"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

27 dezembro 2004

"A RODA DO MUNDO" - DEFINIÇÕES DE BANTO, IORUBÁ E OUTRAS CULTURAS

Da África os negros trouxeram seus costumes, religiões, trajes, técnicas e idiomas. Quer dizer, os africanos possuíam uma cultura que, através dos escravos, se transmitiu ao Brasil. Por este motivo é que encontramos tantas influências africanas em diversas regiões brasileiras e mesmo algumas contribuições que se estenderam a todo o país. Tal é o caso do samba, dança de origem congo-angolana e que se transformou em um ritmo nacional.

Como os escravos provinham de regiões diversas, também diferentes eram as suas culturas. Os povos de cultura mais adiantados, eram principalmente os dos grupo iorubá. É o caso dos povos que vieram da Nigéria, do Daomé e de Gana. Estes falavam nagô, língua que deixou numerosas palavras no português que falamos no Brasil. Também influenciaram na culinária, especialmente nos pratos da cozinha baiana, como o vatapá, o caruru,o acarajé e o uso do azeite-de-dendê. Como os escravos iorubanos já conheciam o emprego dos metais, sua contribuição foi muito importante na atividade mineradora. Outra influência muito importante e bastante espalhada no Brasil é a que se exerceu sobre os cultos religiosos, os quais aqui, notadamente nas camadas mais humildes da população, resultam da mistura de crenças africanas e cristãs. No filme O Pagador de Promessas, o personagem principal acreditava que Santa Bárbara e Iansã, divindade africana, eram uma só pessoa. O mesmo aconteceu com outros santos da Igreja Católica, que os escravos procuravam confundir com os seus orixás ou deuses.

A festa, bastante popular, em que se distribuem doces às crianças no dia dos santos Cosme e Damião tem origem africana. O costume veio da confusão entre esses santos cristãos e os orixás chamados Ibejis, que protegiam as crianças.

Entre os grupos sudaneses havia alguns que se converteram à religião maometana. São os de cultura negro-maometana e, por isso, muito influenciados pelos árabes. É o caso do traje conhecido como baiana, onde o turbante, os balangandãs, o pano-da-costa indicam contribuições árabes.

Outro grupo muito importante foi o banto. Era formado pelos negros vindos de Angola, Moçambique e do Congo. Além de outras contribuições, eles trouxeram o samba, o batuque, instrumentos musicais, o esporte da capoeira e numerosas palavras.

Foi por influência africana que vários termos e expressões vieram enriquecer a nossa língua. Tal é o caso de caçula, indicando o filho mais moço; careca, mais usado do que o português calvo, ou, cochilar, que praticamente substituiu dormitar.
Enciclopédia Delta de História do Brasil, de Colônia a Nação, vol.6. pág. 1502-1503.

BANTO:
Conjunto de populações da África sul-equatorial (com exceção dos bosquímanos e dos hotentotes), de línguas da mesma família, mas com traços culturais específicos (na África do Sul todos os povos negros são chamados banto, em oposição aos brancos, coloreds e asiáticos). Numerosos foi o contingente de escravos bantos trazidos para o Brasil. A influência por eles exercida sobre costumes, religião e superstições nacionais foi profunda e marcante. Trouxeram muitas lendas, mitos e tradições; sua contribuição folclórica e etnográfica frutificou e reforçou os elementos já existentes no Brasil, através de sua participação entusiástica e predileção viva pelo canto e dança coletivos. Os indígenas também possuíam esse encanto pelas danças de roda, instrumentos de sopro e cantos, mas o negro valorizou essas constantes no seio da sociedade em formação. Não é, pois, privativo e originário do africano tudo quanto recebemos por seu intermédio, mas indubitavelmente foi ele precursor mais poderoso e decisivo, depois do português. O nome bantos compreendia todos os negros africanos que outrora abasteciam o mercado de escravos do Brasil. Sua popularidade afirmou-se no século XVII, nas agremiações e irmandades de Nossa Senhora do Rosário, quando os negros passaram a tomar parte ativa nos autos populares. São bantos os préstitos do maracatu do carnaval pernambucano e as congadas vistas em todo o território brasileiro. A cuíca e o berimbau-de-barriga foram por eles trazidos da África; a capoeira, tanto quanto o complexo etnográfico do samba, também deve a eles sua difusão no Brasil. O ciclo do quibungo, circunscrito à zona litorânea da Bahia, é exemplo de sua contribuição à tradição oral brasileira.
Grande Enciclopédia Larousse Cultural, vol. 3. pág. 631-632

17 dezembro 2004

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A PSICOLOGIA DO ESCOLAR

Temos uma sensação esquisita, quando, já na idade madura, mais uma vez recebemos ordem de fazer uma redação escolar. Mas obedecemos automaticamente, como o velho soldado que, a voz de ‘Sentido!’, deixa cair o que tiver nas mãos e se surpreende com os dedos mínimos apertados de encontro às costuras das calças. É estranho como obedecemos às ordens prontamente, como se nada de particular houvesse acontecido no último meio- século. Mas, na realidade, ficamos velhos nesse intervalo, estamos às vésperas do nosso sexagésimo aniversário e as nossas sensações físicas, bem como o espelho, mostram inequivocamente quanto vela de nossa vida já se queimou.
Talvez há dez anos atrás, pudéssemos ter tido ainda momentos em que, de repente, nos sentíamos novamente jovens. Caminhando pelas ruas de Viena – já de barbas grisalhas e vergados por todas as preocupações da vida familiar – podíamos encontrar inesperadamente algum cavalheiro idoso e bem conservado, ao qual saudávamos quase humildemente, porque o reconhecêramos como um de nossos antigos professores. Mas depois parávamos e refletíamos: ‘Seria realmente ele? Ou apenas alguém muito semelhante? Como parece jovem! E como estamos velhos! Que idade poderá ter hoje? Será possível que os homens que costumavam representar para nós protótipos de adultos, sejam realmente tão pouco mais velhos que nós?’
Em momentos como esse, costumava achar que o tempo presente parecia mergulhar na obscuridade e os anos entre os dez e os dezoito surgiam dos escaninhos da memória, com todas as suas conjeturas e ilusões, suas deformações dolorosas e seus incentivadores sucessos – meus primeiros vislumbres de uma civilização extinta (que, no meu caso, deveria trazer-me tanta compensação quanto tudo o mais nas lutas da vida), meus primeiros contatos com as ciências, entre as quais me parecia aberta a escolha daquela à qual dedicaria os meus indubitavelmente inestimáveis serviços. E pareço relembrar que, durante todo esse tempo, tinha a premonição de uma tarefa futura, até que esta encontrou expressão manifesta na minha redação de despedida da escola, como um desejo de que pudesse, no decurso de minha vida, contribuir com algo para o nosso conhecimento humano.
Mais tarde tornei-me médico – ou antes, psicólogo – e pude criar uma nova disciplina psicológica, conhecida como ‘psicanálise’, que desperta atualmente um interesse excitado e é acolhida com louvores e ataques por médicos e investigadores de países vizinhos e terras distantes e estrangeiras – menos, naturalmente, em nosso próprio país.
Como psicanalista, estou destinado a me interessar mais pelos processos emocionais que pelos intelectuais, mais pela vida mental inconsciente que pela consciente. Minha emoção ao encontrar meu velho mestre-escola adverte-me de que antes de tudo, devo admitir uma coisa: é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres. É verdade, no mínimo, que esta segunda preocupação constituia uma corrente oculta e constante em todos nós e, para muitos, os caminhos das ciências passavam apenas através de nossos professores. Alguns detiveram-se a meio caminho dessa estrada e para uns poucos – porque não admitir outros tantos? – ela foi por causa disso definitivamente bloqueada.
Nós os cortejávamos ou lhes virávamos as costas, imaginávamos neles simpatias e antipatias que provavelmente não existiam, estudávamos seus caráteres e sobre estes formávamos ou deformávamos os nossos. Eles provocavam nossa mais enérgica oposição e forçavam-nos a uma submissão completa; bisbilhotávamos suas pequenas fraquezas e orgulhávamos-nos de sua excelência, seu conhecimento e sua justiça. No fundo, sentíamos grande afeição por eles, se nos davam algum fundamento para ela, embora não possa dizer quantos se davam conta disso. Mas não se pode negar que nossa posição em relação a eles era notável, uma posição que bem pode ter tido sua inconveniências para os interessados. Estávamos, desde o princípio, igualmente inclinados a amá-los e a odiá-los, a criticá-los e a respeitá-los. A psicanálise deu nome de ‘ambivalência’ a essa facilidade para atitudes contraditórias e não tem dificuldade em indicar a fonte de sentimentos ambivalentes desse tipo.
A psicanálise nos mostrou que as atitudes emocionais dos indivíduos para com outras pessoas que são de tão extrema importância para o seu comportamento posterior, já estão estabelecidas numa idade surpreendentemente precoce. A natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de sua vida. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções mas não pode mais livrar-se delas. As pessoas a quem se acha assim ligada são os pais e irmãos e irmãs. Todos que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos. (Deveríamos talvez acrescentar aos pais algumas outras pessoas como babás, que dela cuidaram na infância) Essas figuras substitutas podem classificar-se do ponto de vista da criança, segundo provenham do que chamamos as ‘imagos’, do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, e assim por diante. Seus relacionamentos posteriores são assim obrigados a arcar com uma espécie de herança emocional, defrontam-se com simpatias e antipatias para cuja produção esses próprios relacionamentos pouco contribuíram. Todas as escolhas posteriores de amizade e amor seguem a base das lembranças deixadas por esses primeiros protótipos.
De toda as imagens (imagos de uma infância que, via de regra, não é mais recordada, nenhuma é mais importante para um jovem ou um homem que a do pai. A necessidade orgânica introduz na relação de um homem com o pai uma ambivalência emocional que encontramos expressa de forma mais notável no mito grego do rei Édipo. Um rapazinho esta fadado a amar e a admirar o pai, que lhe parece ser a mais poderosa, bondosa e sábia criatura do mundo. O próprio Deus, em última análise, é apenas uma exaltação dessa imagem do pai, tal como é representado na mente durante a mais tenra infância. Cedo, porém, surge o outro lado da relação emocional. O pai identificado como o perturbador máximo da nossa vida instintiva; torna-se um modelo não apenas a ser imitado, mas também a ser eliminado para que possamos tomar o seu lugar. Daí em diante, os impulsos afetuosos e hostis para com ele persistem lado a lado, muitas vezes, até o fim da vida, sem que nenhum deles seja capaz de anular o outro. É nessa existência concomitante de sentimentos contrários que reside o caráter essencial daquilo que chamamos de ambivalência emocional.
Na segunda metade da infância, dá-se uma mudança na relação do menino com o pai – mudança cuja importância não pode ser exagerada. De seu quarto de criança, o menino começa a vislumbrar o mundo exterior e não pode deixar de fazer descobertas que solapam a alta opinião original que tinha sobre o pai e que apressam o desligamento de seu primeiro ideal. Descobre que o pai não é mais poderoso, sábio e rico dos seres; fica insatisfeito com ele, aprende a criticá-lo, a avaliar o seu lugar na sociedade; então; em regra, faz com que ele pague pesadamente pelo desapontamento que lhe causou. Tudo que há de admirável, e de indesejável na nova geração é determinado por esse desligamento do pai.
É nessa fase do desenvolvimento de um jovem que ele entra em contato com os professores, de maneira que agora podemos entender a nossa relação com eles. Estes homens, nem todos pais na realidade, tornaram-se nossos pais substitutos. Foi por isso que, embora ainda bastante jovens, impressionaram-nos como tão maduros e tão inatingivelmente adultos. Transferidos para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente de nossa infância e depois começamos a tratá-los como tratávamos nossos pais em casa. Confrontamo-los com a ambivalência que tínhamos adquirido em nossas próprias famílias, e, ajudados por ela, lutamos como tínhamos o hábito de lutar com os nossos pais em carne e osso. A menos que levemos em consideração nossos quartos de crianças e nossos lares, nosso comportamento para com os professores seria não apenas incompreensível, mas também indesculpável.
Como escolares, tivemos outras e um pouco menos importantes experiências com os sucessores de nossos irmãos e irmãs – nossos colegas de escola – mas estas devem ser descritas em outra oportunidade. Numa comemoração do jubileu de nossa escola, é aos professores que nossos pensamentos devem ser dirigidos.
Sigmund Freud. Volume XIII

11 dezembro 2004

"JUDAS, O OBSCURO", DRAMA E TRAGÉDIA DE NOSSA CIVILIZAÇÃO

É indiscutível que o século XIX e o XX vão ambos ficar caracterizados, literariamente, pelo predomínio quase absoluto do romance como gênero literário. Ora, dentro do romance, também é fora de dúvida que a Inglaterra não cede um passo a França na luta pela primazia mundial. Ainda seguindo o mesmo critério de excelência, ninguém negará que, na Inglaterra, Thomas Hardy pertence a uma categoria absolutamente ímpar, junto com Dickens, Meredith, Falsworthy, Lawrence e alguns poucos outros. E com mais certeza ainda se poderá afirmar que, na obra de Thomas Hardy, nenhum romance pode disputar a primazia a “Judas, o Obscuro”.

Resulta, portanto, de tudo isso, que este romance é, inegavelmente, uma das maiores obras-primas que a humanidade possui e um dos livros que mais fielmente podem refletir o drama ou a tragédia que a nossa civilização vive. Toda a problemática do homem moderno, na sua vida íntima, aí está refletida, graças à extraordinária sensibilidade e ao excepcional poder criador de perfeitas incarnações do homem sensível e delicado, bom e puro, que a máquina impiedosa das convenções sociais e dos egoísmos individuais não hesita em esmagar, sem nem sequer desconfiar da desgraça que está ocasionando. Mas, que pode ele fazer senão ser ele mesmo? E pode ela fazer senão ser ela mesma? Judas não só não conseguirá construir o seu futuro, realizar os sonhos de infância, como nada poderá fazer contra o seu destino de perseguido e de eterno ignorado. Desconhecido, incompreendido, enganado, só poderá responder aos golpes da vida com a pureza do seu gesto, tantas vezes repetido, de desvendar inutilmente aos olhos de todos o seu coração de homem. Os que o rodeiam viram então a face, porque suas feridas ferem a eles próprios. Não o compreende, na cegueira dos seus pequenos preconceitos de mulher conscientemente inteligente demais para o seu meio, a criatura que ama e amará a vida interia acima de todas as coisas. E a outra é só mentiras e engodo. Uma e outra dele só se aproximarão para reforçar, de um dos modos mais trágicos a que já nos foi dado assistir, o grito lancinante do poeta contra a mulher: “Tu n’es jamais la soeur de charité, jamais!”.

Por outro lado, o que torna ainda maior e mais classicamente trágico “Judas, o Obscuro” é que essa verdadeira Biografia de um fracassado foi escrita por um dos homens que mais profunda e mais delicada, mais piedosamente, souberam se inclinar sobre o sofrimento humano. Poucos livros serão mais tristes – amargo, nas suas páginas finais, com poucos livros terão sido amargos. Poucos possuem, em tão alto grau, o sentido da tragédia humana, no que ela tem de mais absolutamente insolúvel e eterno. Acompanhando Judas, passo a passo, no seu terrível calvário, é o próprio homem que Thomas Hardy acompanha. É o Absoluto que se atinge, através dessa experiência de homem, e de homem em luta com as realidades sociais de usa época. E é por isso que o valor da obra me parece inexcedível, como inexcedível é a sua importância para a nossa experiência individual.
Octávio de Faria – Tradutor do romance – Judas, o Obscuro – de Thomas Hardy, em Nota Preliminar – ed. Itatiaia – 1958.