"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

28 outubro 2004

MORTE - HENRIQUETA LISBOA

"Henriqueta Lisboa é, de todos os poetas do modernismo brasileiro, o que mais alto cantou o sentimento de morte. É, coisa que surpreendeu em Cruz e Souza, à medida que ia amadurecendo o tema e progredindo na técnica, passou a trabalhá-la por dentro, a quase participar da interioridade da morte".
Fábio Lucas – O Tema e a Técnica - 1959

18 outubro 2004

FLOR DA MORTE - HENRIQUETA LISBOA

Qualquer coisa, que eu escrevesse neste blog, na tentativa de elucidar, sobre a obra de Henriqueta Lisboa, seria mera repetição, pois a UFMG disponibiliza pela internet boa parte do acervo da escritora: Vida e Obra, Antologia, Recepção Crítica, Correspondência. Diga-se de passagem, muito bem elaborado. Não deixem de visitá-lo: HENRIQUETA LISBOA
Segundo Carlos Drummond de Andrade, Flor da Morte, de Henriqueta Lisboa, escrito em 1949, é dos raros casos, na poesia brasileira, de um livro de versos que constitui, organicamente, um só poema. E o constitui, sem recorrer ao mero expediente formal de agenciar todos os versos numa composição de amplos limites, dividida em cantos regulares. Suas páginas abrigam aparentemente as produções mais variadas, cada uma delas com título próprio, e com estrutura diferenciada, dentro da rítmica peculiar à autora nesta sua fase. Os 'temas', a julgar pela maioria dos títulos, parecem ainda distintos uns dos outros; o pássaro de fogo, as jaulas, o véu, a rosa príncipe-negro, Nossa Senhora da Pedra Fria. Contudo, uma só é a matéria do livro, como é única a sua essência, a inspiração que o ditou, o clima espiritual em que foi elaborado, única a preocupação de quem o escreveu, ou, melhor dito, de quem o viveu. O livro de Henriqueta Lisboa é uma persistente, ondulante e apaixonada meditação sobre a morte. Quase que o poderíamos chamar: tratado poético da morte."

Por que a freqüente presença da morte como tema em seus trabalhos?
A morte é uma realidade inevitável e inenarrável, tanto quanto misteriosa. Por isso mesmo nos instiga a inquiri-la e enfrentá-la superiormente. E quem nunca foi ferido por ela?
Entrevista concedida a José Afrânio Moreira Duarte em 1970
Diário de Minas, Belo Horizonte, 5 jul. 1970.

E o tema da morte foi outra obsessão, parece. A senhora foi chamada, inclusive, de "Poeta da Morte". "À paisagem do morto nada falta de cômodo. /A paisagem do morto é insípida." Hoje, com 80 anos, mudaria a abordagem do tema?
Em certa fase de minha vida, em virtude de dolorosas ocorrências, este assunto se tornou explosivo. Celebrei-o em Flor da Morte, depois de abordá-lo em A Face Lívida, texto de angústia e perplexidade, à época em que se alastrava a 2ª Guerra Mundial. Todavia, tenho visado de modo constante a essência do ser, a substância do vital, a ansiedade humana em busca de perfeição e infinito, os mistérios da natureza, o relacionamento entre a alma e Deus. A cada tempo o seu cuidado. Em cada livro meu predomina um tema, prevalece um clima. O Menino Poeta constitui a revivescência da infância. Madrinha Lua e Montanha Viva interpretam e comemoram tradições mineiras. E assim por diante. Hoje, não me sinto propensa a desafiar a idéia ou o sentimento da morte, como fiz em outra época, em termos de mediação entre a fatalidade e a resistência.
Entrevista concedida a Edla Van Steen
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 maio 1984

Silêncio da Morte

Silêncio da morte, perfeito
como uma flor e seu cálice.
Nudez de céu de ponta a ponta
azul sem mácula.
Neve por toda a eternidade
consumada nos píncaros.
Silêncio da morte, campo
de ópio. Adormecedor
balanço entre margens.
Anjos que se debruçam e alçam,
confundindo-se com os turíbulos.
Contemplação beatífica
de ciprestes. Gozo
do vácuo.
Silêncio da morte, pavor
das furnas. Trágica escassez
de cinzas. Fera
de olhos oblíquos espreitando
a ampulheta.
Impossível recuo. Tempo máximo.
Salto de corpo ao mar,
urgente, urgente mar
sobre a presa, fechando-se.

SOBRE A OBRA DE HENRIQUETA LISBOA

Acentuava Mário de Andrade, a propósito de Prisioneira da Noite (1941), que havia nos versos de Henriqueta Lisboa "graça inquieta, simples e um pouco agreste, um pouco ácida, dos passarinhos", e divisava em seu lirismo "uma carícia simples, dor recôndita em sorriso leve e frase contida. A poesia de Henriqueta Lisboa é de fato uma poesia de pudor, discrição, suavidade, ás vezes de leve encantamento com coisas ou palavras, por exemplo ao se deter no vocábulo ‘trasflor’: ‘Lavor de ouro sobre esmalte: / linda palavra – trasflor’." Essa dileção pela palavra nobre ou rara lhe dá às vezes certo preciosismo, e faz sua expressão artificializar-se um pouco, como se fosse o canto de cigarras sem sangue. Mas nos momentos de equilíbrio sua poesia assume aquele "leve tom cinza, cinza-pérola", que a poetiza deseja extrair da tarde. Essa dicção policiada às vezes se torna cálida como ricos perfumes: assim nos versos de Madrinha Lua (1952), livro sobre os velhos vultos e cidades de Minas Gerais, sobre cujos versos perpassa um luar de almíscar, um capitoso aroma de angélicas que floriram noutros séculos.
Henriqueta Lisboa estreou com Fogo Fátuo (1925), mas foi com os versos de Velário (1936) que transitou para a modernidade. Lírica reúne com exclusões seus versos até 1958.
AFRÂNIO COUTINHO – A LITERATURA NO BRASIL - Modernismo
Vol. V, 2º edição, 1970, pág. 180.

Obs.: O crítico literário Afrânio Coutinho, coloca Henriqueta Lisboa entre os poetas da segunda fase do Modernismo. Que ele considera, como sendo, os poetas surgidos de 1930 a 1945.
Nesta fase, os temas, antes circunscrito de modo geral à ambivalência brasileira, votam-se para o homem e seus problemas, como ser individual ou social: pode-se falar em fase de extensão de campos (ou, em certa designação, pós-modernismo).

10 outubro 2004

AINDA SOBRE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO: O SEU ESTILO LITERÁRIO – A CRÔNICA


A Crônica: Um gênero menor?

"É um gênero literário que tem assumido no Brasil, além da personalidade de gênero, um desenvolvimento e uma categoria que fazem dela uma forma literária de requintado valor estético, um gênero específico e autônomo.
Realmente, se algo existe em nossa literatura, que pode ser tomado como exemplo frisante da nossa diferenciação literária e lingüistica, é a crônica. Dificilmente poderá apontar-se coisa parecida, mesmo na literatura portuguesa, a uma crônica de Rubem Braga. E este autor ainda apresenta esta singularidade: é um grande escritor que entra para a história literária exclusivamente como cronista. Fato singular da literatura brasileira atualmente. Como fato muito significativo é a posição da crônica, sua importância, o grau de perfeição a que atingiu, depois de longa evolução através da qual se especializou, se desenvolveu uma forma literária específica, inclusive com um estilo próprio, uma maneira peculiaríssima.
Em primeiro lugar, é mister ressaltar a natureza literária da crônica. O fato de ser divulgado em jornal não implica em desvalia literária do gênero. Enquanto o jornalismo tem no fato seu objetivo, seu fim, para a crônica o fato só vale, nas vezes em que ela o utiliza, como meio ou pretexto, de que o artista retira o máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espirito, de sua graça, de suas faculdades inventivas. A crônica é na essência uma forma de arte, arte da palavra, a que se liga forte dose de lirismo. É um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima, ante ao espetáculo da vida, as coisas, os seres. O cronista é solitário com ânsia de comunicar-se. E ninguém melhor se comunica do que ele, através desse meio vivo, álacre, insinuante, ágil que é a crônica. A literatura, sendo uma arte – cujo meio é a palavra – e portanto oriunda da imaginação criadora, visando a despertar o prazer estético – nada mais literário do que a crônica, que não pretende informar, ensinar, orientar. E tanto ela não é indissoluvelmente ligada ao jornal, que esse prazer decorre da sua leitura mesmo em livro.
Outra característica é a natureza ensaística da crônica. É claro que se deve, para compreendê-la, distinguir o ensaio formal, crítico, biográfico, histórico, filosófico, discursivo, e que entre nós vai ficando sinônimo de estudo, e o ensaio informal, familiar, coloquial, em que são exímios os ingleses. Pois bem, esse último tipo confunde-se pelas suas características com a nossa crônica. Basta compararmos os pequenos ensaios de Steele, Addison, Hazlitt, Lamb, Chesterton, e outros da numerosa família inglesa, com a página de nossos cronistas, para vermos os seu parentesco. Evidentemente, não teremos que mudar de nome, pois é interessante a especialização da palavra "crônica" em português para designar o gênero. Pois, como se sabe, o sentido antigo da palavra, que vigorava no renascimento por exemplo, e ainda é corrente em outras línguas neolatinas, fazia da crônica um gênero histórico. Crônica, cronista (do grego cronos, tempo) relacionavam-se com o relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar. Desapareceu esse conteúdo, ficando a palavra para designar as pequenas produções em prosa, de natureza livre, em estilo coloquial, provocadas pela observação dos sucessos cotidianos ou semanais, refletidos através de um temperamento artístico.
De qualquer modo, o que se deve ressaltar é a importância que o gênero vem assumindo em nossa literatura. A crônica tem que valer-se da língua falada, coloquial, adquirindo inclusive certa expressão dramática no contato da realidade da vida diária.
As dificuldades em classificar a crônica resultam, como acentuou Eduardo Portela, do fato de que ‘tem a caracterizá-la não a ordem ou a coerência mas exatamente a ambigüidade’, que ‘não raro a conduz ao conto, ao ensaio por vezes, e freqüentemente ao poema em prosa’. A crônica, insiste o mesmo crítico, vive presa ao dilema da transcendência e do circunstante. As suas condições jornalísticas e sua base urbana tem que ser superadas para que ela ganhe em transcendência, seja construindo ‘uma vida além notícia’, seja enriquecendo a notícia ‘com elementos de tipo psicológico, metafísico’ ou com o humour, como Carlos Drummond de Andrade, seja fazendo ‘subjetivismo do artista’, ‘o seu universo interior’, sobrepor-se ‘a preocupação objetiva do cronista’, como Rubem Braga e Ledo Ivo."
Afrânio Coutinho – A Literatura no Brasil – 2º edição, vol. IV, pág. 77-78