesmos dos heróis desde a Grécia Antiga.
- Acho que o futebol dentro do campo está bem jogado como nunca esteve, muito mais competitivo e atraente do que na sua época "lírica". O problema é fora do campo, com a desorganização e os dirigentes oportunistas, incompetentes ou bandidos mesmo. Eu defendo o futebol empresarial e os campeonatos organizados e promovidos como espetáculos. Este é um caso em que a gente deveria imitar o modelo americano.
- A crônica ficcional é a melhor de fazer, a política é quase obrigatória, e a futebolística é uma indulgência que eu me dou de vez em quando.
- Este foi o século em que as melhores idéias foram derrotadas. Eu só livraria a escada rolante e o controle remoto." (Luís Fernando Veríssimo em entrevista feita por fax "from" de Porto Alegre)
DE VERISSIMO A VERISSIMO

"De geração a geração
segue a arte de escrever
um abc refinado
seu coração é colorado
cronista, cartunista,
jornalista, às do humor
vem autografar a passarela
oh! Grande escritor" (Enredo da Escola de Samba Vila Isabel de Viamão)
Antes de tudo que o samba relaciona, Veríssimo é um poço de paradoxos, produto de um jogo de extremos. Ao mesmo tempo que cultiva a timidez, o silêncio e os monossílabos, é tido pelos muitos amigos como um dos tipos mais doces e generosos; no momento seguinte em que cita viajar e comer bem como seus dois maiores prazeres, conta que não mudaria de Porto Alegre por nada deste mundo e se lembra da dieta rigorosa que segue por orientação médica, em função de problemas cardíacos. Finíssimo estilista da língua, dono de um texto marcado pela mistura de precisão e beleza, ele é capaz de afirmar com orgulho que escreve "por ofício", que é "um escritor comercial, sem grande valor literário, cujo ramo é o do entretenimento".
Na relação com o pai, uma base de mútua admiração. Não há prova científica de que talento é hereditário, mas o caso da família Veríssimo valia uma análise mais detalhada. Filho de Érico (um dos grandes da literatura brasileira, cujo "Tempo e vento" completa 50 anos de lançamento este ano), Luís Fernando começou a escrever tarde na vida, aos 28 anos. Antes disso, depois de muito tempo indeciso quanto ao caminho a seguir, trabalhava no departamento de arte da Editora Globo, de Porto Alegre. Meio sem querer, começou a dar expediente como redator no jornal "Zero Hora", no qual chegou a escrever até coluna de horóscopo e, meio por acaso, herdou uma coluna de crônicas. Foi esse o início de uma carreira de sucesso na imprensa diária - com passagens por jornais como O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil.
- Sempre tive uma relação ótima com meu pai, ele nunca me obrigou a fazer nada que não quisesse. Na verdade, nunca tive problema algum em ser filho de um escritor famoso, até gostaria de inventar uma história dramática para saciar a curiosidade mórbida das pessoas sobre nossa convivência.
- Adoro o cinema de Hollywood, a literatura americana, as histórias em quadrinhos e, acima de tudo, o jazz. Aos 17 anos, consegui entrar num clube e assisti a um show de Charlie Parker - conta ele, com um discreto brilho nos olhos. - Sou fã de Louis Armstrong e, quando morava nos Estados Unidos, quis aprender a tocar trompete. Procurei uma escola e, lá, não tinha trompete disponível, só um sax-alto. Foi assim que aprendi música.
- Antes, a esquerda era mais ideológica e a direita, mais pragmática. Hoje, a situação mudou, a direita adotou o ideário neoliberal e a esquerda apresenta projetos mais objetivos. Tenho minhas simpatias pelo PT, mas não me sinto à vontade com uma postura engajada. Minhas preocupações são mais humanistas, acredito que o caminho passa pela social-democracia, e nem sei se seria a tal Terceira Via do gabinete gay do Tony Blair. Opa! Uma piada politicamente incorreta! E as patrulhas? - Não ligo para isso, acho que estou imune a elas.
ATINGIR A PROFUNDIDADE SEM SAIR DA SUPERFÍCIE
- Não tenho nenhuma obra dentro de mim para botar para fora, não tenho essa compulsão. Meus livros fazem sucesso porque as histórias são curtas, escritas de maneira fácil. A atividade de cronista me realiza completamente e acredito que é perfeitamente possível atingir a profundidade ficando na superfície.
Viajar e comer, os prazeres; futebol, a única paixão. Animadíssimo com a volta de Dunga ao seu Internacional, ele acha que o técnico da seleção brasileira, Wanderley Luxemburgo, tem "um problema de vaidade para administrar" e critica o jeito moleque de jogadores como Romário:
- Ele é a cara do futebol carioca, meio displicente, nem sempre objetivo, do drible pelo drible, em que uma jogada bonita vale mais que um gol. E isso acontece muito porque o torcedor carioca estimula esse tipo de atitude. Agora, o problema do futebol do Rio são os cartolas. É muito feio o que eles estão fazendo - diz ele, peso pluma com pegada de peso pesado.
Veríssimo descobriu no drama das idéias perdidas o tema para uma crônica. Começa assim: "A escrita deve ter nascido da idéia de não esquecer. O primeiro homem que pensou ‘preciso me lembrar disso’ deve ter olhado em volta procurando alguma coisa que ele não sabia ainda o que era. Era um lápis e um pedaço de papel". Tudo para dizer, no fim, que não sabia o que fazer com a anotação que um belo dia rabiscara a lápis num pedaço de papel: "Conhece-te a ti mesmo mas não fica íntimo". No fim da crônica, conclui: "As melhores idéias são as que a gente esquece".
Grande parte das histórias de Veríssimo vem da capacidade do autor de reverter situações adversas. Por exemplo: irritado com a insistência de Fernando Henrique em criticar os críticos que definem seu governo como neoliberal. Veríssimo reagiu com a ironia fina de sempre na crônica Definições, que integra a coletânea Novas Comédia da Vida Pública - A Versão dos Afogados. Na crônica, ele diz concordar com Éfe Agá quando o presidente da República reinvindica para seu governo a definição que julga mais adequada: neo-social. "Quem de nós, escritores e pseudo-escritores, ensaístas ou ficcionistas, cronistas ou romancistas, nunca sonhou em fazer a resenha da própria obra, livrando-a da incompreensão dos críticos?", finge concordar Veríssimo.
A cirurgia cardíaca sofrida em 1991, por sua vez, virou uma crônica sobre o espírito de competição dos parceiros de infortúnio, que às vezes lembra um jogo de poquêr: "Tenho três pontes de safena e uma mamária. Algo como uma trinca, mas de ases. Não faço feio em nenhuma roda de safenados e já humilhei alguns", escreveu Veríssimo, que mantém uma inútil bicicleta ergométrica encalhada na porta do escritório. "Tenho que fazer exercício, mas não consigo", confessa.
Se os 61 anos, comemorados (comemorados?) em setembro do ano passado, incomodam, não existe melhor remédio do que se recuperar da "doce tragédia" desabafando numa crônica entre o humor e a melancolia. "Por motivos que não interessam, fiz aniversário ontem", informa, antes de concluir: "Há coisas piores do que fazer 61 anos, mas ninguém consegue se lembrar de nenhuma". Veríssimo tem também uma respeitável safra de histórias brotada da sua paixão pelas palavras.
Introvertido, Veríssimo se considera "o cara mais sem graça do mundo". E jura: "No meu caso, o humor é mais técnica do que vocação". Mas sabe que é inútil convencer os leitores de que está longe de ser um humorista em tempo integral.
Por exemplo: amante do jazz, o escritor toca saxofone na Aqui Jazz Tancredo Band, que criou em parceria com os gêmeos cartunistas Paulo e Chico Caruso. Certa vez, em Brasília, os músicos resolveram, alguns uísques depois, inovar e entrar no palco com as luzes apagadas. Verissimo, o único que não havia bebido, errou o caminho, caiu da escada e quebrou o joelho. Em pânico, os irmãos Caruso informaram o acidente ao público e perguntaram se havia algum médico na platéia. "Claro que ninguém acreditou. O público morria de rir enquanto eu morria de dor", lembra Veríssimo.
"Quem se casa com uma pessoa parecida, na verdade está se casando consigo próprio. É uma forma de incesto e não pode dar certo", acredita Veríssimo. Ele e Lúcia poderiam ser, no máximo, aquele casal da crônica Lar Desfeito, que vive às mil maravilhas mas decide se separar para poupar os filhos da vergonha de terem pai e mãe ainda casados, ao contrário de todos os coleguinhas. Lúcia não tem ciúme das outras mulheres do marido, que são (não necessariamente nessa ordem) Ingrid Bergman, Rita Hayworth, Maureen O’Hara ("aquela irlandesa exuberante..."), Catherine Deneuve. "No Rio eu conheci a Lucia e nós nos casamos em março de 1964. Para não dizer que não aconteceu nada de bom no Brasil em março de 1964", brinca.
Mas, afinal, de onde vem esse profundo conhecimento de causa? "Sou uma pessoa introvertida, mas não enclausurada, afastada do mundo. Escrevo sobre coisas que vivi, ou que ouvi dos outros, ou que vi acontecendo. É bom ter a experiência, mas é preciso distanciamento para refletir sobre ela", explica.
O computador não passa de "uma máquina de escrever glorificada", distante da criatura onipotente que transformou em personagem das tiras, As Cobras. Ao lado do micro, uma coleção de canetas denuncia o prazer que só não é secreto em razão desses répteis tornados públicos pela primeira vez há 20 anos, em Zero Hora.
O excesso do trabalho o afasta da paixão que alimenta desde a infância: a leitura. Veríssimo ainda se define como "um leitor voraz e onívoro". A verdade é que lê de tudo, mas não com a voracidade desejada. Por absoluta falta de tempo. "Há muito não leio um livro inteiro, só fragmentos", queixa-se. No momento, tem nada menos que 78 livros na cabeceira (da nova edição, corrigida, de O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, a Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda) na fila para serem lidos. Em pouco tempo não restará cabeceira: Veríssimo não consegue passar na porta de uma livraria sem entrar. E se entra, compra. "Acho possível colocar minha leitura em dia. Basta viver até os 120 anos", calcula.

Navegue também no site abaixo e mergulhe na obra deste grande cronista brasileiro:
http://portalliteral.terra.com.br/verissimo/porelemesmo/porelemesmo.shtml?porelemesmo

30 agosto 2004

NOVE NOITES - MINHAS IMPRESSÕES


A análise abaixo é apenas as minhas impressões sobre o livro: Nove Noites de Bernardo Carvalho, indicado para o vestibular da UFMG de 2005. Sem maiores pretensões.

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Um dos aspectos importantes no início do livro, é a forma como o narrador levanta dúvidas em vários trechos do capitulo sobre a verdade. Quando ele expressa não ter lido as cartas deixadas pelo etnólogo e sim apenas teve o conhecimento do conteúdo a partir das traduções feitas pelo professor Pessoa: "(...) naquela cidade morta, como ele a descreveu, se formos confiar nas traduções do professor Pessoa." (Nove Noites – Bernardo Carvalho). Este recorte, aborda a complexidade do texto literário e como a sua verdade é relativa. A riqueza que emerge de sua teia textual, sempre que há o contato ele, expressará verdades diversas. Da mesma forma, que não podemos atravessar o rio duas vezes, pois nem as suas águas, nem nós, seremos os mesmos, também não podemos ler o mesmo texto duas vezes. O narrador, também, leva o leitor a duvidar de sua própria versão, pois o livro se constituirá em cima de vários textos: testamentos, cartas, notícias de jornais e finalmente o romance. Mostrando-nos, que o romance se constituirá num palimpsesto.

O testamento deixado a este estranho, narrado pelo engenheiro de Carolina, Manoel Nobrega, vem no texto como se fosse reescrito várias vezes, como um rascunho. Apresenta a transitoriedade das idéias e dos fatos. O desejo de expressão sempre fragmentado no texto. O trabalho estético e factual para o outro que se escreve, expressando a falta, um buraco, uma dúvida exigindo sempre a reescrita.
A intercalação entre os textos, dos dois narradores, é um diálogo constante, distanciado no tempo. É como se os dois mantivessem uma conversa, com os seus pontos de vista, cada um a partir da experiência que tiveram com o personagem, depoimentos, cartas, relatórios, fotos.
Franz Boas que aparece no livro como professor de Buell Quain, foi um dos representantes da corrente difusionista e fundador da antropologia cultural norte americana, que visa estudar a distribuição geográfica dos traços culturais, explicando a sua presença por sucessão de empréstimos de um grupo a outro. Esta corrente se intextualiza com o livro, visto que o empréstimo pode ser incompleto ou fragmentado. Disto, decorre as distorções na interpretação de numerosos fatos, por ser subestimadas as capacidades inventivas do homem e os excessivos esquemas dos mecanismos de difusão.
É como uma caixa dentro de uma caixa, dentro de outra caixa, na busca do núcleo. A busca do diferente, a busca do excepcional, será capaz de explicar o que levou o antropólogo a por fim em sua própria vida? As hipóteses delineadas pelos dois narradores surgiram de maneira muito sutil no decorrer da narrativa, de forma fragmentada, sem vínculos concretos e imbuídos a partir de alguma espécie de narrativa: carta, retrato, cinema, mitos, analogias, jornal, depoimentos e relatos.
Nada no livro é abordado de forma gratuita, e em função da sua complexidade, o romance questiona a neutralidade cientifica, a incapacidade de expressão de forma objetiva. Tudo nele é construído em cima de uma colcha de retalhos, como a própria literatura.
A construção do romance, é como se fosse a constituição de uma partitura, na tentativa de harmonizar os diversos fragmentos da vida do personagem na voz de dois narradores, que como um maestro darão ritmos diferentes aos capítulos que compõem o romance.
Nos capítulos constituídos pelo testamento, os textos se iniciam com a frase: "Isto é para quando você vier." (Nove Noites). As pessoas não suportam conviver com a dúvida. Na maioria das vezes justificam os fatos de maneira imprecisa para colocar um fim em suas dúvidas. "É lamentável que o seu desaparecimento tenha sido de um modo tão doloroso. Ainda ignoramos os motivos que o levaram a tal atitude. Mas, segundo notícias colhidas de fontes que reputamos certas, podemos adiantar que tenha sido por questões familiares." (Nove Noites)
O livro em seu primeiro capitulo se assemelha muito com a essência da trama do filme "o cidadão Kane" que após a morte de um grande magnata da imprensa norte americana, chamado Charles Foster Kane, um jornalista recebe a missão de descobrir o significado da enigmática palavra, rosebud, que surge dos lábios do magnata no momento de sua morte. Mas como no livro, a história toda do personagem, será reconstruída fragmentariamente, apenas com algumas passagens cruciais de sua vida.
O primeiro capitulo é um testamento, e a narrativa se dirige a um receptor que não se sabe quem é, criando como efeito, de que ele é dirigido ao leitor. Uma carta que o narrador guarda, para entregar ao seu devido destinatário. Com o passar do tempo a cidade se esquece de tudo que se sucedeu com Dr. Buell, aparece outro, sem muito mérito, para assumir a sua função, mas o narrador angustiado por não poder entregar a carta deixada pelo etnólogo ao seu devido destinatário, decide deixar um testamento relatando os motivos que o levou a guardar a carta e com isto, fará com que a narrativa comece a tomar corpo.

"faz anos que o espero, mas já não posso me arriscar ou desafiar a morte" (Nove Noites – Bernardo Carvalho)

Mas este capítulo em formato de um testamento, não é um texto qualquer, visto que ele é uma possibilidade de expressão, de realização de um desejo, após a morte, ou seja, é uma maneira de se manter vivo no tempo através do texto. Como Bach que levou quase um século após a sua morte, cego em sua cama de nogueira, entre os mortos pobres, esquecido por todos, será ressuscitado pela Paixão. Somente em 1819, com a apresentação de sua "Paixão Segundo São Mateus", dirigida por Mendelssohn, é que ocorreu o renascimento de Bach para a posteridade. Pois a sua mulher, depois de ver as belíssimas cantatas de seu marido serem empurradas aos montes, para dentro de sacos e levadas com se fossem lixo, ela não deixou que ninguém jogasse dentro de um saco e levasse embora a Paixão, guardou para si, a peça tão amada de Bach, que só encontrou um receptor depois de um século. O texto tem vida própria, mas precisa de um guardião para levá-lo para outras gerações.

O segundo capitulo começa com um novo narrador, e com ele o personagem passeia no tempo e encontra um receptor que mergulhará em um novo texto, agora num artigo de jornal. Percebe-se que a narrativa não é pontual, ela é permanente, e mais uma vez o texto aparece dentro do texto de outro texto: "o artigo tratava das cartas de outro antropólogo, que também havia morrido entre os índios do Brasil, em circunstância ainda hoje debatidas pela academia e citava de passagem, em uma única frase, por analogia, o caso de Buell Quain, que se suicidou entre os índios Krahô em agosto de 1939." (Nove Noites – Bernardo Carvalho)

Porém esta citação não é suficiente para o narrador conhecer aquele personagem, é preciso sair em busca de outros textos por causa da desfragmentação textual."os papeis estão espalhados em arquivos no Brasil e nos Estados Unidos. (...) e aos poucos fui montando um quebra cabeça e criando a imagem de quem eu procurava" (Nove Noites – Bernardo Carvalho). E assim, um novo texto começa a ser costurado.

A narrativa não nasce do nada, mas de uma combinação de acasos, da paixão por um outro texto. É uma fórmula que se cria, porém não podemos ter controle, a partir da sua criação, sobre como ela será utilizada. "Bull Quain se matou na noite de 2 de agosto de 1939 – no mesmo dia que Albert Einstein enviou ao presidente Roosevelt a carta histórica em que alertava sobre a possibilidade da bomba atômica" (Nove Noites – Bernardo Carvalho).

A imortalidade do personagem a partir do texto, também é mencionada neste capitulo. Haroldo de Campos escreve, na introdução do volume I, da "ILIADA de Homero", que no canto 9 (GLÓRIA DOS HERÓIS), expressão que Homero identifica a poesia épica, Áquiles retira-se da guerra deixando de ser personagem. Segundo Haroldo de Campos "esse episódio permite entender melhor o tratamento que recebe o tema da imortalidade na épica e a própria função da poesia na sociedade oral. Pouco depois da referência ao canto de Áquiles, há a famosa passagem em que o herói recorda o futuro que lhe fora previsto por Tétis: ou ele retornaria para a casa, garantindo assim a própria longevidade, ou participaria da guerra e teria morte precoce, alcançado, porém, a ‘gloria imperecível’. Em outras palavras, o herói torna-se personagem épico se aceita de antemão a brevidade da vida. (...) como ninguém luta para alcançar a primeira condição (morte prematura), é lícito deduzir que o herói épico combate para atingir a imortalidade que lhe propicia a poesia e lhe nega a vida. (...) Se a poesia garante a eternidade é porque ela é eterna." (Ilíada de Homero – vol I, Haroldo de Campos – 3º edição – pág. 11-12). "Não podia ter pensado que quanto mais o homem tenta escapar da morte mais se aproxima da autodestruição." (Nove Noites – Bernardo Carvalho). Ao cometer o suicídio Buell Quain tornou-se personagem, deixou de ser mortal para tornar-se imortal, junto com a estrutura narrativa, na forma de um palimpsesto.


No terceiro capítulo, o texto volta a ser o testamento. O narrador retorna ao fato dele ter medo de que as suas desconfianças sobre a causa do suicídio do Dr. Buell, morra com ele. "Já não posso me arriscar a que tudo desapareça comigo." (Nove Noites) As palavras contidas nas cartas, segundo o narrador, foram as armas letais que penetraram no espírito de Buell, e as deixou num estado de letargia, levando-o a cometer o suicídio, para se transformar em personagem, ou seja, as palavras o mataram, para em seguida ressuscitá – lo, envolto ao mistério, levando os homens a mergulharem no mundo da imaginação. "A verdade depende apenas da confiança de que ouve." (Nove Noites) Está frase faz referência a diversas justificativas, dada pelo personagem, para a sua tristeza e sua prostração.
No quarto capítulo, narrado pelo jornalista, ele expõe os motivos que levaram o etnológo a tirar a vida. "Todo mundo quer saber o que sabem os suicidas (...) ninguém pode estar totalmente só no mundo. Tinha que haver uma carta em que ele revelasse os seus sentimentos." (Nove Noites) O texto percorre as cartas deixadas por Buell a duas mulheres, e também aborda algo bem peculiar, que é o desejo, de que algo tivesse ocorrido entre o etnológo e Dona Júlia, por parte de sua descendente, ao alegar ao jornalista que a mãe e Buell mantivera um flerte.
No quinto capítulo, o jornalista encontra uma pessoa que conheceu Buell, é uma recorrência fragmentada, porém fora dos textos: a fotografia, que é capaz de fixar a imagem de um objeto . "Na minha obsessão, cheguei a me flagrar várias vezes com a foto na mão, intrigado, vidrado, tentando em vão arrancar uma resposta dos olhos de Wagley, de dona Heloísa ou Ruth Landes." (Nove Noites)
"(...) perguntei sobre a aparência física dele, sobre o que no geral eu já sabia, na verdade estava mais interessado nas impressões que havia deixado e nas reações que a sua figura podia ter provocado, do que na imagem real" (Nove Noites). O narrador questiona o fato de estar relacionadas com dinheiro, as cartas testamentos deixadas por Quain.
A suposta riqueza do etnólogo, como um conflito do qual ele necessitasse esconder das pessoas, com as quais ele convivia profissionalmente. "(...) o jovem etnólogo americano ajudou a descarregar um caminhão com a bagagem de Lévi-Strauss, o que apenas reforçou na cabeça do brasileiro a idéia de que Buell Quain tinha a preocupação constante de demostrar que não era ninguém, como se fosse só um serviçal." (Nove Noites)
No sexto capítulo, o texto volta a ser o testamento. Até quando o texto suporta os acontecimentos do mundo, o personagem em seus olhos trazia com ele toda a arqueologia do homem, seus olhos passavam cenas como num cinema: " (...) mas o que lhe marcou os olhos para sempre, deixando-lhe aquela expressão que ele tentava disfarçar em vão e que eu apreendi quando chegou a Carolina na distração do seu cansaço, os olhos que traziam o que ele tinha visto pelo mundo." (Nove Noites)
"Penso em como são formadas as personalidades peculiares. Se são como as outras, se são como nós. O que pode ter passado um homem na infância para trazer uma cicatriz daquelas na barriga? Que espécie de sofrimento o pôs em sintonia com um mundo pior que o seu?" (Nove Noites).
No sétimo capítulo, narrado pelo jornalista, é abordado a situação delicada dos estrangeiros no Estado Novo. Estes estado de precariedade da estada dos pesquisadores no Brasil, no início da guerra, de um certo xenofobismo aos americanos no país, uma desconfiança paranóica a tudo e a todos por parte dos pesquisadores americanos, pode se ressalvar a complexidade da narrativa, que é construída em cima de um vaso quebrado, num acidente, na história da antropologia.
No oitavo capítulo, o testamento, o narrador aborda como se deu a primeira noite dele, com o seu personagem. E para argüi-lo, partiu para a provocação, conseguindo com que o etnólogo disparasse a falar: " se faço as contas, vejo que foram apenas nove noites. Mas foram como a vida toda. A primeira, na véspera de sua partida para a aldeia. Depois, mais sete durante a sua passagem por Carolina em maio e junho quando vinha a minha casa em busca de abrigo, e a última quando o acompanha pelo primeiro trecho de sua volta à aldeia, pernoitamos no mato, debaixo do céu de estrelas. A última noite foi por minha conta. Ele não havia requisitado a minha companhia, mas senti que devia acompanhá-lo a cavalo, nem que fosse apenas no primeiro trecho do percurso, como se de alguma maneira soubesse o que àquela altura não podia saber, que nunca mais o veria. O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou e da minha imaginação ao longo de nove noites. Foi assim que imaginei o seu sonho e o seu pesadelo. O paraíso e o inferno." (Nove Noites)
A primeira noite: " uma sociedade muito rígida nas suas leis e nas suas regras, onde, no entanto, cabe aos indivíduos escolher os seus papéis. (...) Na escuridão da sala de cinema, a luz de prata se acendeu na tela e uma vida impensada se descortinou diante dele, uma nova possibilidade e uma saída, como se um caminho inexplorado se abrisse à sua frente. (...) Cada um verá as suas miragens." (Nove Noites)
"O sonho de uns é a realidade de outros. E o mesmo pode ser dito dos pesadelos. (...) O sonho é um ponto de vista. É um lugar de onde se vê." (Nove Noites)
Em meio a estas histórias, contadas pelo personagem ao narrador, misturam-se as vozes, entram em estado de comunhão. "Posso não ter imaginado o paraíso, mas o inferno eu pude ver. O pesadelo é um jeito de encarar o medo com os olhos de que sonha". (Nove Noites)
No nono capítulo, o narrador jornalista faz um diálogo com Dante, o personagem desce ao inferno. "O jovem antropólogo teria obtido o medicamento e por sorte o incluíra na sua bagagem depois de a mãe ter lido um artigo numa revista médica e lhe mandado o recorte para o Rio de Janeiro. De alguma forma, nem que fosse à distância, ela tentava ser útil e acompanhar os desígnios do filho em sua descida ao inferno." (Nove Noites)
Encontra-se neste capítulo o poder da linguagem para criar um ambiente de terror, medo e insegurança. "os Kamayará inventam histórias e lendas para acirrar o clima de terror. Tinham uma sensibilidade muito aguçada para a maldade psicológica. (...) Os conflitos, em geral ligados ao sexo e ao adultério, ou eram substituídos por práticas, em que os envolvidos descarregavam suas diferenças emocionais por meio de ações simbólicas numa espécie de teatro improvisado no centro da aldeia." (Nove Noites)
No décimo capítulo, o texto testamento, o narrador coloca a sua versão sobre a experiência do etnólogo entre os índios Trumai. "A ele, só restava observar, que em princípio era a única razão da sua presença entre os Trumai. Quando ele chegou aqui, estava cansado desse papel. Mas também tinha horror da idéia de ser confundido com as culturas que observava." (Nove Noites)
O conflito se apresenta, visto que o etnólogo compartilha com os que pertencem, a mesma cultura que a sua, as mesmas insatisfações, angústias e desejos. Segundo o etnólogo Bronislaw Malinowski "um dos refúgios fora dessa prisão mecânica da cultura é o estudo das formas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades longínquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga romântica para longe de nossa cultura uniformizada." A dificuldade do etnólogo de compreender a alteridade, pois o outro não é considerado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele. "(...) mas outro garoto, logo depois da primeira ereção, compareceu uma noite à casa do dr. Buel para se vangloriar e certa vez chegou a copular com uma menina sob os olhos do antropólogo, de propósito para se mostrar, sabendo que era observado. O sexo assombrava a solidão do meu amigo. Também parece ter ficado impressionado, tanto que me contou, ainda naquela primeira noite (...), que na passagem para a idade adulta, como um rito de iniciação, os meninos Trumai tinham o corpo inteiro esfolado com uma pata afiada de tatu. Era uma prova de coragem, uma recompensa e uma honra (...). Entre os Trumai, as cicatrizes eram muito admiradas. Os meninos de sete anos expunham com orgulho as marcas que as cerimônias lhes deixavam pelo corpo. Foi quando, para a minha surpresa, ele abriu a própria camisa e me mostrou uma cicatriz que ia da barriga ao peito." (Nove Noites)
"É que os Trumai vêem na morte uma saída e uma libertação dos seus temores e sofrimentos." (Nove Noites)
"E compreendendo por que quisesse tanto voltar aos Trumai e ao inferno que me relatou. Como se estivesse cego por algum tipo de abstinação. Queria impedir que desaparecessem para sempre. O livro que escreveria sobre eles seria uma forma de mantê-los vivos, e a si mesmo." (Nove Noites)
No décimo primeiro capítulo, o narrador jornalista vira um narrador personagem, nas aventuras que passará com o seu pai, quando criança no Xingu, e faz um elo com a história do antropólogo, para representar o seu inferno, que por coincidência também ficava no Xingú.
No décimo segundo capítulo, não se inicia com a frase dos outros capítulos testamentários. O personagem apresenta-se paranóico, tinha medo, pois dizia estar sendo perseguido. "De certo modo, ele se matou para sumir do seu campo de visão, para deixar de se ver." (Nove Noites)
No décimo terceiro capítulo, o narrador jornalista em meio a suas investigações sobre o que levou o etnológo ao suicídio, desconfia que haveria uma carta que possivelmente foi extraviada. "Para mim, a resposta só podia estar em uma das cartas que escreveu antes de morrer, (...) foi quando comecei a acalentar a suposição de que devia (ou ter havido) uma oitava carta". (Nove Noites)
Neste capitulo, se faz uma intextualidade com o poema "Elegia 1938" de Carlos Drummond de Andrade: Neste poema aparece repudiava a feiúra da usura capitalista: "... Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar para outro século a felicidade coletiva./ Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.".
Elegia era o nome dado pelos gregos a um tipo cujo tema estava ligado à morte. Seu tom era, portanto, sempre triste, de lamentação. O ano de 1938 identifica-se com um período de grande desenvolvimento industrial e uma grave crise social e política, que teria como uma das suas decorrências a Segunda Guerra Mundial. A esse quadro o poeta refere-se como um "mundo caduco"


Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas eas ações não enceram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guardas chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas por entre os mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade
No décimo quarto capítulo, a frase "isto é para quando você vier" (Nove Noites), retorna como início do capitulo do testamento. "(...) O dr. Buell confessou que viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada naquele retrato. Como um desafio e uma aposta que fizera consigo mesmo. Havia sido traído pelo intruso e sua câmara. Não podia admitir que aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto diante do desconhecido." (Nove Noites) E a confissão do narrador: "Eu só sei que esse estranho era você" (Nove Noites).
No décimo quinto capítulo, o narrador jornalista dar mais detalhe sobre este estranho que tirou furtivamente a foto de Buell, que o narrador reproduz numa declaração da mãe: "um amigo, um artista de Nova Iorque que tinha como hobby esse tipo de coisas, fez Buell prometer que um dia o deixaria fotografá-lo. O amigo se cansou de esperar e foi ao apartamento de Buell sem lhe dar a chance de se barbear ou trocar de roupa". (Nove Noites) Ou seja, não lhe deu chance de colocar uma mascara.
No décimo sexto capítulo, o narrador do testamento fala: "o que eu sei é o que ele me contou e o que imaginei. Você sabe de coisas dessa ilha que eu mesmo nunca poderei saber. (...) Se as coisas que tenho a dizer estão todas pela metade, e podem soar como insignificantes aos ouvidos de outra pessoa, é porque estão à sua espera para fazer sentido. Só você pode entender o que quero dizer, pois tem a chave que me falta. Só você tem a outra parte da história." (Nove Noites)
No décimo sétimo capítulo, o narrador jornalista aborda a possível homossexualidade do antropólogo.
No décimo oitavo capítulo, o narrador do testamento não começa com a frase "isto é quando para você vier", mas fica claro que é uma continuação do capítulo décimo sexto. Ele termina o testamento dizendo: "o que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever." (Nove Noites)
No décimo nono capítulo, fica claro como a ninguém é possível saber a verdade. O texto é um dialogo constante com outros textos, porém, é sempre um outro texto. E se não quiser continuar contando as mil e uma histórias, nas mil e uma noites, só existe uma solução: virar para o lado, contrariando a natureza humana, dormir, e calar os mortos.