"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

30 agosto 2004

NOVE NOITES - MINHAS IMPRESSÕES


A análise abaixo é apenas as minhas impressões sobre o livro: Nove Noites de Bernardo Carvalho, indicado para o vestibular da UFMG de 2005. Sem maiores pretensões.

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Um dos aspectos importantes no início do livro, é a forma como o narrador levanta dúvidas em vários trechos do capitulo sobre a verdade. Quando ele expressa não ter lido as cartas deixadas pelo etnólogo e sim apenas teve o conhecimento do conteúdo a partir das traduções feitas pelo professor Pessoa: "(...) naquela cidade morta, como ele a descreveu, se formos confiar nas traduções do professor Pessoa." (Nove Noites – Bernardo Carvalho). Este recorte, aborda a complexidade do texto literário e como a sua verdade é relativa. A riqueza que emerge de sua teia textual, sempre que há o contato ele, expressará verdades diversas. Da mesma forma, que não podemos atravessar o rio duas vezes, pois nem as suas águas, nem nós, seremos os mesmos, também não podemos ler o mesmo texto duas vezes. O narrador, também, leva o leitor a duvidar de sua própria versão, pois o livro se constituirá em cima de vários textos: testamentos, cartas, notícias de jornais e finalmente o romance. Mostrando-nos, que o romance se constituirá num palimpsesto.

O testamento deixado a este estranho, narrado pelo engenheiro de Carolina, Manoel Nobrega, vem no texto como se fosse reescrito várias vezes, como um rascunho. Apresenta a transitoriedade das idéias e dos fatos. O desejo de expressão sempre fragmentado no texto. O trabalho estético e factual para o outro que se escreve, expressando a falta, um buraco, uma dúvida exigindo sempre a reescrita.
A intercalação entre os textos, dos dois narradores, é um diálogo constante, distanciado no tempo. É como se os dois mantivessem uma conversa, com os seus pontos de vista, cada um a partir da experiência que tiveram com o personagem, depoimentos, cartas, relatórios, fotos.
Franz Boas que aparece no livro como professor de Buell Quain, foi um dos representantes da corrente difusionista e fundador da antropologia cultural norte americana, que visa estudar a distribuição geográfica dos traços culturais, explicando a sua presença por sucessão de empréstimos de um grupo a outro. Esta corrente se intextualiza com o livro, visto que o empréstimo pode ser incompleto ou fragmentado. Disto, decorre as distorções na interpretação de numerosos fatos, por ser subestimadas as capacidades inventivas do homem e os excessivos esquemas dos mecanismos de difusão.
É como uma caixa dentro de uma caixa, dentro de outra caixa, na busca do núcleo. A busca do diferente, a busca do excepcional, será capaz de explicar o que levou o antropólogo a por fim em sua própria vida? As hipóteses delineadas pelos dois narradores surgiram de maneira muito sutil no decorrer da narrativa, de forma fragmentada, sem vínculos concretos e imbuídos a partir de alguma espécie de narrativa: carta, retrato, cinema, mitos, analogias, jornal, depoimentos e relatos.
Nada no livro é abordado de forma gratuita, e em função da sua complexidade, o romance questiona a neutralidade cientifica, a incapacidade de expressão de forma objetiva. Tudo nele é construído em cima de uma colcha de retalhos, como a própria literatura.
A construção do romance, é como se fosse a constituição de uma partitura, na tentativa de harmonizar os diversos fragmentos da vida do personagem na voz de dois narradores, que como um maestro darão ritmos diferentes aos capítulos que compõem o romance.
Nos capítulos constituídos pelo testamento, os textos se iniciam com a frase: "Isto é para quando você vier." (Nove Noites). As pessoas não suportam conviver com a dúvida. Na maioria das vezes justificam os fatos de maneira imprecisa para colocar um fim em suas dúvidas. "É lamentável que o seu desaparecimento tenha sido de um modo tão doloroso. Ainda ignoramos os motivos que o levaram a tal atitude. Mas, segundo notícias colhidas de fontes que reputamos certas, podemos adiantar que tenha sido por questões familiares." (Nove Noites)
O livro em seu primeiro capitulo se assemelha muito com a essência da trama do filme "o cidadão Kane" que após a morte de um grande magnata da imprensa norte americana, chamado Charles Foster Kane, um jornalista recebe a missão de descobrir o significado da enigmática palavra, rosebud, que surge dos lábios do magnata no momento de sua morte. Mas como no livro, a história toda do personagem, será reconstruída fragmentariamente, apenas com algumas passagens cruciais de sua vida.
O primeiro capitulo é um testamento, e a narrativa se dirige a um receptor que não se sabe quem é, criando como efeito, de que ele é dirigido ao leitor. Uma carta que o narrador guarda, para entregar ao seu devido destinatário. Com o passar do tempo a cidade se esquece de tudo que se sucedeu com Dr. Buell, aparece outro, sem muito mérito, para assumir a sua função, mas o narrador angustiado por não poder entregar a carta deixada pelo etnólogo ao seu devido destinatário, decide deixar um testamento relatando os motivos que o levou a guardar a carta e com isto, fará com que a narrativa comece a tomar corpo.

"faz anos que o espero, mas já não posso me arriscar ou desafiar a morte" (Nove Noites – Bernardo Carvalho)

Mas este capítulo em formato de um testamento, não é um texto qualquer, visto que ele é uma possibilidade de expressão, de realização de um desejo, após a morte, ou seja, é uma maneira de se manter vivo no tempo através do texto. Como Bach que levou quase um século após a sua morte, cego em sua cama de nogueira, entre os mortos pobres, esquecido por todos, será ressuscitado pela Paixão. Somente em 1819, com a apresentação de sua "Paixão Segundo São Mateus", dirigida por Mendelssohn, é que ocorreu o renascimento de Bach para a posteridade. Pois a sua mulher, depois de ver as belíssimas cantatas de seu marido serem empurradas aos montes, para dentro de sacos e levadas com se fossem lixo, ela não deixou que ninguém jogasse dentro de um saco e levasse embora a Paixão, guardou para si, a peça tão amada de Bach, que só encontrou um receptor depois de um século. O texto tem vida própria, mas precisa de um guardião para levá-lo para outras gerações.

O segundo capitulo começa com um novo narrador, e com ele o personagem passeia no tempo e encontra um receptor que mergulhará em um novo texto, agora num artigo de jornal. Percebe-se que a narrativa não é pontual, ela é permanente, e mais uma vez o texto aparece dentro do texto de outro texto: "o artigo tratava das cartas de outro antropólogo, que também havia morrido entre os índios do Brasil, em circunstância ainda hoje debatidas pela academia e citava de passagem, em uma única frase, por analogia, o caso de Buell Quain, que se suicidou entre os índios Krahô em agosto de 1939." (Nove Noites – Bernardo Carvalho)

Porém esta citação não é suficiente para o narrador conhecer aquele personagem, é preciso sair em busca de outros textos por causa da desfragmentação textual."os papeis estão espalhados em arquivos no Brasil e nos Estados Unidos. (...) e aos poucos fui montando um quebra cabeça e criando a imagem de quem eu procurava" (Nove Noites – Bernardo Carvalho). E assim, um novo texto começa a ser costurado.

A narrativa não nasce do nada, mas de uma combinação de acasos, da paixão por um outro texto. É uma fórmula que se cria, porém não podemos ter controle, a partir da sua criação, sobre como ela será utilizada. "Bull Quain se matou na noite de 2 de agosto de 1939 – no mesmo dia que Albert Einstein enviou ao presidente Roosevelt a carta histórica em que alertava sobre a possibilidade da bomba atômica" (Nove Noites – Bernardo Carvalho).

A imortalidade do personagem a partir do texto, também é mencionada neste capitulo. Haroldo de Campos escreve, na introdução do volume I, da "ILIADA de Homero", que no canto 9 (GLÓRIA DOS HERÓIS), expressão que Homero identifica a poesia épica, Áquiles retira-se da guerra deixando de ser personagem. Segundo Haroldo de Campos "esse episódio permite entender melhor o tratamento que recebe o tema da imortalidade na épica e a própria função da poesia na sociedade oral. Pouco depois da referência ao canto de Áquiles, há a famosa passagem em que o herói recorda o futuro que lhe fora previsto por Tétis: ou ele retornaria para a casa, garantindo assim a própria longevidade, ou participaria da guerra e teria morte precoce, alcançado, porém, a ‘gloria imperecível’. Em outras palavras, o herói torna-se personagem épico se aceita de antemão a brevidade da vida. (...) como ninguém luta para alcançar a primeira condição (morte prematura), é lícito deduzir que o herói épico combate para atingir a imortalidade que lhe propicia a poesia e lhe nega a vida. (...) Se a poesia garante a eternidade é porque ela é eterna." (Ilíada de Homero – vol I, Haroldo de Campos – 3º edição – pág. 11-12). "Não podia ter pensado que quanto mais o homem tenta escapar da morte mais se aproxima da autodestruição." (Nove Noites – Bernardo Carvalho). Ao cometer o suicídio Buell Quain tornou-se personagem, deixou de ser mortal para tornar-se imortal, junto com a estrutura narrativa, na forma de um palimpsesto.


No terceiro capítulo, o texto volta a ser o testamento. O narrador retorna ao fato dele ter medo de que as suas desconfianças sobre a causa do suicídio do Dr. Buell, morra com ele. "Já não posso me arriscar a que tudo desapareça comigo." (Nove Noites) As palavras contidas nas cartas, segundo o narrador, foram as armas letais que penetraram no espírito de Buell, e as deixou num estado de letargia, levando-o a cometer o suicídio, para se transformar em personagem, ou seja, as palavras o mataram, para em seguida ressuscitá – lo, envolto ao mistério, levando os homens a mergulharem no mundo da imaginação. "A verdade depende apenas da confiança de que ouve." (Nove Noites) Está frase faz referência a diversas justificativas, dada pelo personagem, para a sua tristeza e sua prostração.
No quarto capítulo, narrado pelo jornalista, ele expõe os motivos que levaram o etnológo a tirar a vida. "Todo mundo quer saber o que sabem os suicidas (...) ninguém pode estar totalmente só no mundo. Tinha que haver uma carta em que ele revelasse os seus sentimentos." (Nove Noites) O texto percorre as cartas deixadas por Buell a duas mulheres, e também aborda algo bem peculiar, que é o desejo, de que algo tivesse ocorrido entre o etnológo e Dona Júlia, por parte de sua descendente, ao alegar ao jornalista que a mãe e Buell mantivera um flerte.
No quinto capítulo, o jornalista encontra uma pessoa que conheceu Buell, é uma recorrência fragmentada, porém fora dos textos: a fotografia, que é capaz de fixar a imagem de um objeto . "Na minha obsessão, cheguei a me flagrar várias vezes com a foto na mão, intrigado, vidrado, tentando em vão arrancar uma resposta dos olhos de Wagley, de dona Heloísa ou Ruth Landes." (Nove Noites)
"(...) perguntei sobre a aparência física dele, sobre o que no geral eu já sabia, na verdade estava mais interessado nas impressões que havia deixado e nas reações que a sua figura podia ter provocado, do que na imagem real" (Nove Noites). O narrador questiona o fato de estar relacionadas com dinheiro, as cartas testamentos deixadas por Quain.
A suposta riqueza do etnólogo, como um conflito do qual ele necessitasse esconder das pessoas, com as quais ele convivia profissionalmente. "(...) o jovem etnólogo americano ajudou a descarregar um caminhão com a bagagem de Lévi-Strauss, o que apenas reforçou na cabeça do brasileiro a idéia de que Buell Quain tinha a preocupação constante de demostrar que não era ninguém, como se fosse só um serviçal." (Nove Noites)
No sexto capítulo, o texto volta a ser o testamento. Até quando o texto suporta os acontecimentos do mundo, o personagem em seus olhos trazia com ele toda a arqueologia do homem, seus olhos passavam cenas como num cinema: " (...) mas o que lhe marcou os olhos para sempre, deixando-lhe aquela expressão que ele tentava disfarçar em vão e que eu apreendi quando chegou a Carolina na distração do seu cansaço, os olhos que traziam o que ele tinha visto pelo mundo." (Nove Noites)
"Penso em como são formadas as personalidades peculiares. Se são como as outras, se são como nós. O que pode ter passado um homem na infância para trazer uma cicatriz daquelas na barriga? Que espécie de sofrimento o pôs em sintonia com um mundo pior que o seu?" (Nove Noites).
No sétimo capítulo, narrado pelo jornalista, é abordado a situação delicada dos estrangeiros no Estado Novo. Estes estado de precariedade da estada dos pesquisadores no Brasil, no início da guerra, de um certo xenofobismo aos americanos no país, uma desconfiança paranóica a tudo e a todos por parte dos pesquisadores americanos, pode se ressalvar a complexidade da narrativa, que é construída em cima de um vaso quebrado, num acidente, na história da antropologia.
No oitavo capítulo, o testamento, o narrador aborda como se deu a primeira noite dele, com o seu personagem. E para argüi-lo, partiu para a provocação, conseguindo com que o etnólogo disparasse a falar: " se faço as contas, vejo que foram apenas nove noites. Mas foram como a vida toda. A primeira, na véspera de sua partida para a aldeia. Depois, mais sete durante a sua passagem por Carolina em maio e junho quando vinha a minha casa em busca de abrigo, e a última quando o acompanha pelo primeiro trecho de sua volta à aldeia, pernoitamos no mato, debaixo do céu de estrelas. A última noite foi por minha conta. Ele não havia requisitado a minha companhia, mas senti que devia acompanhá-lo a cavalo, nem que fosse apenas no primeiro trecho do percurso, como se de alguma maneira soubesse o que àquela altura não podia saber, que nunca mais o veria. O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou e da minha imaginação ao longo de nove noites. Foi assim que imaginei o seu sonho e o seu pesadelo. O paraíso e o inferno." (Nove Noites)
A primeira noite: " uma sociedade muito rígida nas suas leis e nas suas regras, onde, no entanto, cabe aos indivíduos escolher os seus papéis. (...) Na escuridão da sala de cinema, a luz de prata se acendeu na tela e uma vida impensada se descortinou diante dele, uma nova possibilidade e uma saída, como se um caminho inexplorado se abrisse à sua frente. (...) Cada um verá as suas miragens." (Nove Noites)
"O sonho de uns é a realidade de outros. E o mesmo pode ser dito dos pesadelos. (...) O sonho é um ponto de vista. É um lugar de onde se vê." (Nove Noites)
Em meio a estas histórias, contadas pelo personagem ao narrador, misturam-se as vozes, entram em estado de comunhão. "Posso não ter imaginado o paraíso, mas o inferno eu pude ver. O pesadelo é um jeito de encarar o medo com os olhos de que sonha". (Nove Noites)
No nono capítulo, o narrador jornalista faz um diálogo com Dante, o personagem desce ao inferno. "O jovem antropólogo teria obtido o medicamento e por sorte o incluíra na sua bagagem depois de a mãe ter lido um artigo numa revista médica e lhe mandado o recorte para o Rio de Janeiro. De alguma forma, nem que fosse à distância, ela tentava ser útil e acompanhar os desígnios do filho em sua descida ao inferno." (Nove Noites)
Encontra-se neste capítulo o poder da linguagem para criar um ambiente de terror, medo e insegurança. "os Kamayará inventam histórias e lendas para acirrar o clima de terror. Tinham uma sensibilidade muito aguçada para a maldade psicológica. (...) Os conflitos, em geral ligados ao sexo e ao adultério, ou eram substituídos por práticas, em que os envolvidos descarregavam suas diferenças emocionais por meio de ações simbólicas numa espécie de teatro improvisado no centro da aldeia." (Nove Noites)
No décimo capítulo, o texto testamento, o narrador coloca a sua versão sobre a experiência do etnólogo entre os índios Trumai. "A ele, só restava observar, que em princípio era a única razão da sua presença entre os Trumai. Quando ele chegou aqui, estava cansado desse papel. Mas também tinha horror da idéia de ser confundido com as culturas que observava." (Nove Noites)
O conflito se apresenta, visto que o etnólogo compartilha com os que pertencem, a mesma cultura que a sua, as mesmas insatisfações, angústias e desejos. Segundo o etnólogo Bronislaw Malinowski "um dos refúgios fora dessa prisão mecânica da cultura é o estudo das formas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades longínquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga romântica para longe de nossa cultura uniformizada." A dificuldade do etnólogo de compreender a alteridade, pois o outro não é considerado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele. "(...) mas outro garoto, logo depois da primeira ereção, compareceu uma noite à casa do dr. Buel para se vangloriar e certa vez chegou a copular com uma menina sob os olhos do antropólogo, de propósito para se mostrar, sabendo que era observado. O sexo assombrava a solidão do meu amigo. Também parece ter ficado impressionado, tanto que me contou, ainda naquela primeira noite (...), que na passagem para a idade adulta, como um rito de iniciação, os meninos Trumai tinham o corpo inteiro esfolado com uma pata afiada de tatu. Era uma prova de coragem, uma recompensa e uma honra (...). Entre os Trumai, as cicatrizes eram muito admiradas. Os meninos de sete anos expunham com orgulho as marcas que as cerimônias lhes deixavam pelo corpo. Foi quando, para a minha surpresa, ele abriu a própria camisa e me mostrou uma cicatriz que ia da barriga ao peito." (Nove Noites)
"É que os Trumai vêem na morte uma saída e uma libertação dos seus temores e sofrimentos." (Nove Noites)
"E compreendendo por que quisesse tanto voltar aos Trumai e ao inferno que me relatou. Como se estivesse cego por algum tipo de abstinação. Queria impedir que desaparecessem para sempre. O livro que escreveria sobre eles seria uma forma de mantê-los vivos, e a si mesmo." (Nove Noites)
No décimo primeiro capítulo, o narrador jornalista vira um narrador personagem, nas aventuras que passará com o seu pai, quando criança no Xingu, e faz um elo com a história do antropólogo, para representar o seu inferno, que por coincidência também ficava no Xingú.
No décimo segundo capítulo, não se inicia com a frase dos outros capítulos testamentários. O personagem apresenta-se paranóico, tinha medo, pois dizia estar sendo perseguido. "De certo modo, ele se matou para sumir do seu campo de visão, para deixar de se ver." (Nove Noites)
No décimo terceiro capítulo, o narrador jornalista em meio a suas investigações sobre o que levou o etnológo ao suicídio, desconfia que haveria uma carta que possivelmente foi extraviada. "Para mim, a resposta só podia estar em uma das cartas que escreveu antes de morrer, (...) foi quando comecei a acalentar a suposição de que devia (ou ter havido) uma oitava carta". (Nove Noites)
Neste capitulo, se faz uma intextualidade com o poema "Elegia 1938" de Carlos Drummond de Andrade: Neste poema aparece repudiava a feiúra da usura capitalista: "... Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota/ e adiar para outro século a felicidade coletiva./ Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.".
Elegia era o nome dado pelos gregos a um tipo cujo tema estava ligado à morte. Seu tom era, portanto, sempre triste, de lamentação. O ano de 1938 identifica-se com um período de grande desenvolvimento industrial e uma grave crise social e política, que teria como uma das suas decorrências a Segunda Guerra Mundial. A esse quadro o poeta refere-se como um "mundo caduco"


Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas eas ações não enceram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guardas chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas por entre os mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

Carlos Drummond de Andrade
No décimo quarto capítulo, a frase "isto é para quando você vier" (Nove Noites), retorna como início do capitulo do testamento. "(...) O dr. Buell confessou que viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada naquele retrato. Como um desafio e uma aposta que fizera consigo mesmo. Havia sido traído pelo intruso e sua câmara. Não podia admitir que aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto diante do desconhecido." (Nove Noites) E a confissão do narrador: "Eu só sei que esse estranho era você" (Nove Noites).
No décimo quinto capítulo, o narrador jornalista dar mais detalhe sobre este estranho que tirou furtivamente a foto de Buell, que o narrador reproduz numa declaração da mãe: "um amigo, um artista de Nova Iorque que tinha como hobby esse tipo de coisas, fez Buell prometer que um dia o deixaria fotografá-lo. O amigo se cansou de esperar e foi ao apartamento de Buell sem lhe dar a chance de se barbear ou trocar de roupa". (Nove Noites) Ou seja, não lhe deu chance de colocar uma mascara.
No décimo sexto capítulo, o narrador do testamento fala: "o que eu sei é o que ele me contou e o que imaginei. Você sabe de coisas dessa ilha que eu mesmo nunca poderei saber. (...) Se as coisas que tenho a dizer estão todas pela metade, e podem soar como insignificantes aos ouvidos de outra pessoa, é porque estão à sua espera para fazer sentido. Só você pode entender o que quero dizer, pois tem a chave que me falta. Só você tem a outra parte da história." (Nove Noites)
No décimo sétimo capítulo, o narrador jornalista aborda a possível homossexualidade do antropólogo.
No décimo oitavo capítulo, o narrador do testamento não começa com a frase "isto é quando para você vier", mas fica claro que é uma continuação do capítulo décimo sexto. Ele termina o testamento dizendo: "o que lhe conto é uma combinação do que ele me contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar o que nunca poderei lhe contar ou escrever." (Nove Noites)
No décimo nono capítulo, fica claro como a ninguém é possível saber a verdade. O texto é um dialogo constante com outros textos, porém, é sempre um outro texto. E se não quiser continuar contando as mil e uma histórias, nas mil e uma noites, só existe uma solução: virar para o lado, contrariando a natureza humana, dormir, e calar os mortos.

27 agosto 2004

BRASIL E A SUA BARBÁRIE


O texto abaixo, está excelente para demostrar o caos que nós brasileiros estamos vivendo em função de 504 anos de descaso social e manipulação do povo brasileiro. Não se pode ser ingênuo e desprezar a terceira lei de Newton, toda ação tem uma reação de igual intensidade, mesma direção e em sentido contrário. Mas, no contexto social as suas proporções não são previsíveis. A barbárie está em toda parte.
"O cúmulo da covardia
Eu estava ontem caminhando em Higienópolis, simpático bairro paulistano, quando topei com um trecho da calçada em obras e tive de fazer um desvio pela rua. Olhei, o carro mais próximo estava bem longe, e fui. De repente, dois rapazes à minha frente puseram as mãos na cabeça - típico gesto diante de uma tragédia. Virei para o lado a tempo de ver, quase sentir, um carro branco passando a centímetros de mim.
O motorista gritou da janela: "Quer morrer?". Eu não quero morrer, mas ele quer matar, porque jogou o carro contra mim sem motivo. Não havia carro na outra pista, nem buracos, nada. Foi a violência pela violência.
Num segundo, ficou claro por que atacam mendigos a pauladas ou marretadas na cabeça. É o ódio social aliado à sensação de poder, de força. Uns jogam carros contra pessoas indefesas. Outros miram suas armas justamente contra o lado mais fraco, contra pessoas que foram abandonadas pelo Estado e pelas famílias, que não têm teto, nem saúde, nem auto-estima, nem o que comer. Não faz sentido. Ou faz?
O ato de barbárie extrapolou São Paulo, fez escola em Pernambuco, virou questão nacional e nos faz refletir sobre onde vamos parar. Quando o Estado não faz sua parte, a elite só pensa no próprio umbigo e a classe média se digladia por migalhas públicas, o fosso social se aprofunda. E chega-se a isso: joga-se o carro contra o pedestre, mata-se por matar o mais miserável dos miseráveis.
Os seis mortos e as demais vítimas da barbárie no coração da principal cidade do mais importante Estado brasileiro são um alerta. Se foram "neonazistas", "skinheads" dessa ou daquela família, ou uns loucos do mal, é quase detalhe. O fundamental é que o espírito nazista baixa quando as instituições falham e a desigualdade social é tanta e tal. Esse, aliás, é o verdadeiro crime bárbaro."
ELIANE CANTANHÊDE – Folha de São Paulo – Editorial – 27/08/2004

16 agosto 2004

ACORDA BRASIL!!!


O texto abaixo, expressa de forma bem clara, o que eu vejo neste país. Compartilho com o jornalista a minha indignação.
PETISMO-LULISMO, CARICATURA DA DIREITA
"Os achaques mais autoritários do governo de FHC costumavam durar pouco. Depois de uma certa grita da sociedade, as pessoas mais razoáveis do governo, a começar pelo próprio presidente, em geral davam conta do vexame e recolhiam às jaulas seus projetos de tiranetes. Coisas mefíticas como a horrenda repressão militar da greve dos petroleiros (1995), o excesso de medidas provisórias e o hábito de enterrar escândalos ficaram, é verdade.
O governo Lula não só dá apoio encarniçado a macaquices autoritárias como encarna, defende, propõe e quer institucionalizar várias delas, além de herdar com gosto a mania de decretar leis e o projeto tucano de lei da mordaça, que pretende aleijar os procuradores de Justiça.
O governo quer proibir servidores públicos de falar com jornalistas. Quer invadir à vontade o sigilo bancário e fiscal de empresas. Quer meter o dedo na produção audiovisual. Dá guarida ao projeto de um de seus braços sindicais de criar um comitê de salvação pública com poder de mandar à guilhotina jornalistas que não agradem à pelegada medíocre e a seus chefes no PT. Trata-se de facilidade herdada da organização sindical do país, corporativista quase fascista, mantida com gosto e usufruto pelo petismo-lulismo.
Não se trata de uma investida autoritária, de um ataque pontual a liberdades. É um padrão de comportamento do petismo-lulismo, sério candidato a praticante da realpolitik mais cínica que já se viu neste país de descaramentos.O petismo-lulismo encarna as caricaturas que a pior direita faz da esquerda. Mente e diz o contrário do que pregava meses antes. Aparelha órgãos e cargos públicos com voracidade rara até neste país de PFLs e PMDBs. A propaganda vai além da marquetagem e maquiagem política normais. É estratégia de governo, que se esmera na fabricação de rótulos para frascos vazios, como o Fome Zero, Primeiro Emprego etc.
Lula não havia feito gesto nenhum pelo avanço institucional, democrático. Agora, quer minar as precárias liberdades do país. O que vem depois?"
VINICIUS TORRES FREIRE – Editorial da Folha de São Paulo – 16/08/04

12 agosto 2004

SOMOS CEGOS OU CONVENIENTES?


A escravidão já foi considerada por Marx como um avanço na escala evolutiva das sociedades, visto que ela sucedeu os massacres ou sacrifícios humanos a que dominados eram submetidos. Desta forma, a escravidão foi uma inovação revolucionária. Entretanto, juridicamente hoje, já foi superada, mas ainda é uma prática que rende lucros a uma elite econômica, principalmente no Brasil.
No Brasil, legalmente, faz cento de dezesseis anos que a escravidão foi extinta do Estado Brasileiro. Porém, ainda é uma prática recorrente em todo o território nacional, abrangendo vários níveis sociais. Encontram-se envolvidos como executores desta prática macabra, fazendeiros, políticos, empresários, comerciantes e famílias. Ela é tão comum, que é difícil no decorrer de um dia, não presenciarmos uma cena de exploração servil.
Um exemplo, é no ambiente doméstico, famílias que têm algum poder de compra saem em busca de jovens do interior, ou mesmo nas periferias dos centros urbanos, que se encontram em situações de miseribilidade, para trazê-las e escravizá-las em suas residências em troca de comida, roupas e sapatos usados, descartados pelos integrantes da família, e algumas migalhas que lhes são dadas como um "agrado". Porém, elas passam mais de doze horas por dia, cuidando de todos os afazeres domésticos, que é um serviço cansativo, pesado, que requer grande atividade física. A pessoa nesta situação, se torna refém do jogo perverso que é envolvida emocionalmente. "Nós trouxemos fulano e estamos ajudando-a". "Você para nós é como se fosse da família". Tornando-se difícil fazer cobranças de direitos trabalhistas a pessoas tão boas, que tratam estas jovens como se fossem da família. Neste processo, concretiza-se o trabalho escravo no ambiente doméstico.
Agora também, o que define um escravo não é a sua cor, raça, mas o seu poder econômico. O agregado e o escravo que Machado de Assis tão bem retratou em seus romances e contos, a sua condição na rede social, nunca esteve tão em voga no espaço social brasileiro.
Os exploradores do trabalhador brasileiro, para driblarem a legislação, usam de um meio lingüístico, dando outras conotações para a escravidão. Pode-se afirmar que é ela é intensiva em todos os setores da sociedade, e rentosa para a elite brasileira. Com isto, burlam a legislação, a sociedade e os organismos internacionais. E infelizmente, todos somos coniventes com ela, tanto explorados quanto exploradores...

09 agosto 2004

O ÚLTIMO TANGO EM PARIS

Caminhando pelas ruas movimentadas da jaula urbana parisiense, desanimado, abatido, um tanto calejado pelos solavancos da vida, desconfiado e com medo de amar, encontrei alguém que reavivou em mim a necessidade de compartilhar algo mais do que sexo por sexo. Mas, mais uma vez, enganei-me. O amor tornou-se impossível.

Tantas vezes reconfortei-me, provisoriamente, no contato quente do meu corpo em um outro corpo e, após ter o corpo aliviado pela descarga de algo preso a ele, como se estivesse sendo absolvido de todos os meus pecados, olhava para o lado e sentia uma imensa solidão. Estava apenas injetando uma droga qualquer em meu organismo e durante o seu efeito achava que viver era o máximo, quando, porém, ele acabava, não suportava o vazio da alma e embarcava numa nova onda de emoções, descargas e alívio, tudo sem nenhum sentido.

Entretanto, no meio do sem sentido da minha caminhada, encontrei um olhar sapeca e curioso, uma boca convidativa. Confesso que usei e abusei do banquete carnal a mim oferecido. Afinal, seria apenas mais um. A relação tornou-se repetitiva, a jovem dizia amar-me, procurava desvendar-me, saber das minhas estratégias, parecia ser uma excelente jogadora de xadrez.

Conhecedor, porém, deste jogo, e com medo de cair em suas garras, não disse nada. Mantive-me no decorrer de tantos encontros um estranho, como ela era para mim. Não sabia seu nome, origem, endereço, nada! Era alguma coisa que eu encontrei na rua. Uma vadia.

Mas o amor pegou-me, saí atrás daquela menina disposto a deixá-la quebrar-me, para conhecer o que de insignificante, cruel e nobre trazia meu ser. Disse-lhe o meu nome, o que fazia e que gostaria de viver ao seu lado, mas ela disse não.

Antes que eu pudesse pensar sobre a sua resposta, ela saiu correndo pelas ruas de Paris. Acreditando que eu a havia assustado, corri atrás dela, nem mesmo sabia o seu nome, mas a amava. Alcancei-a, beijei-a e começamos a dançar um tango. Pegando em seus cabelos perguntava o seu nome, enquanto começava a descer de meu pescoço um líquido viscoso, quente e vermelho. Estava perdendo os controle dos meus movimentos, ela com um olhar estranho e com um metal pontiagudo ensangüentado nas mãos me deixava cair no meio do salão. A melodia do tango ficava mais distante e finalmente encontrava o chão, sem vida, numa posição fetal.