"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

21 maio 2005

COMO VIVE E MORRE UM PASSARINHO – JOHANN SEBASTIAN BACH - PARTE I

Ali permanecia ele, um velho baixo e corpulento, vestindo calças e sapatos afivelados, usando a enorme peruca cinzenta que ela lhe havia dado em um natal, sorrindo alegremente para ela, com esse sorriso vago dos cegos, quando ela disse: - Sim, meu João está certo – tentando controlar o tremor de seus lábios.

Normalmente ela chamava-o de Johann Sebastian, mas pensava nele como “meu Johann”, e às vezes escapava... – Está certo – repetiu ela com um aceno trêmulo de sua cabeça coberta por uma touca. – Vá e toque no órgão. Será bom para você.

Era loucura, ela o sabia, deixá-lo ir tocar o órgão a esta hora da noite. Isto faria com que toda a escola acordasse, e que Herr Weinlick, o censor, descesse e este certamente mandaria um relatório para as Suas Majestades do conselho municipal, e estas diriam que o seu Johann ficara maluco tanto quanto cego e que elas não poderiam conservar tal professor num coral de uma escola municipal, e o despediriam. E para onde iriam eles, agora que o médico lhes havia levado todas as economias? Bom e doce Jesus, o que lhes aconteceria com ele cego e ela demasiado velha para encontrar trabalho, com Gottfried doente da cabeça, o inverno ainda não acabado e Leipzig ainda cheia de neve?

O pânico dilatou-lhe os olhos azuis e murchos no pergaminho miúdo que era sua face toda enrugada; mesmo assim ela continuava a cuidar dele, que tremia da cabeça aos pés, acenando teimosamente. Ela não sabia o que lhes aconteceria, mas não podia suportar mais aquilo, observando-o sentado ao pé do fogo, com suas mãos enormes e magras sobre os joelhos, olhando para as chamas que não podia ver, contando as horas da noite pelas rondas do guarda-noturno. Ela sabia que ele temia o que aconteceria pela manhã e que desejava orar e pedir a Deus que lhe desse forças, e compor música era seu método de orar. E por isso, mesmo que Sua Majestade, o prefeito em pessoa, os mandasse para a cadeia, ela deixaria que ele tocasse o órgão esta noite e dar-lhe-ia esta última alegria.

- Sim, meu Johann, vá e toque quanto quiser.

Ela acentuou as últimas palavras com a bravura incerta de um pobre que desafia o inevitável.

- Apenas não toque muito alto – pediu ela docemente, achegando-se a ele. E então, numa contradição desatenta, disse:

- E não demore muito.

- Não o farei.

Seus lábios continuaram movendo-se, mas nenhum som saía dos mesmos. Ele apenas aconchegou-a ao seu peito com se quisesse que ela ouvisse seu agradecimento diretamente pela batidas de seu coração.

A porta do quarto abriu-se e Gottfried entrou.
Com uma dor cruciante e repentina ela reparou que sua cabeleira ruiva estava despenteada e que ele havia esquecido de calçar uma das meias. Este quadro reabriu-lhe uma ferida no peito, por um momento esquecida. Ele fazia essas coisas, sabia ela, porque estava doente da cabeça e o médico havia dito que ele nunca sararia, apesar de ele ser um rapaz alto e simpático e de às vezes sentar-se ao clavicórdio e inventar músicas tão belas que mesmo o seu Johann, que era muito severo no que se referia à musica, ouvia com lágrimas nos olhos.

- Papá, posso ir também? – perguntou o idiota, tão excitado como uma criança. – Tomarei conta dos foles.

Johann Sebastian Bach consentiu.

- Sim, meu filho – disse ele gentilmente. – Oraremos juntos.

Da porta, Anna Magdalena observou-os enquanto avançavam incertamente pelo corredor mal iluminado abaixo, o cego apoiando-se no braço do filho. Então ela fechou a porta e permaneceu sem se mover, com o rosto escondido nas mãos. Finalmente, agora ela podia chorar e somente isso era o que ela podia fazer. Não perguntava mais e nem tentava compreender por que Deus lhes enviava tanto sofrimento. Não eram eles boas pessoas? Johann não havia pedido a vista a Seu serviço, compondo música à luz de velas glorificando Seu nome e cantando Sua glória? Todas aquelas cantatas, aqueles motetes, aquela colossal Missa para a qual ela havia riscado os pentagramas e aquela Paixão, que era a obra que ele mais amava, haviam sido todas escritas par Ele. Será que Ele não as ouvira?

Ela retirou as mãos do rosto e apurou o ouvido, escutando. Ele havia começado a tocar e a composição era a Paixão. Ela sabia que ela tocaria aquilo porque esta era a historia de Nosso Salvador Jesus e de como Ele havia sido espancado, de como cuspiram n’Ele, de com Lhe ataram uma coroa de espinhos na cabeça e fizeram com que Ele carregasse Sua cruz ao Calvário, onde eram crucificados os assassinos, e Ele, o próprio Filho de Deus, houvera suportado tudo isso sem uma palavra sequer... E agora, o seu Johann tocava aquela musica que havia escrito sobre aquelas coisas terríveis, para que pela manhã pudesse se lembrar do que Jesus havia sofrido por ele e então, ele também tentaria igualar-se a Ele...

Ela ouviu um rumor de passos ligeiros do lado de fora e virou-se para a porta. Sim, era Herr Weinlick... e tão furioso vinha que gaguejava consigo mesmo, e com tal pressa (mais corria do que andava), nem havia abotoado os sapatos.

- Que houve com ele? Gritou ele de longe. – Será que não sabe que já passa da meia-noite?... Terá ficado louco?... E quem lhe deu autorização de tocar no órgão grande? Apenas o organista tem o direito de toca-lo e ele é apenas professor do coro...

“É melhor deixa-lo falar por um pouco”, pensou ela, observando o censor aproximou-se, “deixemo-lo cansar-se um pouco...” Ela havia aprendido muito, vivendo todos aqueles anos com um homem. No velhos tempos, o seu Johann ficava às vezes tão furioso que atirava a cabeleira através da sal e a única coisa a fazer era ficar quieta e deixa-lo arengar e após algum tempo ele se acalmava.

- Um professor do coral, ouviu?, isso é tudo que ele é.

Herr Weinlick estava agora a apenas alguns passos dela e ofegava pesadamente.

- Enviarei um relatório e...

Faltou-lhe o ar e ele teve que parar.

- Entre, Herr Weinlick, e sente-se – disse ela suavemente.

- Não vim para sentar-me – gaguejou ele, acompanhado-a para dentro. – Vim para dizer-lhe...

Calmamente ela fechou a porta atrás dele. A musica já não soava tão alto.

- Sente-se nesta cadeira – disse ela com a tranqüila autoridade de uma senhora em sua própria casa. – E descanse um pouco.

Ela sentou-se perto dele à enorme mesa de jantar. Ele não era realmente um homem mesquinho, pensou ela, olhando-o. Apenas pobre e amedrontado. Igual a ela, igual ao seu Johann, igual a todos que não tinham nem um centavo seu. Era o medo que fazia com que as pessoas se tornassem cruéis...

- O senhor não deveria andar correndo por aí numa noite como esta sem um sobretudo.

- Não se incomode com isso – resmungou ele, reavendo sua cólera juntamente com o fôlego.

- Mas o senhor ficará doente. Olhe para si, todo esbaforido e perspirando...

- Estou muito bem. Apenas aviso-a...

Ela já estava se levantando.

- Vou lhe arranjar um pouco de sopa quente.

- Não quero sopa nenhuma – interrompeu ele, vendo-a debruçar-se sobre a terrina que jazia em cima do fogão. – Vim apenas para...

E o que fará o senhor quando ficar doente? – interrompeu ela, enquanto despejava calmamente sopa em um prato. – Terá que permanecer na cama e não poderá vigiar mais os garotos, e talvez o reitor escreva para o conselho dizendo que terá de arranjar um novo censor...

Ela voltou par a mesa e colocou o prato de sopa na frente dele.

- Coma isso, Far-lhe-á bem.

Ruidosamente ele engoliu algumas colheradas.

- Digo-lhe que desta vez ele foi muito longe e eu serei obrigado a...

- Coma – disse ela com um tom de finalidade.

Durante um momento ele comeu em silêncio, apressadamente, sem ousar parar. Ela debruçou-se em sua direção.

- Não foi culpa dele – disse ela apontando para si mesma. – Eu disse-lhe que fosse tocar.

- A senhora?

Ele estava mais surpreso do que zangado.

- Por que fez isso?

- Ele precisava disso. Sabe – agora ela falava como se ele fosse um amigo – o medido virá pela manhã.

- Para a operação?

A agressividade havia decaído nele. Instintivamente ele abaixou a voz.

- A que horas?

- Às sete. Mas seus auxiliares chegarão primeiro... – sua voz estrangulou-se num soluço – para prepara-lo.

Durante um instante o censor não falou. Ele já havia presenciado os horrores de uma operação cirúrgica, e o simples relembrar fazia-o estremecer.

- Sinto muito, - disse ele, colocando a mão sobre as dela – creia-me.

Ele forçou os ouvidos e percebeu que a musica havia parado.

- Devo ir – disse, levantando-se – e fazer com que os rapazes voltem para a cama. – Ao chegar à porta virou-se. – A senhora tem sorte de que o reitor durma na ala traseira. Seja como for ele é um pouco surdo.

- Então o senhor não escreverá para o conselho? – perguntou ela docemente.

- Ele sacudiu a cabeça.

- Mas nunca mais o deixe fazer isso.

- Ele não o fará – disse ela, mas estas palavras não o alcançaram, pois que ele já corria pelo corredor abaixo na direção do dormitório dos rapazes.

Durante um momento ela permaneceu sentada à mesa, olhando o vácuo à sua frente. Ele havia cumprido sua promessa, não havia tocado muito tempo... tinha voltado logo.

Levantou-se e esperou no umbral da porta. Logo os viu aproximarem-se, andando lentamente, e correu para encontra-los

- Obrigado, Lena – disse ele suavemente.

O medo havia desaparecido do rosto dele. Havia orado e agora estava pronto.

ALÉM DO DESEJO – PRÓLOGO – PIERRE LA MURE

01 maio 2005