"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

28 julho 2004

JOGADO AOS LEÕES



Como é desalentador ver um profissional das ciências humanas utilizar seus conhecimentos, adquiridos ao longo de vários anos, para rotular e diagnosticar como alcoólatra, sádico, megalomaníaco e paranóico um ser humano. Em cima apenas de material coletado na imprensa, em biografias e imagens de televisão. A ética foi jogada no lixo? O ser humano não é mais importante do que o espetáculo? Ter cinco minutos de fama ao preço da execração de uma pessoa é ser profissional?
A matéria prima da psicanálise é sem dúvida a palavra, é através desta que o analista poderá penetrar nas águas turvas em que se encontra mais que a ponta do iceberg do outro. No discurso manifesto é possível colher as reminiscências do discurso latente. É como se o analista tentasse captar a sinuosa sinfonia do vento em meio a um barulho ensurdecedor. Mas pegar a biografia de vários componentes da família Bush, notícias de jornais, documentários, programas de televisão e de rádio e fazer um diagnóstico do atual presidente dos USA, da maneira como o senhor Justin Frank o fez em seu livro "Bush on the couch" (Bush no divã), é mais do que irresponsabilidade, é a negação da subjetividade e da própria psicanálise.
Quando Freud utilizou a psicanálise aplicada para fazer o diagnóstico de Leonardo Da Vinci, Moisés e do Pequeno Hans, eram, os dois primeiros, personagens importantes da cultura ocidental, que não sofreriam com a divulgação das hipóteses levantadas sobre suas personalidades; quanto ao terceiro, ele teve o cuidado de usar um nome fictício. Além disto, foi a maneira encontrada por ele para mostrar como era aplicado o método psicanalítico. Tendo em vista as dificuldades para o ensino da nova ciência, apresentadas em seu livro "Introdução à Psicanálise", decorrentes de não se poder assistir a um tratamento psicanalítico, restava apenas, ao futuro profissional, aprender através do ouvir falar. Esta aprendizagem de segunda mão iria depender, em grande parte, de leituras e preleções, ou, então, do estudo da própria personalidade através da auto-análise ou daquela feita por um psicanalista. No caso da divulgação do estudo da personalidade de Da Vinci, de Moisés e do Pequeno Hans, era mais uma forma de oferecer material de estudo do processo analítico, elaborado por um grande mestre, sem a pretensão de uso para a destruição de nenhum dos analisados.
Volto agora a refletir sobre as fontes utilizadas pelo senhor Frank. O texto, ao ser escrito, fica muito diferente do que é falado e a imagem, ao ser editada, também sofre interferência, que distorce a imagem original. Para uma ciência em que a principal ferramenta de trabalho é a linguagem, tem que se estar ciente das armadilhas criadas por ela. É um terreno movediço, mesmo para um profissional, fazer diagnósticos com linguagens tão trabalhadas, envolvendo a vida de uma pessoa que tem repercussão mundial.
É como se Bush fosse jogado aos leões e a platéia, extasiada, assistissem à sua destruição. Mas esse não deve ser o papel da psicanálise e mesmo da psiquiatria. Parece, apesar de citá-lo, que o senhor Frank não leu Freud, já que uma de suas lições diz que o tratamento analítico não comporta mais que a troca de palavras entre paciente e psicanalista. Esta conversação, porém, não tolera ouvintes. As informações de que o analista precisa o paciente só as dará se sentir uma certa afinidade com ele. Pois estes dados se referem ao que há de mais íntimo na vida psíquica do paciente, a tudo que ele deve, como pessoa autônoma, ocultar aos outros e, enfim, a tudo o que não quer confessar a si mesmo.
Não concordo, como pessoa inserida em um mundo tão assustador, com as atitudes políticas de Bush, sustentadas por grande parte da população americana. Ele não teria feito, tudo o que fez, se não tivesse o apoio do povo norte-americano. Mesmo que ele tenha todos estes distúrbios, apresentados no livro, toda a barbárie que vemos foi compartilhada e aceita pela população. O fato da possível doença, neste caso, é secundário.
Também gostaria que ele não fosse reeleito, mas utilizar de meios tão esdrúxulos para derrotá-lo é covarde e desumano. A ciência e a pseudo-ciência já compactuaram com muitas barbáries na história. Temos a lição de quão doloroso foi isto para todos. Portanto, devemos lutar por uma ciência em prol do homem. E não contra ele, seja quem for.
Para pensar:
"As palavras faziam primitivamente parte da magia, e ainda hoje a palavra conserva muito de seu poder de outrora. Com palavras um homem pode tornar seu semelhante feliz ou levá-lo ao desespero, e é valendo-se de palavras que o mestre transmite seu saber aos discípulos, que um orador impressiona os ouvintes, determinando seus juízos e decisões. As palavras provocam emoções e constituem para os homens o meio geral de se influenciarem reciprocamente."
Sigmund Freud - Introdução à Psicanálise - Vol. VII. Obras Completas. Pag.10