"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

18 dezembro 2005

PÉTALAS DE ROSA II

Como já dito em outra postagem, estou viajando já faz alguns dias ao “Grande Sertão: Veredas”. Neste percurso, venho encontrando perolas que desejo compartilhar com alguns poucos visitantes que freqüentam este espaço:

Senti pena daqueles pobres, cansados, azombados, quase todos sujos de sangues secos – se via que não tinham esperança nenhuma decente (...). O que demasia na gente é a força feia do sofrimento, própria, não é a qualidade do sofrente.”
O livro é de uma beleza, além de trazer uma séria de definições perfeitas, próprias do humano, que não se encontram em nenhum dicionário, ou mesmo em livros teóricos.

11 dezembro 2005

DESABAFO

Antes de começar a reclamar de um item do edital do vestibular da UFMG, gostaria de deixar bem claro, que não compartilho das opiniões que hoje estão em voga de: “cotas raciais”, “cota pobreza” (porque no Brasil, público se confunde com pobreza), e outras tantas idiotices que a reforma universitária vem tentando implantar no ensino público superior. Neste caso, poucos pobres e negros não tem acesso a universidade pública, não porque ele seja pobre ou negro, mas porque teve uma péssima educação básica, esta sim, sem nenhuma perspectiva de melhora.

Sou da opinião que para se ter igualdade no ingresso do ensino superior público, deve-se investir pesado na educação básica: com muitos laboratórios de física; química; biologia (desde o anos iniciais do ensino fundamental); ensino de matemática; ou seja álgebra e geometria, pois os professores dessa matéria ensinam os 11 anos, apenas álgebra e quase sempre o B A BÁ, até Hitler sabia que para emburrecer um povo, não se deve ensiná-los matemática, apenas álgebra; português com muita produção de texto (diversos), eu mesma, raras foram as vezes que um professor mandava fazer uma produção de texto, normalmente no início do ano mandavam fazer uma com o tema ”as férias”, isto porque redação dá trabalho para corrigir, e os professores com o péssimo salário que recebem, para sobreviver têm que trabalhar em até três turnos, em escolas diversas, e realmente não tem como corrigir nada, apenas dão aulas. É a educação no Brasil, em frangalhos.

Mas vamos ao que interessa, depois do Estado me oferecer a pior educação possível e mais os atropelos da vida, concluí o ensino médio precisando de voltar para o primário. Nos onze anos estudados, no meu tempo ainda havia retenção, o que garantia um mínimo de qualidade, não houve um ano se quer, que o processo não era interrompido por greves, que rara as vezes duravam menos de 60 dias. Nunca foi feito uma reposição de verdade dos dias parados, para os professores fingir que foram feitas a reposição das aulas é uma espécie de greve branca, visto que em quase todas as greves saem derrotados, então o jogo passa a ser o seguinte: “o governo exigi a reposição”, a escola monta um calendário de reposição, que normalmente é aos sábados, aí quase ninguém aparece nessas aulas, nem professor, nem aluno. Então, levando-se em consideração a LDB, que exige duzentos dias letivos, se houve uma greve de 60 dias letivos, o Estado passa a oferecer apenas 140 dias letivos. Outro agravante são as malditas reuniões feitas nas escolas dentro do horário de aula, que leva a dispensar os alunos e passam outra vez a “comer” os míseros dias letivos, como regra nas escolas, toda sexta-feira têm reunião, então a semana escolar passa a ser de quatro dias, ao invés de 5 dias. Como falar em qualidade na educação depois de relatar uma situação destas. E sem nenhum exagero, isto ocorre de norte a sul, em todo o Estado de Minas Gerais, tanto na esfera estadual quanto na municipal, sem exceção.

Ainda assim, mesmo tendo concluído o ensino médio semi-analfabeta, consegui ingressar em uma faculdade privada. No entanto, como as mensalidades não são nada baratas, tive que parar o curso e resolvi estudar para o vestibular na UFMG. Qual foi a minha conclusão no início dos meus estudos, não tinha a menor condições de concorrer no vestibular, se realmente não fizesse toda a educação básica de novo: onze anos jogados fora no esgoto. Não sabia nada de química, física (não pasmem, mas sinceramente, nunca tive uma aula sequer dessas duas matérias nos onze anos de estudos), biologia, matemática (geometria/função), não sabia nem sequer escrever, coisa que venho aprendendo ainda hoje. Passei os anos de 2003, 2004 e 2005 estudando o que podia para conseguir concorrer a uma vaga do curso de direito da egrégia Universidade Federal de Minas Gerais. No vestibular de 2003, como seqüelas de toda a minha educação, fiz uma péssima prova na primeira etapa, realmente não tinha a menor condições de ir para a segunda etapa do vestibular. Mas em 2004 e 2005, considero ter sido vítima da burrice do edital dessa instituição, que tem como regra para ir para a segunda etapa no caso do curso de direito (muito concorrido) “que os candidatos que fizer 72 pontos ou mais, e pelo menos cinco pontos em cada matéria são classificados para a lista prioritária e são chamados até que haja, no máximo, três concorrentes por vaga”. A conseqüência dessa regra é a seguinte: vai para a segunda etapa pessoas que em total de pontos tirou menos que você. Veja só o absurdo: são distribuídos 120 pontos na primeira etapa, 15 para cada disciplina (matemática, português, história, geografia, língua estrangeira, química, física e biologia), caso você tire 15 pontos, em 7 disciplina e em uma delas você tem a infelicidade de tirar apenas 4 pontos, você está eliminado, no caso do curso de direito para a segunda etapa do vestibular. Ou seja, neste caso, a pessoa tirou em total de pontos 109 em 120 distribuídos e não foi para a segunda etapa. Outro, que tirou 72 pontos no total e não tirou em nenhuma matéria menos de 5 pontos foi. Este foi o meu caso em 2004, fui de muito bom a excelente em 7 disciplinas e em matemática tirei 4 pontos e por isto não consegui ir para a segunda etapa do vestibular da UFMG, depois de vários meses a universidade divulgou a nota de corte desse ano, e verifiquei que quem foi para a segunda etapa tirou em total de pontos, nota muito menor do que a minha. Neste ano, por infelicidade o fato voltou a ocorrer, e provavelmente irá para segunda etapa um candidato, no geral, menos preparado do que eu.
Sinceramente, gostaria que as pessoas que são responsáveis por discutir as mudanças no vestibular das instituições públicas, estivessem discutindo regras idiotas como esta relatada e não uma forma de destruir a qualidade do ensino oferecido por essas instituições.

01 novembro 2005

FILME - "VOZES INOCENTES"

Que triste se ouve a chuva
nos tetos de papelão.
Que triste vive minha gente
nas casas de papelão.
Crianças com a cor da minha terra
com as mesmas cicatrizes,
milionários de lombrigas.
Olhe quanto sofrimento.
Olhe como pesa o sofrimento.
Lá em cima
deixo a minha mulher prenha.
Abaixo, está a cidade
que se perde em sua confusão.

Música de André Abujamra, no belo filme "Vozes Inocentes"

30 outubro 2005

PÉTALAS DE ROSA

“Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto se saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons...” (pág. 17)

“amor vem de amor” (pág. 25)

João Guimarães Rosa – Grande Sertão: Veredas – José Olympio Editora – 2° edição.

19 outubro 2005

LIVROS DE ROSA

Os livros são como vulcões adormecidos, enquanto não são lidos. Quando os lemos, um amontoado de sensações nos provocam e fazem um maravilhoso desastre em nossas almas. Estou para ler em breve o Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Sinceramente não sei se conseguirei sobreviver a este derramamento de lava incandescente, tenho medo, pois provavelmente não terei nenhum menino, como no irônico conto de Clarice: Feliz Aniversário, para trazer-me de volta a insignificância de nossas vidas e do mundo.

18 setembro 2005

REFLETINDO SOBRE A EDUCAÇÃO HOJE

SABER COMPETITIVO
Já é um virtual consenso o de que o principal insumo para o crescimento econômico nos próximos anos será o conhecimento -e falamos aqui de conhecimento especializado e de alto nível. Não é por outra razão que, cada vez mais, países estão competindo por cérebros. Não se trata apenas de produzir mais e com menos custos -tarefa em que os asiáticos hoje parecem imbatíveis-, mas, principalmente, de fomentar o processo inovador da maneira mais inteligente possível.
Nesse contexto, universidades adquirem importância vital. Não é exagero afirmar que os países que se mostrarem capazes de manter as melhores universidades terão garantido um lugar proeminente no competitivo mundo globalizado. Também não há muita dúvida de que, hoje, essa corrida está sendo vencida pelos EUA. Com efeito, a maioria dos rankings são esmagadoramente dominados por instituições norte-americanas. Na já clássica lista elaborada pela Universidade Jiao Tong, de Xangai, que combina indicadores como prêmios Nobel e citações em periódicos de primeira linha, universidades dos EUA ocupam nada menos do que 17 das 20 primeiras posições.
É claro que os critérios usados são sempre discutíveis. E é evidente que valorizam as chamadas ciências "duras" -aliás, para os efeitos de que trata este editorial, as ciências humanas são quase irrelevantes. São, porém, os critérios disponíveis. Ainda que configurem um pálido retrato da realidade, dizem mais do que a atitude, tão comum entre os que não querem ser avaliados, de simplesmente decretar a incomensurabilidade dos modelos e escapar à crítica.
Como observou em recente editorial a revista britânica "The Economist", o maior derrotado nesse processo é a Europa, que, até algumas décadas atrás, ainda abrigava as melhores universidades do planeta. É até possível que os EUA não consigam sustentar sua atual posição por muito tempo, e, embora a Europa busque recuperar o terreno perdido, países como Índia e China parecem ameaças mais verossímeis para a hegemonia norte-americana.
O diagnóstico da revista é o de que as instituições européias naufragaram por não ter conseguido adaptar-se aos novos tempos. O fracasso se deveria principalmente às limitações na forma de financiamento das universidades européias. Enquanto suas congêneres americanas buscam recursos em várias fontes como governo, taxas pagas por alunos, doações e convênios com empresas privadas, as instituições européias dependem quase que exclusivamente do Estado.
Esse modelo revelou-se inadequado para responder à sempre crescente demanda por educação superior. O poder público passou a exigir que a universidade "processasse" cada vez mais alunos, sem, entretanto, ampliar-lhe as verbas proporcionalmente. O resultado foi a deterioração da qualidade. E, como as universidades dos EUA estavam em melhor situação, passaram a atrair melhores nomes, mais alunos estrangeiros de primeira linha e, conseqüentemente, mais recursos. Em uma palavra, mostraram-se mais competitivas.
Não é por acaso que são justamente as universidades britânicas, que seguem um modelo mais próximo do das norte-americanas, que ainda mantêm a Europa no ranking das melhores instituições.Enquanto o mundo se envereda por esse tipo de discussão, no Brasil ainda se debate se escolas que se saem mal em todas as avaliações devem receber dinheiro do Estado para assegurar vagas a alunos que não obtêm lugar nas boas instituições.
EDITORIAL DA FOLHA DE SÃO PAULO 18/09/2005

04 setembro 2005

CARTAS DE VINCENT A THÉO


Amsterdam, 3 de abril de 1878

Théo,

Voltei a refletir sobre a nossa conversa, e involuntariamente meditei nas palavras: “Somos hoje o que éramos ontem”. Isto não significa que se deva marcar passo, e não tentar desenvolver-se, ao contrário, há uma razão imperiosa para fazê-lo e para buscá-lo.

Mas para permanecermos fiéis a estas palavras, não podemos recuar, e quando começamos a considerar as coisas com um olhar livre e confiante, não podemos voltar atrás nem hesitar.

Os que diziam “nós somos hoje o que éramos ontem” eram “homens honrados”, o que se depreende claramente da constituição que redigiram, que subsistirá por todos os tempos, e da qual se disse que tinha sido escrita “sob as emanações do céu” e “com uma mão de fogo”. É bom ser um “homem honrado” e procurar sê-lo cada vez mais, e fazemos bem em acreditar que para isto é preciso ser “homem introspectivo e espiritual”.

Se tivéssemos a convicção de pertencer a esta categoria, seguiríamos nosso caminho com calma e confiança, sem duvidar do bom resultado final. Havia um homem que certo dia entrou numa igreja e perguntou: “Será possível que o meu zelo tenha me enganado, que eu tenha tomado o mau caminho e que continue errado? Ah! Se eu me livrasse dessa incerteza e se pudesse ter a firme convicção de que acabaria por vencer e alcançar êxito”. E uma voz então lhe respondeu: “E se tivesses essa certeza, que farias então? Faças portanto como se a tivesses, e não serás perturbado”. O homem então continuou seu caminho, não mais incrédulo, mas crente, e voltou à obra, sem duvidar nem hesitar mais. No que se refere a ser “homem introspectivo e espiritual”, será que não poderíamos desenvolver em nós este estado pelo conhecimento da história em geral e de determinadas personalidades de cada época em particular, desde a história sagrada até a da Revolução, e desde a Odisséia até os livros de Dickens e de Michelet? E não poderíamos tirar algum ensinamento da obra de homens como Rembrandt, ou das Ervas Daninhas de Breton, ou As Horas do Dia de Millet, ou o Benedicite de De Groux ou Brion, ou O Recruta de De Groux (ou senão de Conscience) ou Os Grandes Carvalhos de Dupré, ou até mesmo os moinhos e as planícies de areia de Michel?

Falamos bastante sobre qual é o nosso dever, e como poderíamos chegar a algo de bom, e chegamos à conclusão que nosso objetivo em primeiro lugar deve ser o de achar um lugar determinado, e uma profissão à qual possamos nos dedicar integralmente.

E acredito que estávamos igualmente de acordo de que o necessário é sobretudo ter em vista o objetivo final, e que uma vitória, após toda uma vida de trabalho e de esforços, vale mais que uma vitória obtida mais cedo.

Aquele que vive sinceramente e encontra aflições verdadeiras e desilusões, e que jamais se deixa abater por elas, vale mais que os que sempre vão de vento em popa, e que conheceriam uma prosperidade apenas relativa. Pois, em quem constatamos da maneira mais visível um valor superior, senão naqueles a quem se aplicam as palavras: “Lavradores,
vossa vida é triste, lavradores, vós sofreis na vida, lavradores, vós sois bem-aventurados”, senão naqueles que carregam os estigmas de “toda uma vida de luta e de trabalho suportada sem jamais se curvar”? É bom se esforçar em assemelhar-se a eles.

Avançamos portanto em nossa estrada indefessi favente Deo. No que me diz respeito, devo tornar-me um bom pregador que tenha algo de bom a dizer e que possa ser útil no mundo, e talvez fosse melhor eu conhecer em tempo relativamente longo de preparação, e estar solidamente confirmado numa firme convicção, antes de ser chamado a falar aos outros... A partir do momento em que nos esforcemos em viver sinceramente, tudo irá bem, mesmo que tenhamos inevitavelmente que passar por aflições sinceras e verdadeiras desilusões; cometeremos provavelmente também pesados erros e cumpriremos más ações, mas é verdade que é preferível ter o espírito ardente, por mais que tenhamos que cometer mais erros, do que ser mesquinho e demasiado prudente. É bom amar tanto quanto possamos, pois nisso consiste a verdadeira força, e aquele que ama muito realiza grandes coisas e é capaz, e o que se faz por amor está bem feito. Quando ficamos admirados com um ou outro livro, por exemplo, tomado ao acaso: A Andorinha, A Calhandra, O Rouxinol, As Aspirações do Outono, Daqui Eu Vejo Uma Senhora, Eu Amava Esta Pequena Cidade Singular; de Michelet, é porque estes livros foram escritos de coração, na simplicidade e na pobreza de espírito. Se só pudéssemos dizer umas poucas palavras, mas que tivessem um sentido, seria melhor que pronunciar muitas que não fossem mais que sons vazios, e que poderiam ser pronunciadas com tanto mais facilidade, quanto menos utilidade tivessem.

Se continuarmos a amar sinceramente o que na verdade é digno de amor, e não desperdiçarmos nosso amor em coisas insignificantes, nulas e insípidas, obteremos pouco a pouco mais luz e nos tornaremos mais fortes.

Quanto antes procurarmos nos qualificar num certo ramo de atividade e numa certa profissão, e adotarmos uma maneira de pensar e de agir relativamente independente, e quanto mais nos ativermos a regras fixas, mais firme se tornará o caráter, sem que para isto tenhamos de nos tornar limitados.

E é sensato fazer estas coisas, porque a vida é curta e o tempo passa depressa; se nos aperfeiçoamos numa única coisa e a compreendemos bem, alcançamos além disto a compreensão e o conhecimento de muitas outras coisas.

Às vezes é bom ir ao fundo e freqüentar os homens, e às vezes somos até obrigados e chamados a isto, mas aquele que prefere permanecer só e tranqüilo em sua obra, e não quer ter mais que uns poucos amigos, é quem circula com maior segurança entre os homens e no mundo. È preciso não se fiar jamais no fato de viver sem dificuldades ou sem preocupações ou obstáculos de qualquer natureza, mas não se deve procurar ter uma vida muito fácil. E mesmo nos ambientes cultos e nas melhores sociedades e circunstâncias mais favoráveis, é preciso conservar algo do caráter original de um Robinson Crusoé ou de um homem da natureza, jamais deixar extinguir-se a chama interior, e sim cultivá-la. E aquele que continua a guardar a pobreza e que a preza, possui um grande tesouro e ouvirá sempre com clareza a voz de sua consciência; aquele que escuta e segue esta voz interior, que é o melhor dom de Deus, acabará por encontrar nela um amigo e jamais estará só...

Que seja este o nosso destino, meu rapaz, que teu caminho seja próspero, e que Deus esteja contigo em todas as coisas e te faça triunfar, é o que te desejo com um cordial aperto de mão em tua partida.

Teu irmão que te ama,

Vincent
Vincent Van Gogh – Cartas a Théo.

26 agosto 2005

A RECEITA DE MORRER COM GLÓRIA, BANDEIRA SABIA

A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “quem foi?...”
Morrer mais completamente ainda,
- sem deixar sequer esse nome.

BANDEIRA, Manuel – Estrela da Vida Inteira – Poesias Reunidas.

16 agosto 2005

UMA ANÁLISE DE MISSA DO GALO

PARA OS VESTIBULANDOS QUE ESTÃO SE PREPARANDO PARA A PUC MINAS, NÃO DEIXEM DE LER ESTE MAGNIFICO TEXTO DO SARAPALHA UMA PESSOA SIMPÁTICA, UMA ANÁLISE DO CONTO - MISSA DO GALO - DE MACHADO DE ASSIS.

23 julho 2005

CARTAS DE MONTEIRO LOBATO A GODOFREDO RANGEL

Areias
'Não aprende, senhor, na fantasia
Sonhando, imaginando ou estudando;
Senão vendo, tratando e pelejando.'

Você que lá leu o Camões inteiro diga lá se há nele coisa melhor que esta – mais sabia, mais profunda, mais “pedagogia moderna”. Reduz tudo ao ver, fazer e insistir. Ao ler no livro da vida, em vez de nos de papel. Ao ver com os nossos olhos, em vez de com os olhos dos outros. Ao pensar com a nossa cabeça, em vez de pensar plagiariamente.

E parece que Camões escreveu esses três versos para nós dois, Rangel. Nosso mal é que já apuramos o nosso instrumento de expressão, já sabemos jogar um período para o ar e vê-lo, qual um gato, cair sobre os quatro pés. Pegamos toda a técnica do escrever e educamos o nosso senso de observação – mas vivemos embolorados dentro de caixa. Esta Areias é uma caixa e essa tua comarca é outra. Nossas cartas são como o rabinho de rato que Hansel mostrava para a velha feiticeira. Somos a velha feiticeira um do outro. Você estira o rabinho de rato epistolar para que eu veja como está gordo e forte no estilo; eu faço o mesmo. Mas que assuntos que temas, podem existir dentro de caixas?

Estamos como içás que derrubam as asas e afundam no buraquinho. O destino me deu este buraquinho de Areias e a você deu o de Machado. E invejamos Loti, o homem dos mares e do Japão. E Kipling, o homem todo Índias, todos jungles, todo Himalaias, todo feras. A única fera daqui é um pobre facadista barato. “Fulano é uma fera!” diz o Julinho. E a tua fera na vida, Rangel, o teu Mugger do Mugger Ghaut, é o chapadissimo Fernandes...

Somos uns pelicanos, Rangel. Vivemos a arrancar penas, carne e coisa de nós mesmos para que não morram os nossos pobres filhinhos literários. Os artistas subjetivos que só tiram de si em vez de tirar do mundo que os rodeia, ficam introspectivos em excesso e acabam satisfazendo a um público muito restrito: a si mesmos. Mas os artistas objetivos, os Kiplings, sugestionam e fazem estremecer de emoção grandes platéias – e o aplauso da platéia é o feijão com arroz de todos os artistas.

Casados, sem fortuna, com a coleira e a corrente do “ganhar a vida” pressa ao pescoço e metidos na caixa de Hansel e Grettel, de que modo atendermos ao mandamento de Camões, do “vendo, tratando, pelejando?”

Lobato
Monteiro Lobato - A Barca de Gleyre

20 julho 2005

CRÍTICAS LITERÁRIAS ARRASADORAS

Minha Formação – Joaquim Nabuco, por Darcy Ribeiro

“Quincas, O Belo – publica minha formação. Autobiografia clássica e chata, de um alienado. Senão, leia: ‘o sentimento em nós é brasileiro; a imaginação, européia. As paisagens todas de Novo Mundo, a floresta amazônica ou os pampas argentinos não valem para mim um trecho da Via Appia, uma volta da estrada de Salermo a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre.’ Vangloriava-se de pensar em francês. Dói é lembrar que esse alienado era, talvez, o mais brilhante intelectual brasileiro de sua geração.” (Aos Trancos e Barrancos – como o Brasil deu no que deu)

Realmente, para qualquer leitor brasileiro desse livro, entrar em contato com as opiniões de Nabuco, em relação ao Brasil, faz estremecer até os ossos de nosso corpo. No entanto, como analisado pelo historiador Caio Prado Júnior, a maioria dos "brasileiros" vivem aqui para expropriar a riqueza do país e viver com os frutos dela além mar. A elite já mais se importou com o desenvolvimento do nosso desgraçado país. Expropriar, sim! E como.

09 julho 2005

PEROLAS COLHIDAS

“O átomo é o último refúgio em que o ser, reduzido aos seus elementos primários, prosseguirá numa espécie de imortalidade surda e cega, de morte imortal, que, tanto para Lucrécio quanto para Epicuro configura a única felicidade possível.

Problemas dos tempos modernos: subtrair o homem ao destino equivale a entregá-lo ao acaso.

Enquanto aos olhos de todos a humanidade levava na terra uma vida abjeta, esmagada sob o peso de uma religião cujo rosto se mostrava do alto das regiões celestiais, ameaçando os mortais com seu aspecto horrível, o primeiro, um grego, um homem, ousou levantar contra ela os seus olhos mortais, e contra ela insurgir-se... E assim a religião foi derrubada e pisoteada, e, quanto a nós, a vitória nos eleva aos céus.”
(Lucrécio, citado por Albert Camus em - O homem Revoltado)

16 junho 2005

CARTAS DE CLARICE

Belo Horizonte, 13 de julho de 1941

Hellô, bem

Está tudo direito, agora. Antes de partir falei com aquela pessoa por causa de quem eu me encontrei com V. de noite. Não aludi à carta principal e só falei das outras que vieram com belíssimas flores, morangos e outras coisas.

Houve um momento em que me disse: S está tonto porque V. vai embora. Menti: “certamente entra aí um pouco de álcool. E, nesse caso, eu sempre desculpo”. Não olhei para ele, não quis ver a reação. Voltei para casa triste com a meia perturbação que eu notara. Mas eu me tinha prometido ser outra, não é? Fiquei defronte do espelho e fiz uma cara belíssima: uma mistura de Nicolau Couro de Cobra com a tua Amélia (Vi tua Amélia no trem; e para o meu desapontamento... ela me sorriu amavelmente. Quem sabe? Se você também lhe tivesse dado uma oportunidade...)

Eu pretendia chorar na viagem, porque fico sempre com saudade de mim. Mas felizmente sou um bom animal sadio e dormi muito bem, obrigada. “Deus” me chama a si, quando dele preciso.

Quanto a teu fantasma, procuro-o inutilmente pela cidade. As mulheres daqui são quase todas morenas, baixinhas, de cabelo liso e ar morno. Aliás, quase que só há homens na rua. Elas, parece, se recolhem em casa e cumprem seu dever, dando ao mundo uma dúzia de filhos por ano. As pessoas daqui me olham como se eu tivesse vindo direto do Jardim Zoológico. Concordo inteiramente. Para não chamar atenção, estou usando cachinhos na testa e uma voz doce como nem Julieta conheceu.

Que mais? Eu tinha vontade de escrever outras coisas. Mas você diria: ela está querendo ser “genial”.

Encontrei uma turma de colegas de Faculdade em excursão universitária. Meu exílio se tornará mais suave, espero. Sabe Lúcio, toda a efervescência que eu causei só veio me dar uma vontade enorme de provar a mim e aos outros que eu sou mais do que uma mulher. Eu sei que você não crê. Mas eu também não acreditava, julgando o que tenho feito até hoje. É que eu não sou senão um estado potencial, sentindo que há em mim água fresca, mas sem descobrir onde é a sua fonte.

O.K. Basta de tolices. Tudo isso é muito engraçado. Só que eu não esperava rir da vida. Como boa eslava eu era uma jovem séria, disposta a chorar pela humanidade... (Estou rindo.) Um grande abraço da
Clarice

P.S. – Hotel Imperador. Pça. Rio Branco, 744-748 quarto n.° 302 – Belo Horizonte

P.S. – Esta carta você não precisa “rasgar”...

Carta escrita a Lúcio Cardoso
CORRESPONDÊNCIAS CLARICE LISPECTOR –Organização de Tereza Monteiro

12 junho 2005

OS CAMINHOS DO APRENDER A VIVER

Uma das características do ser humano é a sua capacidade de fazer projeções de atitudes que venham a tomar. No entanto, a aprendizagem da vida se dá por comportamentos vividos, experimentados. Uma boa metáfora sobre esta aprendizagem é a frase de um filosofo: “a coruja de Minerva só levanta vôo ao entardecer.”

Não há dúvida, que a inteligência humana colabora com a dura tarefa de viver. Quando se levanta hipóteses possíveis para um comportamento a ser praticado, nos é permitido com isso fazer escolhas que consideramos, logicamente, mais acertadas naquele momento. Evidente, que está capacidade de projeção se torna restrita, a medida que ela não leva em conta as diversas variáveis da experiência humana, quando em contato com o ambiente em que foi praticado. Porém, é neste momento que se apresenta uma outra qualidade do homem: a flexibilidade. Quando ele vê que a escolha feita por ele, não foi a melhor, quase que instantaneamente ao ato praticado, faz ajustes necessários para uma melhor satisfação dos seus anseios. Logo, mesmo que de maneira precária, a projeção é uma aliada no aprendizado do viver, quando aliada a experiência.

No entanto, para aprender a viver, não existe melhor maneira do que se lançar na vida. É mergulhar e seguir o seu curso. Por mais que especulamos sobre a vida, nunca que a especulação nos permitirá saber, quando o rio da vida passará por um terreno acidentado ou por um precipício e neste caso a queda é inevitável, mas o seu curso, para muitos, costuma ser longo, passando por planícies, vales, se encontrando com outros rios até chegar ao oceano, destino de todos os rios. Só que é com a experiência adquirida neste percurso, é que se aprende a viver.
Portanto, a vida não é para ser pensada. O pensamento mata a vida. Ela deve ser saboreada, como se saboreia uma comida, nem sempre ela agradará o nosso paladar. Mas, paciência, aprender a viver é aprender que a vida tem diversos sabores, a maior parte dela é mesmo azeda e amarga. É possível sonhar que ela pode ser doce, mas é um desejo, muitas vezes abortado pelas circunstâncias da existência. Viver dá trabalho, nos desgasta e nos faz sofrer.

10 junho 2005

"UM PARADOXO ADORÁVEL E DESALENTADOR"

“(...) no coração de toda realidade existe uma pergunta, e não uma resposta. Quando examinamos os recessos mais profundos da matéria ou a fronteira mais remota do universo, vemos, finalmente, o nosso próprio rosto perplexo nos devolvendo o olhar.”
JOHN HORGAN, AUTOR DO LIVRO: O FIM DA CIÊNCIA – EM REVISTA USP N.° 59 – ARTIGO: FRONTEIRAS E DESAFIOS DO CONHECIMENTO - PÁG. 208-209

21 maio 2005

COMO VIVE E MORRE UM PASSARINHO – JOHANN SEBASTIAN BACH - PARTE I

Ali permanecia ele, um velho baixo e corpulento, vestindo calças e sapatos afivelados, usando a enorme peruca cinzenta que ela lhe havia dado em um natal, sorrindo alegremente para ela, com esse sorriso vago dos cegos, quando ela disse: - Sim, meu João está certo – tentando controlar o tremor de seus lábios.

Normalmente ela chamava-o de Johann Sebastian, mas pensava nele como “meu Johann”, e às vezes escapava... – Está certo – repetiu ela com um aceno trêmulo de sua cabeça coberta por uma touca. – Vá e toque no órgão. Será bom para você.

Era loucura, ela o sabia, deixá-lo ir tocar o órgão a esta hora da noite. Isto faria com que toda a escola acordasse, e que Herr Weinlick, o censor, descesse e este certamente mandaria um relatório para as Suas Majestades do conselho municipal, e estas diriam que o seu Johann ficara maluco tanto quanto cego e que elas não poderiam conservar tal professor num coral de uma escola municipal, e o despediriam. E para onde iriam eles, agora que o médico lhes havia levado todas as economias? Bom e doce Jesus, o que lhes aconteceria com ele cego e ela demasiado velha para encontrar trabalho, com Gottfried doente da cabeça, o inverno ainda não acabado e Leipzig ainda cheia de neve?

O pânico dilatou-lhe os olhos azuis e murchos no pergaminho miúdo que era sua face toda enrugada; mesmo assim ela continuava a cuidar dele, que tremia da cabeça aos pés, acenando teimosamente. Ela não sabia o que lhes aconteceria, mas não podia suportar mais aquilo, observando-o sentado ao pé do fogo, com suas mãos enormes e magras sobre os joelhos, olhando para as chamas que não podia ver, contando as horas da noite pelas rondas do guarda-noturno. Ela sabia que ele temia o que aconteceria pela manhã e que desejava orar e pedir a Deus que lhe desse forças, e compor música era seu método de orar. E por isso, mesmo que Sua Majestade, o prefeito em pessoa, os mandasse para a cadeia, ela deixaria que ele tocasse o órgão esta noite e dar-lhe-ia esta última alegria.

- Sim, meu Johann, vá e toque quanto quiser.

Ela acentuou as últimas palavras com a bravura incerta de um pobre que desafia o inevitável.

- Apenas não toque muito alto – pediu ela docemente, achegando-se a ele. E então, numa contradição desatenta, disse:

- E não demore muito.

- Não o farei.

Seus lábios continuaram movendo-se, mas nenhum som saía dos mesmos. Ele apenas aconchegou-a ao seu peito com se quisesse que ela ouvisse seu agradecimento diretamente pela batidas de seu coração.

A porta do quarto abriu-se e Gottfried entrou.
Com uma dor cruciante e repentina ela reparou que sua cabeleira ruiva estava despenteada e que ele havia esquecido de calçar uma das meias. Este quadro reabriu-lhe uma ferida no peito, por um momento esquecida. Ele fazia essas coisas, sabia ela, porque estava doente da cabeça e o médico havia dito que ele nunca sararia, apesar de ele ser um rapaz alto e simpático e de às vezes sentar-se ao clavicórdio e inventar músicas tão belas que mesmo o seu Johann, que era muito severo no que se referia à musica, ouvia com lágrimas nos olhos.

- Papá, posso ir também? – perguntou o idiota, tão excitado como uma criança. – Tomarei conta dos foles.

Johann Sebastian Bach consentiu.

- Sim, meu filho – disse ele gentilmente. – Oraremos juntos.

Da porta, Anna Magdalena observou-os enquanto avançavam incertamente pelo corredor mal iluminado abaixo, o cego apoiando-se no braço do filho. Então ela fechou a porta e permaneceu sem se mover, com o rosto escondido nas mãos. Finalmente, agora ela podia chorar e somente isso era o que ela podia fazer. Não perguntava mais e nem tentava compreender por que Deus lhes enviava tanto sofrimento. Não eram eles boas pessoas? Johann não havia pedido a vista a Seu serviço, compondo música à luz de velas glorificando Seu nome e cantando Sua glória? Todas aquelas cantatas, aqueles motetes, aquela colossal Missa para a qual ela havia riscado os pentagramas e aquela Paixão, que era a obra que ele mais amava, haviam sido todas escritas par Ele. Será que Ele não as ouvira?

Ela retirou as mãos do rosto e apurou o ouvido, escutando. Ele havia começado a tocar e a composição era a Paixão. Ela sabia que ela tocaria aquilo porque esta era a historia de Nosso Salvador Jesus e de como Ele havia sido espancado, de como cuspiram n’Ele, de com Lhe ataram uma coroa de espinhos na cabeça e fizeram com que Ele carregasse Sua cruz ao Calvário, onde eram crucificados os assassinos, e Ele, o próprio Filho de Deus, houvera suportado tudo isso sem uma palavra sequer... E agora, o seu Johann tocava aquela musica que havia escrito sobre aquelas coisas terríveis, para que pela manhã pudesse se lembrar do que Jesus havia sofrido por ele e então, ele também tentaria igualar-se a Ele...

Ela ouviu um rumor de passos ligeiros do lado de fora e virou-se para a porta. Sim, era Herr Weinlick... e tão furioso vinha que gaguejava consigo mesmo, e com tal pressa (mais corria do que andava), nem havia abotoado os sapatos.

- Que houve com ele? Gritou ele de longe. – Será que não sabe que já passa da meia-noite?... Terá ficado louco?... E quem lhe deu autorização de tocar no órgão grande? Apenas o organista tem o direito de toca-lo e ele é apenas professor do coro...

“É melhor deixa-lo falar por um pouco”, pensou ela, observando o censor aproximou-se, “deixemo-lo cansar-se um pouco...” Ela havia aprendido muito, vivendo todos aqueles anos com um homem. No velhos tempos, o seu Johann ficava às vezes tão furioso que atirava a cabeleira através da sal e a única coisa a fazer era ficar quieta e deixa-lo arengar e após algum tempo ele se acalmava.

- Um professor do coral, ouviu?, isso é tudo que ele é.

Herr Weinlick estava agora a apenas alguns passos dela e ofegava pesadamente.

- Enviarei um relatório e...

Faltou-lhe o ar e ele teve que parar.

- Entre, Herr Weinlick, e sente-se – disse ela suavemente.

- Não vim para sentar-me – gaguejou ele, acompanhado-a para dentro. – Vim para dizer-lhe...

Calmamente ela fechou a porta atrás dele. A musica já não soava tão alto.

- Sente-se nesta cadeira – disse ela com a tranqüila autoridade de uma senhora em sua própria casa. – E descanse um pouco.

Ela sentou-se perto dele à enorme mesa de jantar. Ele não era realmente um homem mesquinho, pensou ela, olhando-o. Apenas pobre e amedrontado. Igual a ela, igual ao seu Johann, igual a todos que não tinham nem um centavo seu. Era o medo que fazia com que as pessoas se tornassem cruéis...

- O senhor não deveria andar correndo por aí numa noite como esta sem um sobretudo.

- Não se incomode com isso – resmungou ele, reavendo sua cólera juntamente com o fôlego.

- Mas o senhor ficará doente. Olhe para si, todo esbaforido e perspirando...

- Estou muito bem. Apenas aviso-a...

Ela já estava se levantando.

- Vou lhe arranjar um pouco de sopa quente.

- Não quero sopa nenhuma – interrompeu ele, vendo-a debruçar-se sobre a terrina que jazia em cima do fogão. – Vim apenas para...

E o que fará o senhor quando ficar doente? – interrompeu ela, enquanto despejava calmamente sopa em um prato. – Terá que permanecer na cama e não poderá vigiar mais os garotos, e talvez o reitor escreva para o conselho dizendo que terá de arranjar um novo censor...

Ela voltou par a mesa e colocou o prato de sopa na frente dele.

- Coma isso, Far-lhe-á bem.

Ruidosamente ele engoliu algumas colheradas.

- Digo-lhe que desta vez ele foi muito longe e eu serei obrigado a...

- Coma – disse ela com um tom de finalidade.

Durante um momento ele comeu em silêncio, apressadamente, sem ousar parar. Ela debruçou-se em sua direção.

- Não foi culpa dele – disse ela apontando para si mesma. – Eu disse-lhe que fosse tocar.

- A senhora?

Ele estava mais surpreso do que zangado.

- Por que fez isso?

- Ele precisava disso. Sabe – agora ela falava como se ele fosse um amigo – o medido virá pela manhã.

- Para a operação?

A agressividade havia decaído nele. Instintivamente ele abaixou a voz.

- A que horas?

- Às sete. Mas seus auxiliares chegarão primeiro... – sua voz estrangulou-se num soluço – para prepara-lo.

Durante um instante o censor não falou. Ele já havia presenciado os horrores de uma operação cirúrgica, e o simples relembrar fazia-o estremecer.

- Sinto muito, - disse ele, colocando a mão sobre as dela – creia-me.

Ele forçou os ouvidos e percebeu que a musica havia parado.

- Devo ir – disse, levantando-se – e fazer com que os rapazes voltem para a cama. – Ao chegar à porta virou-se. – A senhora tem sorte de que o reitor durma na ala traseira. Seja como for ele é um pouco surdo.

- Então o senhor não escreverá para o conselho? – perguntou ela docemente.

- Ele sacudiu a cabeça.

- Mas nunca mais o deixe fazer isso.

- Ele não o fará – disse ela, mas estas palavras não o alcançaram, pois que ele já corria pelo corredor abaixo na direção do dormitório dos rapazes.

Durante um momento ela permaneceu sentada à mesa, olhando o vácuo à sua frente. Ele havia cumprido sua promessa, não havia tocado muito tempo... tinha voltado logo.

Levantou-se e esperou no umbral da porta. Logo os viu aproximarem-se, andando lentamente, e correu para encontra-los

- Obrigado, Lena – disse ele suavemente.

O medo havia desaparecido do rosto dele. Havia orado e agora estava pronto.

ALÉM DO DESEJO – PRÓLOGO – PIERRE LA MURE

01 maio 2005

25 abril 2005

LIVROS DO VESTIBULAR 2006 DA UFMG

ANÁLISE LITERÁRIA DOS LIVROS DO VESTIBULAR 2006 DA UFMG
MELHOR IMPOSSÍVEL
ACOMPANHEM:

17 abril 2005

HÖLDERLIN: UMA ALMA DESPEDAÇADA

Filho de pastor protestante, quis seguir a vocação paterna. Em 1780 estudou teologia na Universidade de Tubingue, com colegas que se chamavam Hegel, Schelling. Deixou de crer. Conhecia Rousseau, Goethe, Schiller e o romantismo embriagava-o. Gostava de natureza misteriosa, da lúcida Grécia. Ama-as simultaneamente e sonha em unir suas belezas numa obra alemã. Era pobre e tinha que levar a dura vida do poeta necessitado. Professor, suportou o aborrecimento das casas ricas, em quase todas desprezado e em uma, muito querido: satisfação logo seguida pela desilusão. Volta à vila natal, onde as pessoas e o ar são doces. Trabalha, escreve todo o tempo de que dispõe, mas pesa-lhe viver à custa dos seus, e afasta-se. Manda imprimir alguns versos, e o público não gosta desses belos poemas, onde o gênio de um desconhecido faz os deuses do Olimpo passar pelas sombras das florestas renanas. O infeliz Hölderlin sonha criações mais vastas, mas retém o sonho: a Alemanha é um mundo, e a Grécia um outro mundo. È preciso a força de um Goethe para as unir e fixar as palavras eternas de Fausto, raptor de Helena. Hölderlin escreveu fragmentos de um poema em prosa. Seu herói é um jovem grego que se lamenta da ruína de sua raça, e, frágil precursor de Zarathustra, clama pela renascença de uma valorosa humanidade. Compôs três cenas de uma tragédia cujo herói é Empédocles, tirano de Agrigente, poeta, filósofo, grande inspirador das multidões, grego isolado, por sua própria grandeza, entre os gregos, mágico que, possuindo toda a natureza, cansa-se das satisfações que a vida pode oferecer e se retira para o cimo do Etna, deixando a família, seus amigos, seu povo que o quer, e, um dia, ao nascer da noite, atira-se na cratera. É obra de fôlego: Hölderlin abandona-a. A tristeza o enfraquece e exalta. Quer deixar a Alemanha, onde tanto tem sofrido, e libertar os seus de sua vida incômoda. Propõem-lhe um emprego em bordeis, na França, e ele desaparece. Seis meses mais tarde, volta ao lar, vestido de farrapos, queimado pelo sol. Interrogam-no, mas ele nada diz. Procuram informar-se e, após grande trabalho, vêm a saber que ele atravessou a França a pé, sob o sol de agosto. Sua inteligência está perdida. Ele acaba-se, abisma-se num torpor que dura quarenta anos. Morre em 1843.

08 abril 2005

MISSIVAS ENTRE NIETZSCHE E WAGNER

Vou publicar sempre que possível, correpondências entre pessoas que marcaram o pensamento ocidental. As cartas revelam muita coisa, sobre a pessoa e as suas idéias. Vejam por exemplo, estas duas correspondências:
Querido amigo,
Quanto a mim, grito: "É isso mesmo!" Você atingiu a verdade e tocou o ponto justo com um agudo dardo. Espero com admiração a continuação do seu trabalho e das lutas que você há de travar com o dogmatismo vulgar. No entanto, você me causa cuidados e desejo, de todo o coração, que não quebre o pescoço. Quero, portanto, aconselhá-lo a não expor seus audaciosos pontos de vista, dificilmente aceitáveis, em pequenas brochuras que pouco ajudam. Sinto que você está profundamente penetrado por suas idéias; é preciso reuni-las para nos dar um livro volumoso, de mais vasta ação. Então, você encontrará e dirá a palavra justa sobre os divinos erros de Sócrates e de Platão, esses criadores, tão maravilhosos, que nós mesmos que discordamos deles, ainda os devemos adorar. Oh, meu amigo! As palavras se elevam como hinos quando consideramos a incompreensível harmonia dessas essências estranhas ao nosso mundo! E que orgulho nos anima, que esperança, quando examinando-nos a nós mesmos, sentimos forte e claramente que podemos e devemos realizar qualquer obra para eles mesmos inacessível!
Até breve,
Nietzsche
********************
Caro amigo,
Como é bom a gente poder escrever tais cartas! Não existe ninguém, hoje, com quem eu me possa entender tão bem como com você, excetuada uma única (*). Deus sabe que seria de mim sem isso! Mas ele permitirá que nenhum projeto melhor me tente e que possa dispor de muito tempo, para que me abandone ao prazer de lutar com você contra o "socratismo"; porque, para esclarecer um tal problema devo renunciar a toda criação. É preciso que dividamos o trabalho. Você pode muito, para mim. Pode se encarregar de metade do trabalho que o destino me designou. E, fazendo isso, talvez cumpra todo o seu destino. Eu sempre me sai mal de todas as experiências filológicas. Você também se saiu mal das experiências musicais – é bem isso. Como músico, você se tornaria, pouco a pouco o mesmo que eu me tornaria se me obstinasse em realizar trabalhos de filologia. Mas a filologia me ficou no sangue; como musicista, ela é que me dirige. Você, que é filólogo, continuando a sê-lo deixe-se dirigir pela música. Dou um sentido muito sério ao que estou dizendo. Soube por você, como são baixas as preocupações a que se deve restringir hoje um filólogo de profissão – e você soube, por mim, em que inominável chiqueiro tem que se agitar hoje um verdadeiro e "absoluto" musicista. Exponha o que deve ser a filologia e ajude-me a preparar esta grande "Renascença" na qual Platão abraçará Homero e Homero, penetrado pelas idéias de Platão há de ser, pela primeira vez, o sublime Homero...
Wagner
(*) Senhora Cosima Wagner
Correspondências entre Nietzsche e Wagner em – A vida de Frederico Nietzsche – Daniel Halévy. Pág. 51-51

02 abril 2005

PEDAÇO DE RETRATO

Não gosto de falar em nada sobre mim, mas vou abrir uma exceção, para dizer um pouco, sobre coisas de que eu gosto. Ou seja, dos meus quatro prazeres terrenos.
A primeira é conversar com o Éder, ou melhor, de ouvi-lo falar, pois ele é completo, de pensamento muito refinado e peculiar, com quem se pode conversar sobre tudo, mesmo de coisas banais. No mundo das idéias, ele é aquele ô Antonico, que faz a massa comer do biscoito fino que fabrica.
A segunda é ler. A leitura é o meu combustível. Considero-a um instrumento capaz de jogar luz na escuridão de nossas vidas e é um alento para a solidão de nosso tempo.
A terceira é o meu cigarro, que hoje venho tragando, através principalmente da televisão, em função de quase não ter tempo para nada: ouvir o que as pessoas estão pensando sobre um monte de coisas. É claro que não ouço qualquer um. Adoro ver entrevistas, palestras, debates, documentários, participar de congressos. Isto é tão sério, que hoje vendo o programa Starte, em que falava de espaços construidos para debater idéias, como a Casa do Saber e a Casa das Rosas, esta criada com o acervo da biblioteca do poeta Haroldo de Campos, em São Paulo, um professor disse que em Paris, existe um espaço em que oferecem 365 palestras no ano, ou seja, uma para cada dia do ano, inclusive no natal. Com certeza para mim, “isto é o paraíso. Quando morrer, quero ir para lá”.
A quarta é Minas, tenho uma verdadeira obsessão por Minas Gerais, acho-a linda, suas montanhas são o meu limite. Não me interessa em quase nada, o que está além delas. Minas é o meu país. Desejo conhecer cada centímetro, dessa minha nação.

20 março 2005

CONVERSANDO COM DARCY

SABEDORIA

Vejo por aí muita criança perguntona e não vejo ninguém com paciência para explicar as coisas a elas. Dá pena. Sobretudo, das menininhas de voz esganiçada, perguntando: Por quê? Para quê? Por isso sou professor . Só peço que não me tratem de tio. Não sou tio de ninguém, não. Sou é escritor.

Vou contar para vocês, tintim por tintim, tudo que sei. Não digo que sei tudo, nem digo que o que sei seja sempre verdade. Quem sou eu? Vou dizer aqui, por escrito, o que acho das coisas desse mundo, com a sabedoria que vim juntando a vida inteira. Não sou velho, mais sou meio erado, antigo.

Sempre vivi de olho aceso, assuntando, querendo entender. Assim é que aprendi: observando. Mais, ainda, aprendi de oitiva, escutando sabedorias alheias e conferindo. Li, também, muito almanaque e revista e fui guardando na cabeça o que prestava. Estudo mesmo, estudei muito demais, mas aprendi pouco. Tome o que digo aqui como minha opinião, não mais. Se puder desmentir, desminta logo. Respeitarei sua opinião. Se não for bestagem rematada, acato. Nada contra.

Conheci muita gente considerada sábia e quis aprender com elas. Não deu certo. Os sábios são muito minuciosos. Cada qual sabe lá sua coisinha e ignora todo o resto. E o resto é o mundo inteiro. Eles são variadíssimos.

Há sábios para toda sorte de coisas. Sábios para bichos – os zoólogos; sábios para plantas – os botânicos; sábios para micróbios – os microbiologistas; sábios para gentes – os etnólogos; sábios para vinhos – os enólogos; até sábios para capins existem – eu não sei é como eles se chamam.

Também há sábios híbridos, que misturam sabedorias para ver se entendem melhor alguma coisa, como os físico-químicos, os químico-físicos, os biofísicos, os geofísicos e outros. Esses doutores formados, que falam com toda a empáfia da sabedoria deles, não são sábios coisa nenhuma. Quase todos são uns ignorantes, como a gente mesmo, só sabem coisas lá da cuca deles, com que ganham a vida.

Há muita gente especializada que, sem ser sábio, sabe alguma coisinha. O diabo é que, quanto mais aprofundam no saber do que sabem, mais ignorantes ficam o resto. Os advogados sabem como enrolar as leis para defender criminosos e ladrões, Vez por outra, defendem inocentes, também. Os médicos sabem algumas das doenças, mas ignoram as outras todas. São muito sujeitos à moda. Quando dão de operar amígdalas, arrancam as amígdalas de todo mundo. O mesmo fazem quando a moda é operar apêndice. Agora, acham que todo mundo está loucão e precisa de pílulas tranqüilizantes, ou psico-qualquer-coisa.

Para procurar médico, a gente precisa, primeiro, prestar atenção para ver que doença tem, senão gasta muito dinheiro à-toa. Ir a um otorrinolaringologista com dor nos rins é perda de tempo: eles só sabem de otites, de dor de garganta e de espirro desenfreado. Os ortopedistas encanam perna quebrada direitinho, mas não sabem nada de quem sofre do coração. Os engenheiros também são especializados demais: o que sabe fazer pontes, só faz pontes; o que sabe fazer casas, só faz casa.

Ás vezes, até penso que quem sabe mesmo é o povo, ou as pessoas que não sabem nada. Mas cada um se vira com o pouco que sabe para ganhar a vida. Se todos os sábios do mundo desaparecessem amanhã, não fariam muita falta. Se o povo acabasse, isso sim seria um desastre. Os sábios morreriam de fome e de sede.

Trate de aprender tudo o que puder. Saber demais não ocupa lugar. Ignorância, sim. A sabedoria anda solta por aí, para a gente aprender o que quiser. Ela está menos nos livros que nos fazimentos, por isso se diz que quem sabe, faz, quem não sabe, ensina.

Se o mundo fosse acabar outra vez, num dilúvio, que faria o novo Noé da barca, para salvar a humanidade? Escolha você entre duas soluções. A primeira seria pegar dez sábios de cada profissão, formados em universidades, e levá-los para uma morraria deserta com seus livros e instrumentos de trabalho. A segunda seria catar na feira uns mil feirantes com suas mercadorias e carregar para o mato. Quem salvaria a humanidade?
DARCY RIBEIRO – NOÇÕES DE COISAS – 1995 – PÁG. 09-11

10 março 2005

O CANTO DE NIETZSCHE

A POBREZA DO RIQUÍSSIMO

(Dos Ditirambos de Dionisio, 1888: "Estas são as canções
de Zaratustra, que ele cantava para si mesmo,
para suportar sua última solidão".)

Dez anos já –
e nenhuma gota me alcançou,
nem úmido vento nem orvalho do amor
- uma terra sem chuva...
Agora peço à minha sabedora
que não se torne avara nessa aridez:
corra ela própria, goteje orvalho;
seja ela a chuva do ermo amarelado!
Um dia mandei as nuvens
embora de minhas montanhas -
um dia eu disse, "mais luz, obscuras!"
Agora as chamo, que venham:
Fazei escuro o meu redor com vossos ubres!
- quero ordenhar-vos,
vacas das alturas!
Leite quente, sabedoria, doce orvalho do amor
derramo por sobre a terra.
Fora, fora, ó verdades
de olhar sombrio!
Não quero ver em minhas montanhas
Acres verdades impacientes.
Dourada de sorrisos,
de mim se acerca hoje a verdade,
adoçada de sol, bronzeada de amor –
só uma verdade madura eu tiro da árvore.
Hoje estendo as mãos
às seduções do acaso,
bastante esperto para guiar, tapear o acaso,
como a uma criança.
Hoje quero ser hospitaleiro
com o mal-vindo,
contra o destino mesmo não quero ter
- Zaratustra não é um ouriço.
Minha alma, insaciável com sua língua,
já lambeu em todas as coisas boas e ruins,
em cada profundeza já mergulhou.
Mas sempre igual à cortiça
Sempre bóia outra vez à tona
Bruxuleia como óleo sobre os mares morenos:
por ter essa alma me chamam o Afortunado.
Quem são meu pai e mãe?
Não é meu pai o príncipe Supérfuo,
e mãe o Riso silêncioso?
Não me gerou esse duplo conúbio,
eu animal de enigma,
eu monstro luminoso,
eu esbanjador de toda a sabedoria de Zaratustra?
Hoje doente de delicadeza,
Um vento de orvalho,
Zaratustra está sentado, esperando, esperando, em suas montanhas –
eu seu próprio suco
tornado doce e cozinhado,
embaixo de seu cume,
embaixo de seu gelo,
cansado e venturoso,
um criador em seu sétimo dia.
- Quietos!
Uma verdade passa por sobre mim
Igual a uma nuvem –
com relâmpagos invisíveis ela me atinge.
Por largas lentas escadas
Sobe até mim sua felicidade:
vem, vem, querida verdade!
Quietos!
É minha verdade! –
De olhos esquivos,
De arrepios aveludados
me atinge seu olhar,
amável, mau, um olhar de moça...
Ela adivinha o fundo de minha felicidade,
ela me adivinha – ah! o que ela inventa? –
Purpúreo espreita um dragão
no sem-fundo de um olhar de moça.
Quietos! Minha verdade fala!
Ai de ti, Zaratustra!
Pareces alguém
que engoliu ouro:
ainda hão de te abrir a barriga!...
És rico demais,
Corruptor de muitos!
São muitos os que tornas invejosos,
são muitos os que tornas pobres...
A mim própria tua luz faz sombra –
ela me enregela: vai embora, tu, que és rico,
vai, Zaratustra, sai de tu sol!
Queres presentear, distribuir teu supérfluo,
mas tu próprio és o mais supérfluo!
Sê esperto, tu, que és rico!
Presenteia antes a ti próprio, ó Zaratustra!
Dez anos já –
e nenhuma gota te alcançou?
Nem úmido vento? nem orvalho do amor?
Mas quem haveria de te amar,
ó mais que rico?
Tua felicidade faz secar em torno,
Torna pobre de amor
- uma terra sem chuva...
Ninguém mais te agradece,
mas tu agradeces a todo aquele
que toma de ti:
nisso te reconheço,
ó mais que rico,
ó mais pobre de todos os ricos!
Tu te sacrificas, tua riqueza te atormenta –
Tu dás,
não te poupas, não te amas:
o grande tormento te força o tempo todo,
o tormento dos celeiros saturados, do coração saturado –
mas ninguém mais te agradece...
Tens de tornar-te mais pobre,
Sábio insensato!
Queres ser amado.
Ama-se somente aos sofredores,
só se dá amor aos que têm fome:
presenteia antes a ti próprio, ó Zaratustra!
- Eu sou tua verdade...
FRIEDRICH NIETZSCHE (1844-1900)

23 fevereiro 2005

O ÚLTIMO DIA DE MIM - EÇA DE QUEIROZ

Encontro-me em um quarto de Paris, melancólico e sentindo reflorescer em mim a vida que vivo, e a que poderia tervivido. Sinto em meu ser a ternura lusa, de um pobre homem de Póvoa de Varzim, que muito ironizou a sua pátria por amá-la e melhor dela querer. Tudo em mim é lusitano. Vejo que consegui transmitir e me libertar desses sentimentos em meu romance, que há pouco terminei. Nele derramei liricamente os valores portugueses essenciais: o homem, as paisagens, a história, a quinta, a freguesia e a aldeia, mas sempre fui um crítico mordaz, caricaturando os ridículos de uma sociedade presa a valores rurais que ansiavam pelos urbanas criados pela revolução industrial.
Tive uma infância turbulenta. O meu nascimento se deu em circunstância irregular, pois os meus pais ainda não eram casados, obrigando-me a passar a infância e a adolescência afastado deles. Fui registrado como filho de mãe incógnita, uma ave sem ninho. Vivi com a minha ama de leite e, após a sua morte, com meus avós paternos. A falta de afeto, amparo e carinho, na qual meu ser mergulhou, aguçou a minha sensibilidade, caminhando no tempo da vida com a alma ferida, protegendo-me com arraigada timidez, como um caramujo se defendendo, fazendo com que, a partir da adolescência, eu criasse mundos e personagens, impedindo o retorno a minha infância, que tanto procurei esquecer e sobre a qual sempre silenciei. Lembro-me de uma de minhas confissões da infância, uma artigo sobre o "francesismo", onde digo: "apenas nasci, apenas dei os primeiros passos, ainda com sapatinhos de crochê, eu comecei a respirar a França. Em torno de mim só havia a França. A minha mais remota recordação é de escutar, nos joelhos dum velho escudeiro preto, grande leitor de literatura de cordel, as histórias que me contava de Carlos Magno e dos Doze Pares... Também o meu preto lia contos tristes das águas do mar. Eram as aventuras de um João de Calais". Depois desse artigo, quase que não fiz outra coisa pela a vida afora, a não ser escrever. "As abelhas só sabem fazer mel, e eu só sei fazer romances".
Parece tão recente o lançamento na Revista Ocidental do Romance O Crime do Padre Amaro e, logo depois, em livro sua primeira versão. A primeira edição não era O Padre Amaro que eu trouxera do ventre. Após as diversas revisões, passou a ser uma obra nova, a minha melhor obra. Na gestação cheguei a escrever a um amigo, antigo confidente, Ramalho Ortigão, dizendo-lhe como concebi o livro em uma tarde, na casa de uma senhora que tocava uma gavota, quando de repente flamejou-me, através da idéia, todo o livro, chegando à minha mente com um escândalo no país, um romance que punha a nu a fraqueza, a anarquia , a covardia em que mergulharia Portugal em conseqüência de maus governos. Queria com o livro dar um choque elétrico ao porco adormecido (refiro-me à Pátria). Além do mais é um romance que fala da vida da pequena vila devota, o grupo de padres e beatas da casa S. Joaneira, o mundo grotesco que se agita em torno da velha Sé. Uma história dum sortido amor sacrílego, entre um sacerdote e uma rapariga educada numa atmosfera de beatice e lassidão moral. Este romance inaugura o realismo em Portugal.
Acredito que renasço em meus romances. A vida é feita de perdas sucessivas, e cada dia morre alguma coisa de nós mesmos, ou, o que vem a ser o mesmo, algum dos que amamos. Houve uma época que escrevi em um álbum no qual já haviam colaborado Guerra Junqueira e o Oliveira Martins. A vida, eis o mote. Reflexo da alma: O amigo Oliveira Martins diz que a vida é um sonho; o amigo Guerra Junqueira diz que é um punhado de areia. Se é sonho, é o único que vale a pena sonhar; se é areia, é a única com que vale a pena edificar.
Antes da minha transferência para o consulado de Bristol, lancei o meu romance O Primo Basílico, a bomba literária e moral que explodiu na terra lusa ou o escândalo branco. Os críticos conservavam sobre mim um silêncio desdenhoso, mais aos poucos foram quebrando o gelo, catalogando como obscena e imoral uma obra realista ou naturalista. Tive nele a capacidade de plasmar fielmente em poucos traços uma realidade observada, lamentando-me por não poder conseguir a nota sublime da realidade eterna nem a nota justa da realidade transitória . Uma síntese instantânea do enredo: É uma mulher que tem uma amante, que é espreitada e seguida por uma criada – a qual se apodera das provas do adultério e estabelece uma tirania de todos os instantes sobre a ama: tirania longa, cruel, horrorosa, um verdadeiro drama íntimo. Sendo o assunto costume contemporâneos – não da província desta vez – mas de Lisboa. É um trabalho realista – talvez um pouco violento e cru, ma não foi para fazer dele uma leitura de serão nos colégios que o escrevi. O romance, esse é a apoteose do adultério, na estuda, nada explica, não pinta caracteres, não senha temperamentos, não analisa paixões. Não tem psicologia, nem ação.
Embora este fosse um livro que eu tivesse pressa em concluir, não perdi nele o habito das alterações, pois, confesso, é quase impossível para um escritor não fazer alterações nas provas, quando ao reler um trabalho impresso se vê uma palavra ou uma frase falsa – é absurdo não substituir, bem assim, é absurdo não introduzir ou alterar quando acode uma palavra ou uma frase de mais efeito. Isto acontece sempre, desde que se imprimem livros. É uma eterna insatisfação, busca da perfeição, uma ânsia de dar à língua uma forma nova, simples, na qual a nitidez do pensamento corresponde à beleza da frase. Até na capa vivi o escritor, uma capa bonita – é essencial num livro – como um vestido uma mulher. Foi um livro que me deu um trabalho dos demônios. Eu não sou gênio e trabalho devagar: talvez não acreditam, mas cada folha da revisão do "Primo" levou-me de dois a três dias, mas no dia vinte e um de fevereiro de mil oitocentos e setenta e oito O Primo Basílico foi posta a venda em Lisboa.
Estava ávido por conhecer a repercussão do livro. Ramalho escreverá com franqueza sobre o romance: "As cenas d’alcova são reproduzidas na sua nudez mais impudica e mais asquerosa. Este livro concebido com amargura e com misantropia deixa no espírito de quem lê uma triste impressão de melancolia e desalento" . Meu velho pai José Maria também externou as suas observações sobre o romance: "No ponto de vista da escola realista que te domina, o romance é uma obra d’arte perfeita. Entretanto eu creio que, mesmo nessa escola, há um ponto além do qual não é permitido, ou pelo menos não é conveniente passar. Pode mostrar-se a chaga, e o realismo está nisso; mostrar, porém, toda a podridão não dá mais caráter à escola realista, e leva ao exagero, que é um defeito de todo o gênero de composição. De resto deixa falar, ou não falar os invejosos, e vai por diante. Recomendo-te só que em tudo o que escreveres evites descrições que senhoras não possam ler sem corar".
Passei um bom tempo justificando e explicando o ataque à família lisboeta: Um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a que conhece a burguesia de Lisboa; - A senhora sentimental , mal educada, nem espiritual (porque o cristianismo já o não tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é) arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc, etc; - enfim uma burguesia da baixa... Uma sociedade sobre estas falsas bases, não esta na verdade: atacá-las é um dever. E neste ponto O Primo Basílico não está inteiramente fora da arte revolucionária, creio. Pois analisei a vida social enfocando a constituição moral da família na burguesia média da capital. Oferecendo uma crua visão da realidade, à qual o público não estava acostumado, e que foi objeto de ataque e viva controvérsia. Aparecem folhetos que avisavam as mães dos perigos para a moral existente na nova arte.
Minha evolução foi lenta, harmoniosa, intensa. A disciplina férrea da observação aquietava a minha fantasia e serenava a minha forma. Conquistando a minha maneira inconfundível, sugestiva e irônica, síntese consciente dos dois pendores contraditórios de minha alma: O impulso atávico do meu temperamento para a livre imaginação, o lirismo e a eloquência, dum lado; e do outro a minha tendência, adquirida pela educação positivista à qual me submeti, para uma percepção clara e imediata dos elementos objetivos da realidade e o desejo de exatidão na expressão deles, sem desdenhar, ou mesmo procurando-lhes os aspectos prosaicos, feios ou baixos. O resultado do meu esforço para resolver essa dicotomia interna é um estilo específico de romance em que entram numa peculiar fórmula de fusão, o solto vôo da fantasia romântica e a insubordinável probidade realista. Iniciei esta nova estética em O Mandarim, deliciosa novela fantástica, cujo prólogo, destinado a uma versão francesa, é uma irônica auto-análise literária. Um conto fantasia e fantástico , onde se vê, ainda como nos bons velhos tempos, aparecer o diabo, embora em redingote, e onde ainda há fantasmas, embora com boas intenções psicológicas. Espíritos assim formados devem afastar-se necessariamente de quanto seja realidade, análise, experimentação, certeza objetiva. O que os atraí é a fantasia, sob todas as suas formas, desde a canção até a caricatura, também em arte, nós produzimos principalmente líricos e satíricos. Eis porque, mesmo depois do naturalismo, ainda escrevemos contos fantásticos, autênticos, desses onde há fantasmas e onde se encontra, no canto das páginas, o diabo, o amigo diabo, esse delicioso terror da nossa infância católica.
Depois de uma longa gestação conclui Os Maias, neste romance, estendi o meu campo visual à alta sociedade., tardiamente romântica. Servindo de fundo um caso de incesto., pinta-se em quadros cheios e movimentados a vida das alta esferas da política, do governo, da aristocracia, das finanças e da literatura, observada com ironia cruelmente escrupulosa. Também, não podia evitar, neste romance, minhas purificações nas águas lustrais da geografia poética e exótica, Não encontrei para o herói do livro e mesmo para mim, melhor purificações do que a viagem a mundos distantes do planeta, através de geografias das antigas civilizações.
Lembro-me de minhas confidências sobre o romance, ao querido Joaquim Pedro, dizia-lhe: "saíram uma cousa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas, há episódios bastantes toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos demais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio; a cena no jornal "A Tarde"; e, sobretudo, o sarau literário". Mesmo sendo idealizado há mais de dez anos , o livro atingiu alentadas proporções.
Os Maias movimentaram e dividiram a crítica, não podendo eu me queixar do silêncio. Dentre as apreciações sobre o romance, a que mais me agradou foi a de Silva Gaio, era como se dissera serem Os Maias uma caricatura da sociedade portuguesa. Ele fizera está observação:" são realmente, em mais de um ponto de vista. Mas, dá-se com está sociedade o que se dá com alguns indivíduos: são já de si tão caricatos, que o lápis irreverente nada mais fez do que dar-lhes a atitude que lhes convém, a expressão última definitiva do que eles são".
Até o momento Os Maias é o meu último livro impresso. Sendo ele um desfile da multidão de personagens, imortais. Desde Maria Eduarda e Carlos da Mais, protagonistas principais, ao lado de cujas dolorosas existências passam o grotesco Conde Gouvarinho, Damasco salcede, o poeta Alencar, o sarcástico João de Ega até o bom e inditoso Afonso da Maia, o senhor do Ramalhete. Creio hoje que fui recompensado pelos dez anos consumidos. Os Maias conseguiram se edificar sobre as rochas.
Apesar de minha má saúde, escrever estas palavras me faz peregrinar em minha vida agravando a minha melancolia. Pois sou um doente que não conhece cama e Paris é ainda o sítio em que bate mais largamente o coração da humanidade. Como uma borboleta à morte adeja sobre minha cabeça. Meu corpo se encontra esguio e curvo, tomando aparências esqueléticas, meus nervos se encontram eletrizados e vibráteis, mesmo assim me movo, agito-me alegremente, na maior parte do tempo tenho uma atitude de exaustão. Às vezes me brotam observações argutas, ditos mordazes, anedotas hilariantes. Depois a prostração, o letargo de dias e dias, em que não me agrada ver pessoa alguma, esta solidão que me povoa de pensamentos dolorosos. Meu trabalho agora se assemelha a uma tortura mental e não a uma criação como antes, quando era feito em pleno gozo, na tentativa de tornar meus romances uma obra de arte.
A propósito, A Casa de Ramires está péssimo, um horror, espero que ninguém leia. Sei que sou um eterno insatisfeito, Ramires, Fradique e o Jacinto d’A Cidade e as Serras não terminarão as suas jornadas.
Oh! Minha Lisboa, você sempre foi o meu laboratório de arte, o meu material de estudo, a minha crítica preocupação, o meu mundo de escritor. Sou a chaga dessa sociedade decadente, que tentei salvar expondo-a a luz ou fustigando-a com o estilete da ironia. Na realidade, eu te amo, minha querida Lisboa. Orgulho-me do pobre homem de Póvoa de Varzim. Como esquecer os velhos tempos? – o cenáculo, o Chiado, a Casa Havanesa, o Hotel Bragança, os Vencidos da Vida. Às vezes a vejo mesquinha. Talvez seja o tédio. E voltar a ti é o meu sonho, Lisboa.
Sinto-me exausto. E creio que estou imerso na única dança que dançamos. Hoje são quinze de agosto de mil e novecentos, entretanto, não tenho esperança, o romance o qual todos somos obrigados a viver, para mim está no último capítulo. Minha alma transborda as últimas palavras que ainda pedem movimento. Mas o meu instinto insiste em que tudo ao meu redor vai acabar, desaparecendo gentes, bichos, arvores, jardins, casas, órfãs, pianistas, histórias, cadernos – o que pode restar da história de um romancista ou de um louco? Não mais a vontade de glória (mas que glória?) ou de poder (mas que poder?). Apenas o instinto de permanecer através da idéia, da palavra – desafio à morte. Obsessão de infinito da nossa finitude, exigência maior do criador. A morte não é difícil. Difícil é a vida e o seu ofício.

22 fevereiro 2005

A MAIS BELA FORMA DE SE FAZER CIÊNCIA


CHARLES DARWIN O GÊNIO ATORMENTADO

Um verdadeiro escândalo estourou quando Charles Darwin publicou, em 1859, Da origem das espécies pela via da seleção natural. A primeira edição - de 1.250 exemplares, volume grande para a média da época - se esgotou em alguns dias. Nascia assim o "transformismo", uma doutrina que se opunha frontalmente às idéias consagradas sobre o tema e que, por oposição, seriam a partir daí chamadas de "fixismo". O autor escrevia: "Os bons criadores de animais domésticos procuram, por meio de uma seleção metódica dos pais, criar novas linhagens, superiores às existentes no país. Mas há outra seleção, bem mais importante, que poderíamos chamar de inconsciente, cuja mola propulsora é o desejo que todos sentimos de reproduzir os melhores indivíduos de cada espécie. Assim, quem quer cães de caça começa escolhendo os melhores exemplares entre os encontrados, para depois providenciar sua descendência. Não é certo que a intenção seja, sempre, a de modificar a raça. Mas, se essa prática se repetir, acabará por produzir a modificação da raça."Assim é a seleção artificial. Sobre a base desse mecanismo indiscutível, Darwin enxertou a "seleção natural", cuja exposição iria desencadear verdadeiras tempestades. O motor da evolução é a persistência do mais apto na luta pela vida. O lobo mais forte tem mais possibilidade de ter filhotes do que os lobos mais fracos, mantidos à parte do grupo. A borboleta que passa mais desapercebida, sobre a planta onde pousa, tem mais chance de sobreviver do que outras, e sua descendência conseguirá se confundir com a vegetação.
Esse homem, por ocasião do lançamento de sua teoria, tinha 50 anos de idade, e teve idéias bastante revolucionárias para sua época por reflexões feitas na juventude, no curso de uma longa viagem científica de volta ao mundo. Mas ele tinha consciência de que suas convicções eram explosivas, a ponto de ter preferido amadurecê-las durante muito tempo. Pôde, ao longo desse período, reforçá-las com os melhores argumentos, antes de publicá-las.
Se Charles, o segundo filho de um rico médico de Shrewsbury, no noroeste da Inglaterra, era especialmente dotado do ponto vista intelectual, era também bastante despreocupado. Seu pai, muito rígido, lamentava que ele se dedicasse sobretudo "à caça, aos cães e à captura de ratos". O rapaz preferiu não seguir a carreira médica, conforme a tradição familiar. Demonstrou até mesmo vivo horror pela atividades desde a primeira intervenção cirúrgica a que assistiu, feita em uma criança, evidentemente sem anestesia. Seu pai quis, então, fazer dele um sacerdote. Foi sob essa perspectiva que Charles começou seus estudos em Cambridge.
Dotado de grande inteligência e facilidade para aprender, ele só se dedicava aos estudos de modo diletante. Continuava a recolher pedras e insetos. A caça, sua paixão, também o mantinha em contato com a Natureza da mesma forma que suas leituras favoritas, as dos grandes viajantes, em especial Humboldt. As incursões para estudos de arborização, com seu professor de botânica, permitiram que ele fizesse observações precisas.
Em três anos, se formou. No outono de 1831, voltou à casa paterna, sem saber muito bem o que faria da vida, que parecia fácil. E então desabou a tempestade, antes que o verão sequer tivesse chegado ao fim. O responsável foi seu professor de botânica, embora valha uma reflexão a respeito do destino e de como se entremeiam seus fios. Tudo decorreria, é certo, de sua grande curiosidade e de sua viva inteligência.
O mestre, que gostava muito de seu jovem amigo, foi contatado pelo almirantado, que preparava uma expedição hidrográfica de volta ao mundo, dedicada especialmente a fazer o levantamento das profundezas do oceano e estudar as correntes marítimas em torno da América do Sul. O jovem naturalista foi consultado sobre seu interesse em participar da viagem. Sem nenhum salário, evidentemente. A proposta caiu como uma luva para Darwin. Ao lhe oferecer essa função, seu protetor escreveu-lhe : "É uma ocasião excepcional para um homem dedicado e de caráter". O jovem, porém, enfrentou uma dificuldade inicial. Teve de recorrer ao tio para reverter a negativa que ouviu do pai ao consultá-lo sobre a partida. Essa resistência não só foi vencida como dele recebeu dinheiro suficiente para gastos que teria por vários anos.
No final do ano de 1831, ele estava a bordo quando o Beagle deixou a Inglaterra para uma longa exploração marítima que se tornaria famosa. Darwin, então com 22 anos, compartilhava a cabine com o igualmente jovem, de 27 anos, capitão Fitzroy, chefe da expedição, cujo nome foi dado, no final do século XX, a um dos mais belos picos nevados dos Andes. Era o começo de um longo convívio e uma estreita relação de amizade. Não obstante, mais tarde, o mesmo Fitzroy se alinhou entre os mais ferozes inimigos de Darwin, por sua oposição aos ensinamentos bíblicos.
No último verão de sua epóca de estudante, Darwin tinha acompanhado um professor de geologia de Cambridge numa viagem de estudos ao País de Gales. Somado a isso, nos primeiros dias da travessia, leu os Princípios de Geologia de Charles Lyell, cujo primeiro tomo acabara de ser publicado. Era uma obra de muita repercussão, construída com base na idéia de que a Terra sofria os efeitos do que o autor chamou de "causas atuais".
Ele estava bem preparado, portanto, para o que viria a descobrir em sua primeira escala tropical, quando abordaram as ilhas de Cabo Verde. Rochas brancas a uns 15 metros acima do nível da praia continham as mesmas conchas e mexilhões que se podia encontrar à beira-mar. Altos rochedos negros davam prova de atividade vulcânica recente. Assim se revelou ao jovem viajante a importância decisiva do tempo: essas ilhas que haviam se formado há pouco tempo, mais recentemente ainda haviam emergido.
Não tardou para que se iniciasse a lenta navegação ao longo da costa da América do Sul, com incursões por seus recortes hidrográficos, durante as quais o naturalista iria explorar terras, ao longo de vários anos. Dessa maneira, Darwin encontrou nos pampas argentinos seus primeiros fósseis. No leito seco de um rio despontavam as ossadas. Ele as exumou. Explorou e escavou os arredores. Descobriu restos de monstruosos quadrúpedes. Um deles tinha o tamanho de um elefante, mas a dentadura de um roedor. Um espírito dotado de razão não poderia deixar de concluir que, apesar da crença generalizada sobre o recente nascimento da Terra já com o formato atual, o planeta, bem como a vida nele, havia evoluído durante muito tempo, antes de assumir as características do presente.
Bem mais ao sul, na Patagônia, perto de Puerto San Julian, Darwin encontrou fósseis de animais gigantes já desaparecidos. Agora, afirmava, "um paquiderme notável, tão grande quanto um camelo". E as dimensões desses espécimes surpreendiam o naturalista. "Este continente deve ter abrigado, em outros tempos, monstros imensos; atualmente, só vemos pigmeus, se compararmos os animais que aqui vivem às raças extintas. Qual pode ter sido a causa do desaparecimento de tantos tipos e de espécies inteiras? Contra a vontade, pensamos numa grande catástrofe. Mas um cataclismo que tivesse sido capaz de destruir dessa forma todos os animais da Patagônia, do Brasil e da cordilheira do Peru teria sacudido o globo terrestre até suas bases mais profundas. Na verdade, o estudo da geologia dessas regiões nos permite concluir que todas as formas de vida sobre a Terra são derivadas de modificações lentas e graduais."
Nas ilhas Falkland, que os franceses batizaram de Malvinas (em francês, Malouines), Darwin se surpreendeu com as impressionantes variedades de formas que apresentavam os "lobos das Falkland", carnívoros já extintos, comparando-se os das ilhas ocidentais àqueles das orientais do arquipélago. Ele desconfiou que a separação de populações em princípio idênticas as fizera evoluir de modos diferentes e independentes, reflexão de capital importância para um espírito que formularia mais tarde doutrinas evolucionistas.
Na Terra do Fogo, no extremo sul do continente, o viajante teria oportunidade de focar suas reflexões na direção de outros seres vivos: os próprios seres humanos. "Alguns indígenas nos seguiram durante várias milhas, correndo ao longo da orla marítima. Eu jamais esquecerei um desses grupos de selvagens: quatro ou cinco apareceram de repente no alto de um rochedo que dominava o mar. Completamente nus, a longa cabeleira solta, eles brandiam no ar grandes bastões; saltavam, agitando os braços e fazendo grotescas contorções, enquanto soltavam os gritos mais horrendos." Uma outra tribo, ele registrou em seus escritos, ostentava como única vestimenta pedaços de pele "apenas suficientes para cobrir as costas até a altura dos rins, que eles envolvem com fios passados de um lado a outro do corpo, e que se agitam conforme a direção do vento". O naturalista refletiu sobre a evolução e também a miserável condição humana, num país onde o inverno é gelado.
Numa ilha que o Beagle logo alcançou, subindo agora pela costa do Chile, foram as mudanças da Natureza que surpreenderam Darwin, em especial as de ordem geológica. Ele assistiu a uma violenta erupção do vulcão Osorno, que domina Valdívia. Alguns dias mais tarde, testemunhou um forte terremoto, o de 20 de fevereiro de 1835, que destruiu a cidade de Concepción. Ele estava deitado sob as árvores, numa praia próxima de Valdívia, quando o chão tremeu por dois minutos. Suas impressões: "O movimento quase me fez ficar enjoado".
O navio retomou sua rota e chegou a Concepción duas semanas mais tarde. Do ponto de vista geológico, a destruição completa da cidade foi menos relevante do que o efeito considerado por Darwin realmente "mais notável": ao redor de toda a baía, as terras sofreram uma elevação, ele calculou, de 2 ou 3 pés. E mais: "Um recife de mexilhões em putrefação, ainda colados aos rochedos, demonstrava uma elevação de uns 10 pés".No seu relato de uma excursão que durou um mês, através das montanhas dos Andes, constam observações a respeito dos terraços de cascalhos e aluviões que enchiam alguns vales, mas em outros haviam sido recortados por erosões recentes. Darwin, a partir do seu estudo, concluiu : "A cadeia de montanhas, em lugar de ter surgido de repente, como ainda acreditam vários geólogos, se ergueu lenta e gradualmente". Assim, sempre e em todos os lugares, a Terra nos mostrava que vive e que não pára de evoluir, há milhares de anos. O que, para a época, era uma heresia.
Assim, durante mais de três anos, o mundo deu ao jovem viajante atento mil provas de suas transformações do presente e de suas metamorfoses ancestrais. Havia mais, porém. O acaso colocou no final dessa incursão sul-americana o arquipélago de Galápagos. Atualmente, conhecemos bastante bem as características excepcionais de sua flora e fauna, que fizeram dessas ilhas uma reserva biológica mundial, com justa razão denominada "laboratório de evolução". A mil quilômetros do Equador, de origem vulcânica relativamente recente, essas ilhas constituem um mundo à parte.
São muito conhecidas fotos ou filmes sobre seus inhames marinhos, seus enormes lagartos terrestres, suas tartarugas, as maiores do mundo, seus pássaros que têm os hábitos de nossos pica-paus, mas que - por não terem os bicos tão pontiagudos - utilizam um espinho de cacto para arrancar vermes vivos do tronco das árvores. Por toda parte, nessas ilhas, a vida assumiu formas bastante particulares - o que prova que ela pode evoluir. Há, ainda, as diferenciações que podem ser estabelecidas entre as populações das várias ilhas. Elas são separadas por canais, freqüentemente largos e sempre com violentas correntezas, que impedem que sejam atravessados. Além disso, os morcegos se encarregaram de eliminar qualquer nadador imprudente. Nem mesmo os pássaros passavam de uma ilha a outra.
Os exploradores separaram, em redomas de vidro, 14 espécies de pintassilgos, diversos tipos de tartarugas, variedades típicas dessa ou daquela ilha. A diferenciação era tão precisa que, diante de Darwin, o governador equatoriano do arquipélago teve ocasião de reconhecer a origem da tartaruga trazida para o seu jantar. Assim, o naturalista teve a confirmação de que, de fato, de uma única origem nasceram espécies variadas, por influência de diversos fatores (meio ambiente, alimentação, transmissão hereditária de características adquiridas acidentalmente).
Depois das ilhas Galápagos, terminava a missão do Beagle. Mas a viagem de volta ainda teria escalas no Taiti, na Nova Zelândia, na Austrália e nas ilhas Maurício, onde o naturalista pôde também constatar milhares de vidas diferentes. O retorno a Portsmouth aconteceu em outubro de 1836. Darwin, física e espiritualmente amadurecido, voltou rapidamente a The Mounth, a propriedade familiar onde caixas de documentos enviados de todas as escalas o aguardavam. Ele estava intimamente convencido da evolução dos seres vivos. Mas tinha consciência do caráter explosivo de suas idéias; tampouco queria publicá-las sem que tivessem amadurecido bem e, sobretudo, sem tê-las reforçado com base em novos estudos, em outros exemplos. Antes ele publicou, com grande sucesso, o relato de sua viagem.
Foram suas idéias a respeito da evolução geológica que suscitam mais interesse, e ele pôde expressá-las plenamente, enquanto deixava de lado as reflexões sobre biologia. Pouco tempo depois, ele leu a Teoria da População, de Malthus, que acabara de ser publicada e que reforçaria suas próprias concepções. "Eu havia finalmente chegado ao momento de elaborar uma teoria...", escreveu, tempos depois. Só em 1859 ele viria a publicar a Origem das espécies, embora o título completo fosse A origem das espécies por meio da seleção natural ou a Preservação das raças favorecidas na luta pela vida.
A obra teve uma procura impressionante e se transformou no escândalo da época. Ele nem tinha, ainda, ousado aplicar suas teorias à raça humana. Escreveu simplesmente: "Um raio de luz complementar haverá um dia de iluminar a questão da origem do homem". Frase prudente, até mesmo sibilina, impotente porém para evitar a cólera e até mesmo o ódio de muitos. Em 1871, saiu a primeira edição de A descendência do homem, livro carregado de um caráter tão explosivo que até mesmo muitos adeptos da teoria da obra anterior se afastaram dele.
A idéia de que seres humanos e macacos pudessem ter ancestrais comuns foi um choque muito forte. No dilúvio de severas críticas que caíram sobre a cabeça do autor, há a indagação mordaz feita pelo bispo de Oxford: "É possível acreditar que variedades especiais de nabos tenham tendência a se tornar homens?".
Outro eclesiástico declarou ter procurado, em vão, na língua inglesa, termos baixos o suficiente para qualificar Darwin e seus partidários. Nos Estados Unidos, onde ninguém ousava brincar com a Bíblia, um professor que defendeu as teses de Darwin, questionando dessa forma o Gênesis, foi entregue à Justiça. Mas Darwin tinha como couraça uma filosofia própria. Enquanto o mundo inteiro era virado do avesso por suas idéias, ele falecia aos 73 anos de idade, em 19 de abril de 1882, em sua propriedade de Kent, de onde ele jamais saiu depois de sua viagem imortal.
Por Pierre de Latil

18 fevereiro 2005

O EMUDECIMENTO DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


Generalizando, pode-se dizer que as ciências humanas e sociais não estão respondendo, através de suas pesquisas, aos problemas que a sociedade vem vivenciando. Na tentativa de fazer alguma elucidação, os pesquisadores recorrem à repetição de teorias, que outrora tiveram a sua importância, porém hoje, elas tornam o discurso vazio de sentido e vago, em grande parte das publicações.
A necessidade dos pesquisadores de estarem dentro de uma instituição acadêmica, é um dos fatores que colaboram para o emudecimento dessas ciências. Pois hoje, estas instituições são importantes pólos no financiamento de pesquisas em diversas áreas e oferecerem uma cômoda legitimação institucional ao profissional que realiza o seu estudo nelas. Estes dois fatos colocam um número considerável de profissionais condicionados a estas verbas e a segurança na divulgação da pesquisa. E isto torna-se, um dos obstáculos para um olhar diferenciado sobre a sociedade. Visto que, estas instituições são restritivas quanto ao valor do financiamento, porque são obrigadas a desdobrá-lo em outras áreas.
Outro fator, é o aspecto metodológico e as malditas linhas de pesquisas, impostos aos pesquisadores para terem a pesquisa reconhecida pela comunidade cientifica. As universidades no caso do método cientifico, segue-o como um dogma, utilizando-o como uma receita, um paradigma intransponível. Já as linhas de pesquisas são definidas de acordo com interesses interno da instituição e não com os problemas enfrentados pela sociedade. O método clássico, instituído pelo positivismo para verificação e confirmação das hipóteses levantadas, é hoje, no caso das ciências humanas e sociais, muito limitativo, visto que o universo humano é muito complexo e transitório e as intervenções tem que ser muito mais dinâmicas.
O último fato, é a atuação dos orientadores na pesquisa, uma vez que, quando ocorre do pesquisador ter alguma idéia diferente para realizar a sua pesquisa, ele é literalmente impedido, pelo orientador de ir em frente. Sendo a atuação desses ditadores da "ciência" muitas vezes conservadoras, e para um pesquisador, a liberdade é extremamente necessária. Quanto as orientações importantes para o embate reflexivo, podem muito bem ser adquiridas através de uma extensa bibliografia existente, sobre diversos temas e de fácil acesso, e pela própria experiência de êxito e fracasso no momento de se verificar as hipóteses. No entanto, deve-se salientar que para isto, o pesquisador tenha a humildade de reconhecer as suas falhas e ouvir outras visões, sem com isso, tornar-se um boneco de fantoche das idéias de alguém ou da própria pesquisa.
Diversos exemplos, de excelentes pesquisas, podemos encontrar na história, que deram um novo rumo às ciências humanas e sociais. Quando recorremos às obras de Marx, Freud, Weber e alguns outros, ícones das pesquisas realizadas na área humana e social dos dois últimos séculos, esquecemos que as suas pesquisas foram pensadas e elaboradas fora das academias. Marx, dedicou a sua vida à obra, elaborada dentro da biblioteca e cortiços de Londres, financiada pela sua pobreza, pela morte de seus amados filhos, pela compreensão de sua mulher e pela tamanha generosidade de Engels, que muitas vezes assumiu a direção dos negócios do pai, tornando-se um burguês em atividade, para poder mandar dinheiro ao Marx, que trabalhava em extrema miséria em Londres. Freud, quando começou a publicar as suas pesquisas, no final do século XIX, já havia começado a ditadura do desenvolvimento cientifico, apenas dentro das universidades, foi durante muito tempo ridicularizado, apesar de seu rigor metodológico. Não foi poupado por sua independência. Weber, teve que sumir durante dez anos, para florescer as suas brilhantes idéias e tornar-se um dos mais notáveis sociólogos do século XX.
Contudo, não devemos perder de vista o caráter generalista destas afirmações, pois existem algumas ilhas que norteiam o pouco progresso alcançado nas últimas décadas nestas ciências. Mas que foram insuficientes, diante de tantas transformações as quais vem passando o mundo em que vivemos.
Portanto, para tirar as ciências humanas e sociais de seu emudecimento, ou melhor dizendo, de sua gagueira, os pesquisadores devem parar de ficar apenas atrás dos laboratórios, fabricando estatísticas e teorias vazias e começarem a ver que o melhor campo de pesquisas são as pessoas inseridas no mundo. Coragem para não ter medo de fazer indagações sobre o homem e a sociedade, estudar muito e receber como prêmio as vaias, a indiferença e tantas outras coisas típicas de quem aceitou a viver de sua única tese, de quem nunca gostou de conhecer nada, que quiz apenas o título de doutor. Como diz uma das pessoas mais esclarecidas que conheço, ficaram a vida inteira falando da tese que escreveram.

P.S.: Agradeço a R. por me ensinar o que é ciência, não à que se encontra nos manuais de procedimentos científicos, mas a que esta fora das algemas, de olhar crítico e criterioso sobre a sociedade e a própria pesquisa. E ao É. por me ensinar que nem todos estão preocupados em aprender. E o que é dito, não é para ser entendido por todos. Para exemplificar isto, ele usa como metáfora a pergunta feita a J.C. por um apóstolo, quando perguntava-lhe, por que se expressava sobre a forma de parábola e ele o respondeu que era para que todos ouvissem, mas para que nem todos compreendessem.

24 janeiro 2005

MORRENDO COM IVAN ILITCH

Tolstoi, no conto "A morte de Ivan Ilitch", escreve um maravilhoso tratado sobre a existência humana. Fugir da realidade da vida, encená-la em papéis assumidos no cotidiano, é possível, mas quanto a morte, não! E é isso, o verdadeiro horror, a ser enfrentado por todos os homens.
A morte do outro, se apresenta ao vivente como uma mistura de medo e indiferença. O indivíduo acredita ser imortal, e que mortal são apenas os outros, no entanto, diante da precariedade da milagrosa dedução, carrega consigo a dúvida de sua imortalidade. E, mesmo com o corpo falecendo aos poucos, tenta ignorar a morte e entrega-se a uma vacilante esperança, até nos últimos suspiros de vida.
Em meio as indagações do porque viver e morrer, o personagem, Ivan Ilitch, percebe a mentira que foi a sua existência e a da sociedade em que vive. Enoja-se e tem pena daqueles que diante da mentira em que vivem ignoram tanto a vida, quanto a morte. Vê que quanto mais instruídas são as pessoas, maior é a fuga, a indiferença e a representação daquilo que chamam de vida. Distanciam-se da simplicidade, da realidade e consequentemente do sofrimento alheio. O único sentimento que conseguem compartilhar é o medo. E têm como saldo uma existência inautêntica.
Apesar de ser um juiz, Ivan, sente a necessidade de ser acariciado e de cuidados, porém apenas um empregado, que o servia como enfermeiro, é que irá perceber a sua carência e será capaz de lhe oferecer um pouco de conforto, a esta alma solitária. Ivan, descobrirá que amor não tem nada haver com a inteligência. Este pobre mujique, não terá nojo de limpar as fezes deste doente, não se cansará de passar as noites em claro, segurando o pé deste ser humano que se definha aos poucos. O mujique sabia, que todos estamos sujeitos à morte, e que amenizar a agonia de quem está mais próximo dela, é o mínimo que se pode fazer.
Portanto, não foi em sua vida familiar ou profissional, que Ivan encontrou autenticidade, honestidade e amor, mas com um camponês rude. A leitura do conto, nos faz viver a magnífica experiência de aprendizagem e aceitação da morte. Lendo-o morremos com Ivan Ilitch.