"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

24 setembro 2004

A ETERNA PRIVAÇÃO DO ZAGUEIRO ABSOLUTO - COLETÂNEA SOBRE O AUTOR - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO


O livro de Luiz Fernando Veríssimo, "A Eterna Privação do Zagueiro Absoluto", escolhido como leitura para o vestibular da UFMG 2005. Abaixo, algumas notas colhidas para auxiliar na leitura do livro, visto a precariedade do material que vem sendo publicado pelos cursinhos de Belo Horizonte.
RETRATISTA DO COTIDIANO
Jorge Luís Borges, ítalo Calvino, Vladimir Nabokov estão no céu, conversando sobre o direito de os escritores lá habitarem depois da morte por uma questão de mérito adquirido. Discutem maneiras de coibir vocações literárias equivocadas. A conclusão é categórica: ao crítico caberia ser impiedoso com autores novos - deveria até mesmo executá-los. Esta é a síntese da parábola "No céu", incluída em "O suicida e o computador", de Luís Fernando Veríssimo, que se inscreve naquela categoria especial de autores que conseguem ser extremamente prolixos sem cair em redundâncias ou vazios.
Tentar aprisionar a obra deste autor num só gênero é uma tarefa inócua. Escrevendo crônicas, contos, ensaios e mesmo poemas, Veríssimo expressa suas opiniões com argúcia, originalidade e talento. Nas temáticas sobre as quais se debruça - sempre relacionadas ao Brasil urbano de classe média - política ou comportamento, quase nada escapa aos olhos e ouvidos deste escriba perspicaz. O senso de humor, a ironia e o lirismo eventual de suas críticas transformam a mesquinhez do cotidiano em momentos únicos.

"Prefiro pensar que sou um cronista que às vezes tem teses", De Daniel Piza. Gazeta Mercantil, 26-28/11/99.
A crônica no Brasil teve alguns autores de grande qualidade literária que também chegaram ao sucesso popular. João do Rio, Rubem Braga e Nelson Rodrigues são exemplos que logo vêm à mente. Depois deles, o grande cronista famoso do país é, claro, Luís Fernando Veríssimo. Ele é lido por um público tão amplo quanto fiel. Prova disso é a presença precoce na lista de mais vendidos de suas três coletâneas recém-lançadas: "Aquele Estranho Dia que Nunca chega" (sobre política e economia), "A Eterna Privação do Zagueiro Absoluto" (futebol, cinema e literatura) e "Histórias Brasileiras de Verão" (sobre "vida íntima").
Conclusão imediata: a crônica brasileira vai bem, obrigado. Mas que isto não deixe de fazer pensar naquilo que Veríssimo trouxe para o gênero que tanto era do gosto do maior escritor brasileiro, Machado de Assis. Veríssimo modernizou a crônica nacional assimilando - como Machado assimilara na ficção - a influência da literatura de língua inglesa, especialmente a de humor. Isso se vê em sua linguagem concisa e coloquial, mas cheia de entrelinhas, um tanto diferente da "sinceridade" mais confessional, seja da vertente lírica de Rubem Braga, seja da vertente assertivista de Nelson Rodrigues. Meio que mesclando crônica e artigo, relato pessoal e análise jornalística, e sem cair nos destemperos explícitos de outros praticantes da modalidade, Veríssimo renovou a crônica.
Tem grande percepção para o comportamento social e suas mudanças e semelhanças no passar do tempo, revelando mais sobre a atual classe média brasileira em seus textos (para não falar nos desenhos como os da "Família Brasil") do que todos os ficcionistas vivos do país, somados. E trunfo dos trunfos: é um homem de idéias, não um mero diarista, e ele as defende com um charme que nenhuma discordância pode negar. Seu intimismo não é nostálgico, é reflexivo; ele não precisa rir para que se perceba que está contando uma piada; e jamais deixa de dar sua opinião, incisivamente quando necessário, em assuntos variados. Sobre influências, métodos e assuntos, ele fala na entrevista a seguir:

"- Acho que a crônica pegou no Brasil pelo acidente de aparecerem bons cronistas, como Rubem Braga, que conquistaram o público. Ou seja, não existem tantos cronistas porque existia uma misteriosa predisposição no púbico pela crônica, acho que foram os bons cronistas que criaram o mercado. Outros países têm bons cronistas, mas só no Brasil, que eu saiba, eles chegaram a ter reputação literária sem fazer outra coisa, como o Rubem Braga e os outros. Fora o Paulo Mendes Campos, que também era poeta.
- o cronista é sempre seu assunto. A crônica não é lugar para objetividade. Ser mais pessoal, mais coloquial, depende do estilo de cada um. Mas a gente está se confessando sempre.
- Prefiro pensar que sou um cronista que às vezes tem teses, mas nunca vai buscá-las muito fundo. O negócio é pensar sobre as coisas e tentar pensar bem, mas nunca esquecer que nada vai ficar gravado em pedra, ou fazer muita diferença.
- Escrevo com informalidade e com a preocupação de ser claro e o pai também era assim. Ficar em Porto Alegre e não procurar muito a "vida literária" também foi uma escolha dele, mas neste caso não foi uma imitação minha, pelo menos não consciente. Mais uma questão de personalidade.
- Na verdade, crônica esportiva literária, ate há pouco tempo, só quem fazia era o Armando Nogueira e, aqui no sul, o Ruy Carlos Osterman. Muitos escreviam bem sobre futebol, mas sem outras pretensões. Hoje tem aí o Torero e outros fazendo coisas excelentes.
- Ronaldo foi a grande frustração da Copa e, ao mesmo tempo, revendo aqueles jogos, a gente nota como ele foi efetivo, mesmo errando tanto. Mas desde então ele nunca mais acertou, e agora vai ser operado outra vez. É uma pena. Problemas de mulher e de articulação, os mesmos dos heróis desde a Grécia Antiga.
- Acho que o futebol dentro do campo está bem jogado como nunca esteve, muito mais competitivo e atraente do que na sua época "lírica". O problema é fora do campo, com a desorganização e os dirigentes oportunistas, incompetentes ou bandidos mesmo. Eu defendo o futebol empresarial e os campeonatos organizados e promovidos como espetáculos. Este é um caso em que a gente deveria imitar o modelo americano.
- A crônica ficcional é a melhor de fazer, a política é quase obrigatória, e a futebolística é uma indulgência que eu me dou de vez em quando.
- Este foi o século em que as melhores idéias foram derrotadas. Eu só livraria a escada rolante e o controle remoto." (Luís Fernando Veríssimo em entrevista feita por fax "from" de Porto Alegre)
DE VERISSIMO A VERISSIMO

"De geração a geração
segue a arte de escrever
um abc refinado
seu coração é colorado
cronista, cartunista,
jornalista, às do humor
vem autografar a passarela
oh! Grande escritor" (Enredo da Escola de Samba Vila Isabel de Viamão)
Antes de tudo que o samba relaciona, Veríssimo é um poço de paradoxos, produto de um jogo de extremos. Ao mesmo tempo que cultiva a timidez, o silêncio e os monossílabos, é tido pelos muitos amigos como um dos tipos mais doces e generosos; no momento seguinte em que cita viajar e comer bem como seus dois maiores prazeres, conta que não mudaria de Porto Alegre por nada deste mundo e se lembra da dieta rigorosa que segue por orientação médica, em função de problemas cardíacos. Finíssimo estilista da língua, dono de um texto marcado pela mistura de precisão e beleza, ele é capaz de afirmar com orgulho que escreve "por ofício", que é "um escritor comercial, sem grande valor literário, cujo ramo é o do entretenimento".
Na relação com o pai, uma base de mútua admiração. Não há prova científica de que talento é hereditário, mas o caso da família Veríssimo valia uma análise mais detalhada. Filho de Érico (um dos grandes da literatura brasileira, cujo "Tempo e vento" completa 50 anos de lançamento este ano), Luís Fernando começou a escrever tarde na vida, aos 28 anos. Antes disso, depois de muito tempo indeciso quanto ao caminho a seguir, trabalhava no departamento de arte da Editora Globo, de Porto Alegre. Meio sem querer, começou a dar expediente como redator no jornal "Zero Hora", no qual chegou a escrever até coluna de horóscopo e, meio por acaso, herdou uma coluna de crônicas. Foi esse o início de uma carreira de sucesso na imprensa diária - com passagens por jornais como O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil.
- Sempre tive uma relação ótima com meu pai, ele nunca me obrigou a fazer nada que não quisesse. Na verdade, nunca tive problema algum em ser filho de um escritor famoso, até gostaria de inventar uma história dramática para saciar a curiosidade mórbida das pessoas sobre nossa convivência.
- Adoro o cinema de Hollywood, a literatura americana, as histórias em quadrinhos e, acima de tudo, o jazz. Aos 17 anos, consegui entrar num clube e assisti a um show de Charlie Parker - conta ele, com um discreto brilho nos olhos. - Sou fã de Louis Armstrong e, quando morava nos Estados Unidos, quis aprender a tocar trompete. Procurei uma escola e, lá, não tinha trompete disponível, só um sax-alto. Foi assim que aprendi música.
- Antes, a esquerda era mais ideológica e a direita, mais pragmática. Hoje, a situação mudou, a direita adotou o ideário neoliberal e a esquerda apresenta projetos mais objetivos. Tenho minhas simpatias pelo PT, mas não me sinto à vontade com uma postura engajada. Minhas preocupações são mais humanistas, acredito que o caminho passa pela social-democracia, e nem sei se seria a tal Terceira Via do gabinete gay do Tony Blair. Opa! Uma piada politicamente incorreta! E as patrulhas? - Não ligo para isso, acho que estou imune a elas.
ATINGIR A PROFUNDIDADE SEM SAIR DA SUPERFÍCIE
- Não tenho nenhuma obra dentro de mim para botar para fora, não tenho essa compulsão. Meus livros fazem sucesso porque as histórias são curtas, escritas de maneira fácil. A atividade de cronista me realiza completamente e acredito que é perfeitamente possível atingir a profundidade ficando na superfície.
Viajar e comer, os prazeres; futebol, a única paixão. Animadíssimo com a volta de Dunga ao seu Internacional, ele acha que o técnico da seleção brasileira, Wanderley Luxemburgo, tem "um problema de vaidade para administrar" e critica o jeito moleque de jogadores como Romário:
- Ele é a cara do futebol carioca, meio displicente, nem sempre objetivo, do drible pelo drible, em que uma jogada bonita vale mais que um gol. E isso acontece muito porque o torcedor carioca estimula esse tipo de atitude. Agora, o problema do futebol do Rio são os cartolas. É muito feio o que eles estão fazendo - diz ele, peso pluma com pegada de peso pesado.
Veríssimo descobriu no drama das idéias perdidas o tema para uma crônica. Começa assim: "A escrita deve ter nascido da idéia de não esquecer. O primeiro homem que pensou ‘preciso me lembrar disso’ deve ter olhado em volta procurando alguma coisa que ele não sabia ainda o que era. Era um lápis e um pedaço de papel". Tudo para dizer, no fim, que não sabia o que fazer com a anotação que um belo dia rabiscara a lápis num pedaço de papel: "Conhece-te a ti mesmo mas não fica íntimo". No fim da crônica, conclui: "As melhores idéias são as que a gente esquece".
Grande parte das histórias de Veríssimo vem da capacidade do autor de reverter situações adversas. Por exemplo: irritado com a insistência de Fernando Henrique em criticar os críticos que definem seu governo como neoliberal. Veríssimo reagiu com a ironia fina de sempre na crônica Definições, que integra a coletânea Novas Comédia da Vida Pública - A Versão dos Afogados. Na crônica, ele diz concordar com Éfe Agá quando o presidente da República reinvindica para seu governo a definição que julga mais adequada: neo-social. "Quem de nós, escritores e pseudo-escritores, ensaístas ou ficcionistas, cronistas ou romancistas, nunca sonhou em fazer a resenha da própria obra, livrando-a da incompreensão dos críticos?", finge concordar Veríssimo.
A cirurgia cardíaca sofrida em 1991, por sua vez, virou uma crônica sobre o espírito de competição dos parceiros de infortúnio, que às vezes lembra um jogo de poquêr: "Tenho três pontes de safena e uma mamária. Algo como uma trinca, mas de ases. Não faço feio em nenhuma roda de safenados e já humilhei alguns", escreveu Veríssimo, que mantém uma inútil bicicleta ergométrica encalhada na porta do escritório. "Tenho que fazer exercício, mas não consigo", confessa.
Se os 61 anos, comemorados (comemorados?) em setembro do ano passado, incomodam, não existe melhor remédio do que se recuperar da "doce tragédia" desabafando numa crônica entre o humor e a melancolia. "Por motivos que não interessam, fiz aniversário ontem", informa, antes de concluir: "Há coisas piores do que fazer 61 anos, mas ninguém consegue se lembrar de nenhuma". Veríssimo tem também uma respeitável safra de histórias brotada da sua paixão pelas palavras.
Introvertido, Veríssimo se considera "o cara mais sem graça do mundo". E jura: "No meu caso, o humor é mais técnica do que vocação". Mas sabe que é inútil convencer os leitores de que está longe de ser um humorista em tempo integral.
Por exemplo: amante do jazz, o escritor toca saxofone na Aqui Jazz Tancredo Band, que criou em parceria com os gêmeos cartunistas Paulo e Chico Caruso. Certa vez, em Brasília, os músicos resolveram, alguns uísques depois, inovar e entrar no palco com as luzes apagadas. Verissimo, o único que não havia bebido, errou o caminho, caiu da escada e quebrou o joelho. Em pânico, os irmãos Caruso informaram o acidente ao público e perguntaram se havia algum médico na platéia. "Claro que ninguém acreditou. O público morria de rir enquanto eu morria de dor", lembra Veríssimo.
"Quem se casa com uma pessoa parecida, na verdade está se casando consigo próprio. É uma forma de incesto e não pode dar certo", acredita Veríssimo. Ele e Lúcia poderiam ser, no máximo, aquele casal da crônica Lar Desfeito, que vive às mil maravilhas mas decide se separar para poupar os filhos da vergonha de terem pai e mãe ainda casados, ao contrário de todos os coleguinhas. Lúcia não tem ciúme das outras mulheres do marido, que são (não necessariamente nessa ordem) Ingrid Bergman, Rita Hayworth, Maureen O’Hara ("aquela irlandesa exuberante..."), Catherine Deneuve. "No Rio eu conheci a Lucia e nós nos casamos em março de 1964. Para não dizer que não aconteceu nada de bom no Brasil em março de 1964", brinca.
Mas, afinal, de onde vem esse profundo conhecimento de causa? "Sou uma pessoa introvertida, mas não enclausurada, afastada do mundo. Escrevo sobre coisas que vivi, ou que ouvi dos outros, ou que vi acontecendo. É bom ter a experiência, mas é preciso distanciamento para refletir sobre ela", explica.
O computador não passa de "uma máquina de escrever glorificada", distante da criatura onipotente que transformou em personagem das tiras, As Cobras. Ao lado do micro, uma coleção de canetas denuncia o prazer que só não é secreto em razão desses répteis tornados públicos pela primeira vez há 20 anos, em Zero Hora.
O excesso do trabalho o afasta da paixão que alimenta desde a infância: a leitura. Veríssimo ainda se define como "um leitor voraz e onívoro". A verdade é que lê de tudo, mas não com a voracidade desejada. Por absoluta falta de tempo. "Há muito não leio um livro inteiro, só fragmentos", queixa-se. No momento, tem nada menos que 78 livros na cabeceira (da nova edição, corrigida, de O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, a Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda) na fila para serem lidos. Em pouco tempo não restará cabeceira: Veríssimo não consegue passar na porta de uma livraria sem entrar. E se entra, compra. "Acho possível colocar minha leitura em dia. Basta viver até os 120 anos", calcula.

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http://portalliteral.terra.com.br/verissimo/porelemesmo/porelemesmo.shtml?porelemesmo