"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

23 fevereiro 2005

O ÚLTIMO DIA DE MIM - EÇA DE QUEIROZ

Encontro-me em um quarto de Paris, melancólico e sentindo reflorescer em mim a vida que vivo, e a que poderia tervivido. Sinto em meu ser a ternura lusa, de um pobre homem de Póvoa de Varzim, que muito ironizou a sua pátria por amá-la e melhor dela querer. Tudo em mim é lusitano. Vejo que consegui transmitir e me libertar desses sentimentos em meu romance, que há pouco terminei. Nele derramei liricamente os valores portugueses essenciais: o homem, as paisagens, a história, a quinta, a freguesia e a aldeia, mas sempre fui um crítico mordaz, caricaturando os ridículos de uma sociedade presa a valores rurais que ansiavam pelos urbanas criados pela revolução industrial.
Tive uma infância turbulenta. O meu nascimento se deu em circunstância irregular, pois os meus pais ainda não eram casados, obrigando-me a passar a infância e a adolescência afastado deles. Fui registrado como filho de mãe incógnita, uma ave sem ninho. Vivi com a minha ama de leite e, após a sua morte, com meus avós paternos. A falta de afeto, amparo e carinho, na qual meu ser mergulhou, aguçou a minha sensibilidade, caminhando no tempo da vida com a alma ferida, protegendo-me com arraigada timidez, como um caramujo se defendendo, fazendo com que, a partir da adolescência, eu criasse mundos e personagens, impedindo o retorno a minha infância, que tanto procurei esquecer e sobre a qual sempre silenciei. Lembro-me de uma de minhas confissões da infância, uma artigo sobre o "francesismo", onde digo: "apenas nasci, apenas dei os primeiros passos, ainda com sapatinhos de crochê, eu comecei a respirar a França. Em torno de mim só havia a França. A minha mais remota recordação é de escutar, nos joelhos dum velho escudeiro preto, grande leitor de literatura de cordel, as histórias que me contava de Carlos Magno e dos Doze Pares... Também o meu preto lia contos tristes das águas do mar. Eram as aventuras de um João de Calais". Depois desse artigo, quase que não fiz outra coisa pela a vida afora, a não ser escrever. "As abelhas só sabem fazer mel, e eu só sei fazer romances".
Parece tão recente o lançamento na Revista Ocidental do Romance O Crime do Padre Amaro e, logo depois, em livro sua primeira versão. A primeira edição não era O Padre Amaro que eu trouxera do ventre. Após as diversas revisões, passou a ser uma obra nova, a minha melhor obra. Na gestação cheguei a escrever a um amigo, antigo confidente, Ramalho Ortigão, dizendo-lhe como concebi o livro em uma tarde, na casa de uma senhora que tocava uma gavota, quando de repente flamejou-me, através da idéia, todo o livro, chegando à minha mente com um escândalo no país, um romance que punha a nu a fraqueza, a anarquia , a covardia em que mergulharia Portugal em conseqüência de maus governos. Queria com o livro dar um choque elétrico ao porco adormecido (refiro-me à Pátria). Além do mais é um romance que fala da vida da pequena vila devota, o grupo de padres e beatas da casa S. Joaneira, o mundo grotesco que se agita em torno da velha Sé. Uma história dum sortido amor sacrílego, entre um sacerdote e uma rapariga educada numa atmosfera de beatice e lassidão moral. Este romance inaugura o realismo em Portugal.
Acredito que renasço em meus romances. A vida é feita de perdas sucessivas, e cada dia morre alguma coisa de nós mesmos, ou, o que vem a ser o mesmo, algum dos que amamos. Houve uma época que escrevi em um álbum no qual já haviam colaborado Guerra Junqueira e o Oliveira Martins. A vida, eis o mote. Reflexo da alma: O amigo Oliveira Martins diz que a vida é um sonho; o amigo Guerra Junqueira diz que é um punhado de areia. Se é sonho, é o único que vale a pena sonhar; se é areia, é a única com que vale a pena edificar.
Antes da minha transferência para o consulado de Bristol, lancei o meu romance O Primo Basílico, a bomba literária e moral que explodiu na terra lusa ou o escândalo branco. Os críticos conservavam sobre mim um silêncio desdenhoso, mais aos poucos foram quebrando o gelo, catalogando como obscena e imoral uma obra realista ou naturalista. Tive nele a capacidade de plasmar fielmente em poucos traços uma realidade observada, lamentando-me por não poder conseguir a nota sublime da realidade eterna nem a nota justa da realidade transitória . Uma síntese instantânea do enredo: É uma mulher que tem uma amante, que é espreitada e seguida por uma criada – a qual se apodera das provas do adultério e estabelece uma tirania de todos os instantes sobre a ama: tirania longa, cruel, horrorosa, um verdadeiro drama íntimo. Sendo o assunto costume contemporâneos – não da província desta vez – mas de Lisboa. É um trabalho realista – talvez um pouco violento e cru, ma não foi para fazer dele uma leitura de serão nos colégios que o escrevi. O romance, esse é a apoteose do adultério, na estuda, nada explica, não pinta caracteres, não senha temperamentos, não analisa paixões. Não tem psicologia, nem ação.
Embora este fosse um livro que eu tivesse pressa em concluir, não perdi nele o habito das alterações, pois, confesso, é quase impossível para um escritor não fazer alterações nas provas, quando ao reler um trabalho impresso se vê uma palavra ou uma frase falsa – é absurdo não substituir, bem assim, é absurdo não introduzir ou alterar quando acode uma palavra ou uma frase de mais efeito. Isto acontece sempre, desde que se imprimem livros. É uma eterna insatisfação, busca da perfeição, uma ânsia de dar à língua uma forma nova, simples, na qual a nitidez do pensamento corresponde à beleza da frase. Até na capa vivi o escritor, uma capa bonita – é essencial num livro – como um vestido uma mulher. Foi um livro que me deu um trabalho dos demônios. Eu não sou gênio e trabalho devagar: talvez não acreditam, mas cada folha da revisão do "Primo" levou-me de dois a três dias, mas no dia vinte e um de fevereiro de mil oitocentos e setenta e oito O Primo Basílico foi posta a venda em Lisboa.
Estava ávido por conhecer a repercussão do livro. Ramalho escreverá com franqueza sobre o romance: "As cenas d’alcova são reproduzidas na sua nudez mais impudica e mais asquerosa. Este livro concebido com amargura e com misantropia deixa no espírito de quem lê uma triste impressão de melancolia e desalento" . Meu velho pai José Maria também externou as suas observações sobre o romance: "No ponto de vista da escola realista que te domina, o romance é uma obra d’arte perfeita. Entretanto eu creio que, mesmo nessa escola, há um ponto além do qual não é permitido, ou pelo menos não é conveniente passar. Pode mostrar-se a chaga, e o realismo está nisso; mostrar, porém, toda a podridão não dá mais caráter à escola realista, e leva ao exagero, que é um defeito de todo o gênero de composição. De resto deixa falar, ou não falar os invejosos, e vai por diante. Recomendo-te só que em tudo o que escreveres evites descrições que senhoras não possam ler sem corar".
Passei um bom tempo justificando e explicando o ataque à família lisboeta: Um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a que conhece a burguesia de Lisboa; - A senhora sentimental , mal educada, nem espiritual (porque o cristianismo já o não tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é) arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc, etc; - enfim uma burguesia da baixa... Uma sociedade sobre estas falsas bases, não esta na verdade: atacá-las é um dever. E neste ponto O Primo Basílico não está inteiramente fora da arte revolucionária, creio. Pois analisei a vida social enfocando a constituição moral da família na burguesia média da capital. Oferecendo uma crua visão da realidade, à qual o público não estava acostumado, e que foi objeto de ataque e viva controvérsia. Aparecem folhetos que avisavam as mães dos perigos para a moral existente na nova arte.
Minha evolução foi lenta, harmoniosa, intensa. A disciplina férrea da observação aquietava a minha fantasia e serenava a minha forma. Conquistando a minha maneira inconfundível, sugestiva e irônica, síntese consciente dos dois pendores contraditórios de minha alma: O impulso atávico do meu temperamento para a livre imaginação, o lirismo e a eloquência, dum lado; e do outro a minha tendência, adquirida pela educação positivista à qual me submeti, para uma percepção clara e imediata dos elementos objetivos da realidade e o desejo de exatidão na expressão deles, sem desdenhar, ou mesmo procurando-lhes os aspectos prosaicos, feios ou baixos. O resultado do meu esforço para resolver essa dicotomia interna é um estilo específico de romance em que entram numa peculiar fórmula de fusão, o solto vôo da fantasia romântica e a insubordinável probidade realista. Iniciei esta nova estética em O Mandarim, deliciosa novela fantástica, cujo prólogo, destinado a uma versão francesa, é uma irônica auto-análise literária. Um conto fantasia e fantástico , onde se vê, ainda como nos bons velhos tempos, aparecer o diabo, embora em redingote, e onde ainda há fantasmas, embora com boas intenções psicológicas. Espíritos assim formados devem afastar-se necessariamente de quanto seja realidade, análise, experimentação, certeza objetiva. O que os atraí é a fantasia, sob todas as suas formas, desde a canção até a caricatura, também em arte, nós produzimos principalmente líricos e satíricos. Eis porque, mesmo depois do naturalismo, ainda escrevemos contos fantásticos, autênticos, desses onde há fantasmas e onde se encontra, no canto das páginas, o diabo, o amigo diabo, esse delicioso terror da nossa infância católica.
Depois de uma longa gestação conclui Os Maias, neste romance, estendi o meu campo visual à alta sociedade., tardiamente romântica. Servindo de fundo um caso de incesto., pinta-se em quadros cheios e movimentados a vida das alta esferas da política, do governo, da aristocracia, das finanças e da literatura, observada com ironia cruelmente escrupulosa. Também, não podia evitar, neste romance, minhas purificações nas águas lustrais da geografia poética e exótica, Não encontrei para o herói do livro e mesmo para mim, melhor purificações do que a viagem a mundos distantes do planeta, através de geografias das antigas civilizações.
Lembro-me de minhas confidências sobre o romance, ao querido Joaquim Pedro, dizia-lhe: "saíram uma cousa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas, há episódios bastantes toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos demais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio; a cena no jornal "A Tarde"; e, sobretudo, o sarau literário". Mesmo sendo idealizado há mais de dez anos , o livro atingiu alentadas proporções.
Os Maias movimentaram e dividiram a crítica, não podendo eu me queixar do silêncio. Dentre as apreciações sobre o romance, a que mais me agradou foi a de Silva Gaio, era como se dissera serem Os Maias uma caricatura da sociedade portuguesa. Ele fizera está observação:" são realmente, em mais de um ponto de vista. Mas, dá-se com está sociedade o que se dá com alguns indivíduos: são já de si tão caricatos, que o lápis irreverente nada mais fez do que dar-lhes a atitude que lhes convém, a expressão última definitiva do que eles são".
Até o momento Os Maias é o meu último livro impresso. Sendo ele um desfile da multidão de personagens, imortais. Desde Maria Eduarda e Carlos da Mais, protagonistas principais, ao lado de cujas dolorosas existências passam o grotesco Conde Gouvarinho, Damasco salcede, o poeta Alencar, o sarcástico João de Ega até o bom e inditoso Afonso da Maia, o senhor do Ramalhete. Creio hoje que fui recompensado pelos dez anos consumidos. Os Maias conseguiram se edificar sobre as rochas.
Apesar de minha má saúde, escrever estas palavras me faz peregrinar em minha vida agravando a minha melancolia. Pois sou um doente que não conhece cama e Paris é ainda o sítio em que bate mais largamente o coração da humanidade. Como uma borboleta à morte adeja sobre minha cabeça. Meu corpo se encontra esguio e curvo, tomando aparências esqueléticas, meus nervos se encontram eletrizados e vibráteis, mesmo assim me movo, agito-me alegremente, na maior parte do tempo tenho uma atitude de exaustão. Às vezes me brotam observações argutas, ditos mordazes, anedotas hilariantes. Depois a prostração, o letargo de dias e dias, em que não me agrada ver pessoa alguma, esta solidão que me povoa de pensamentos dolorosos. Meu trabalho agora se assemelha a uma tortura mental e não a uma criação como antes, quando era feito em pleno gozo, na tentativa de tornar meus romances uma obra de arte.
A propósito, A Casa de Ramires está péssimo, um horror, espero que ninguém leia. Sei que sou um eterno insatisfeito, Ramires, Fradique e o Jacinto d’A Cidade e as Serras não terminarão as suas jornadas.
Oh! Minha Lisboa, você sempre foi o meu laboratório de arte, o meu material de estudo, a minha crítica preocupação, o meu mundo de escritor. Sou a chaga dessa sociedade decadente, que tentei salvar expondo-a a luz ou fustigando-a com o estilete da ironia. Na realidade, eu te amo, minha querida Lisboa. Orgulho-me do pobre homem de Póvoa de Varzim. Como esquecer os velhos tempos? – o cenáculo, o Chiado, a Casa Havanesa, o Hotel Bragança, os Vencidos da Vida. Às vezes a vejo mesquinha. Talvez seja o tédio. E voltar a ti é o meu sonho, Lisboa.
Sinto-me exausto. E creio que estou imerso na única dança que dançamos. Hoje são quinze de agosto de mil e novecentos, entretanto, não tenho esperança, o romance o qual todos somos obrigados a viver, para mim está no último capítulo. Minha alma transborda as últimas palavras que ainda pedem movimento. Mas o meu instinto insiste em que tudo ao meu redor vai acabar, desaparecendo gentes, bichos, arvores, jardins, casas, órfãs, pianistas, histórias, cadernos – o que pode restar da história de um romancista ou de um louco? Não mais a vontade de glória (mas que glória?) ou de poder (mas que poder?). Apenas o instinto de permanecer através da idéia, da palavra – desafio à morte. Obsessão de infinito da nossa finitude, exigência maior do criador. A morte não é difícil. Difícil é a vida e o seu ofício.

22 fevereiro 2005

A MAIS BELA FORMA DE SE FAZER CIÊNCIA


CHARLES DARWIN O GÊNIO ATORMENTADO

Um verdadeiro escândalo estourou quando Charles Darwin publicou, em 1859, Da origem das espécies pela via da seleção natural. A primeira edição - de 1.250 exemplares, volume grande para a média da época - se esgotou em alguns dias. Nascia assim o "transformismo", uma doutrina que se opunha frontalmente às idéias consagradas sobre o tema e que, por oposição, seriam a partir daí chamadas de "fixismo". O autor escrevia: "Os bons criadores de animais domésticos procuram, por meio de uma seleção metódica dos pais, criar novas linhagens, superiores às existentes no país. Mas há outra seleção, bem mais importante, que poderíamos chamar de inconsciente, cuja mola propulsora é o desejo que todos sentimos de reproduzir os melhores indivíduos de cada espécie. Assim, quem quer cães de caça começa escolhendo os melhores exemplares entre os encontrados, para depois providenciar sua descendência. Não é certo que a intenção seja, sempre, a de modificar a raça. Mas, se essa prática se repetir, acabará por produzir a modificação da raça."Assim é a seleção artificial. Sobre a base desse mecanismo indiscutível, Darwin enxertou a "seleção natural", cuja exposição iria desencadear verdadeiras tempestades. O motor da evolução é a persistência do mais apto na luta pela vida. O lobo mais forte tem mais possibilidade de ter filhotes do que os lobos mais fracos, mantidos à parte do grupo. A borboleta que passa mais desapercebida, sobre a planta onde pousa, tem mais chance de sobreviver do que outras, e sua descendência conseguirá se confundir com a vegetação.
Esse homem, por ocasião do lançamento de sua teoria, tinha 50 anos de idade, e teve idéias bastante revolucionárias para sua época por reflexões feitas na juventude, no curso de uma longa viagem científica de volta ao mundo. Mas ele tinha consciência de que suas convicções eram explosivas, a ponto de ter preferido amadurecê-las durante muito tempo. Pôde, ao longo desse período, reforçá-las com os melhores argumentos, antes de publicá-las.
Se Charles, o segundo filho de um rico médico de Shrewsbury, no noroeste da Inglaterra, era especialmente dotado do ponto vista intelectual, era também bastante despreocupado. Seu pai, muito rígido, lamentava que ele se dedicasse sobretudo "à caça, aos cães e à captura de ratos". O rapaz preferiu não seguir a carreira médica, conforme a tradição familiar. Demonstrou até mesmo vivo horror pela atividades desde a primeira intervenção cirúrgica a que assistiu, feita em uma criança, evidentemente sem anestesia. Seu pai quis, então, fazer dele um sacerdote. Foi sob essa perspectiva que Charles começou seus estudos em Cambridge.
Dotado de grande inteligência e facilidade para aprender, ele só se dedicava aos estudos de modo diletante. Continuava a recolher pedras e insetos. A caça, sua paixão, também o mantinha em contato com a Natureza da mesma forma que suas leituras favoritas, as dos grandes viajantes, em especial Humboldt. As incursões para estudos de arborização, com seu professor de botânica, permitiram que ele fizesse observações precisas.
Em três anos, se formou. No outono de 1831, voltou à casa paterna, sem saber muito bem o que faria da vida, que parecia fácil. E então desabou a tempestade, antes que o verão sequer tivesse chegado ao fim. O responsável foi seu professor de botânica, embora valha uma reflexão a respeito do destino e de como se entremeiam seus fios. Tudo decorreria, é certo, de sua grande curiosidade e de sua viva inteligência.
O mestre, que gostava muito de seu jovem amigo, foi contatado pelo almirantado, que preparava uma expedição hidrográfica de volta ao mundo, dedicada especialmente a fazer o levantamento das profundezas do oceano e estudar as correntes marítimas em torno da América do Sul. O jovem naturalista foi consultado sobre seu interesse em participar da viagem. Sem nenhum salário, evidentemente. A proposta caiu como uma luva para Darwin. Ao lhe oferecer essa função, seu protetor escreveu-lhe : "É uma ocasião excepcional para um homem dedicado e de caráter". O jovem, porém, enfrentou uma dificuldade inicial. Teve de recorrer ao tio para reverter a negativa que ouviu do pai ao consultá-lo sobre a partida. Essa resistência não só foi vencida como dele recebeu dinheiro suficiente para gastos que teria por vários anos.
No final do ano de 1831, ele estava a bordo quando o Beagle deixou a Inglaterra para uma longa exploração marítima que se tornaria famosa. Darwin, então com 22 anos, compartilhava a cabine com o igualmente jovem, de 27 anos, capitão Fitzroy, chefe da expedição, cujo nome foi dado, no final do século XX, a um dos mais belos picos nevados dos Andes. Era o começo de um longo convívio e uma estreita relação de amizade. Não obstante, mais tarde, o mesmo Fitzroy se alinhou entre os mais ferozes inimigos de Darwin, por sua oposição aos ensinamentos bíblicos.
No último verão de sua epóca de estudante, Darwin tinha acompanhado um professor de geologia de Cambridge numa viagem de estudos ao País de Gales. Somado a isso, nos primeiros dias da travessia, leu os Princípios de Geologia de Charles Lyell, cujo primeiro tomo acabara de ser publicado. Era uma obra de muita repercussão, construída com base na idéia de que a Terra sofria os efeitos do que o autor chamou de "causas atuais".
Ele estava bem preparado, portanto, para o que viria a descobrir em sua primeira escala tropical, quando abordaram as ilhas de Cabo Verde. Rochas brancas a uns 15 metros acima do nível da praia continham as mesmas conchas e mexilhões que se podia encontrar à beira-mar. Altos rochedos negros davam prova de atividade vulcânica recente. Assim se revelou ao jovem viajante a importância decisiva do tempo: essas ilhas que haviam se formado há pouco tempo, mais recentemente ainda haviam emergido.
Não tardou para que se iniciasse a lenta navegação ao longo da costa da América do Sul, com incursões por seus recortes hidrográficos, durante as quais o naturalista iria explorar terras, ao longo de vários anos. Dessa maneira, Darwin encontrou nos pampas argentinos seus primeiros fósseis. No leito seco de um rio despontavam as ossadas. Ele as exumou. Explorou e escavou os arredores. Descobriu restos de monstruosos quadrúpedes. Um deles tinha o tamanho de um elefante, mas a dentadura de um roedor. Um espírito dotado de razão não poderia deixar de concluir que, apesar da crença generalizada sobre o recente nascimento da Terra já com o formato atual, o planeta, bem como a vida nele, havia evoluído durante muito tempo, antes de assumir as características do presente.
Bem mais ao sul, na Patagônia, perto de Puerto San Julian, Darwin encontrou fósseis de animais gigantes já desaparecidos. Agora, afirmava, "um paquiderme notável, tão grande quanto um camelo". E as dimensões desses espécimes surpreendiam o naturalista. "Este continente deve ter abrigado, em outros tempos, monstros imensos; atualmente, só vemos pigmeus, se compararmos os animais que aqui vivem às raças extintas. Qual pode ter sido a causa do desaparecimento de tantos tipos e de espécies inteiras? Contra a vontade, pensamos numa grande catástrofe. Mas um cataclismo que tivesse sido capaz de destruir dessa forma todos os animais da Patagônia, do Brasil e da cordilheira do Peru teria sacudido o globo terrestre até suas bases mais profundas. Na verdade, o estudo da geologia dessas regiões nos permite concluir que todas as formas de vida sobre a Terra são derivadas de modificações lentas e graduais."
Nas ilhas Falkland, que os franceses batizaram de Malvinas (em francês, Malouines), Darwin se surpreendeu com as impressionantes variedades de formas que apresentavam os "lobos das Falkland", carnívoros já extintos, comparando-se os das ilhas ocidentais àqueles das orientais do arquipélago. Ele desconfiou que a separação de populações em princípio idênticas as fizera evoluir de modos diferentes e independentes, reflexão de capital importância para um espírito que formularia mais tarde doutrinas evolucionistas.
Na Terra do Fogo, no extremo sul do continente, o viajante teria oportunidade de focar suas reflexões na direção de outros seres vivos: os próprios seres humanos. "Alguns indígenas nos seguiram durante várias milhas, correndo ao longo da orla marítima. Eu jamais esquecerei um desses grupos de selvagens: quatro ou cinco apareceram de repente no alto de um rochedo que dominava o mar. Completamente nus, a longa cabeleira solta, eles brandiam no ar grandes bastões; saltavam, agitando os braços e fazendo grotescas contorções, enquanto soltavam os gritos mais horrendos." Uma outra tribo, ele registrou em seus escritos, ostentava como única vestimenta pedaços de pele "apenas suficientes para cobrir as costas até a altura dos rins, que eles envolvem com fios passados de um lado a outro do corpo, e que se agitam conforme a direção do vento". O naturalista refletiu sobre a evolução e também a miserável condição humana, num país onde o inverno é gelado.
Numa ilha que o Beagle logo alcançou, subindo agora pela costa do Chile, foram as mudanças da Natureza que surpreenderam Darwin, em especial as de ordem geológica. Ele assistiu a uma violenta erupção do vulcão Osorno, que domina Valdívia. Alguns dias mais tarde, testemunhou um forte terremoto, o de 20 de fevereiro de 1835, que destruiu a cidade de Concepción. Ele estava deitado sob as árvores, numa praia próxima de Valdívia, quando o chão tremeu por dois minutos. Suas impressões: "O movimento quase me fez ficar enjoado".
O navio retomou sua rota e chegou a Concepción duas semanas mais tarde. Do ponto de vista geológico, a destruição completa da cidade foi menos relevante do que o efeito considerado por Darwin realmente "mais notável": ao redor de toda a baía, as terras sofreram uma elevação, ele calculou, de 2 ou 3 pés. E mais: "Um recife de mexilhões em putrefação, ainda colados aos rochedos, demonstrava uma elevação de uns 10 pés".No seu relato de uma excursão que durou um mês, através das montanhas dos Andes, constam observações a respeito dos terraços de cascalhos e aluviões que enchiam alguns vales, mas em outros haviam sido recortados por erosões recentes. Darwin, a partir do seu estudo, concluiu : "A cadeia de montanhas, em lugar de ter surgido de repente, como ainda acreditam vários geólogos, se ergueu lenta e gradualmente". Assim, sempre e em todos os lugares, a Terra nos mostrava que vive e que não pára de evoluir, há milhares de anos. O que, para a época, era uma heresia.
Assim, durante mais de três anos, o mundo deu ao jovem viajante atento mil provas de suas transformações do presente e de suas metamorfoses ancestrais. Havia mais, porém. O acaso colocou no final dessa incursão sul-americana o arquipélago de Galápagos. Atualmente, conhecemos bastante bem as características excepcionais de sua flora e fauna, que fizeram dessas ilhas uma reserva biológica mundial, com justa razão denominada "laboratório de evolução". A mil quilômetros do Equador, de origem vulcânica relativamente recente, essas ilhas constituem um mundo à parte.
São muito conhecidas fotos ou filmes sobre seus inhames marinhos, seus enormes lagartos terrestres, suas tartarugas, as maiores do mundo, seus pássaros que têm os hábitos de nossos pica-paus, mas que - por não terem os bicos tão pontiagudos - utilizam um espinho de cacto para arrancar vermes vivos do tronco das árvores. Por toda parte, nessas ilhas, a vida assumiu formas bastante particulares - o que prova que ela pode evoluir. Há, ainda, as diferenciações que podem ser estabelecidas entre as populações das várias ilhas. Elas são separadas por canais, freqüentemente largos e sempre com violentas correntezas, que impedem que sejam atravessados. Além disso, os morcegos se encarregaram de eliminar qualquer nadador imprudente. Nem mesmo os pássaros passavam de uma ilha a outra.
Os exploradores separaram, em redomas de vidro, 14 espécies de pintassilgos, diversos tipos de tartarugas, variedades típicas dessa ou daquela ilha. A diferenciação era tão precisa que, diante de Darwin, o governador equatoriano do arquipélago teve ocasião de reconhecer a origem da tartaruga trazida para o seu jantar. Assim, o naturalista teve a confirmação de que, de fato, de uma única origem nasceram espécies variadas, por influência de diversos fatores (meio ambiente, alimentação, transmissão hereditária de características adquiridas acidentalmente).
Depois das ilhas Galápagos, terminava a missão do Beagle. Mas a viagem de volta ainda teria escalas no Taiti, na Nova Zelândia, na Austrália e nas ilhas Maurício, onde o naturalista pôde também constatar milhares de vidas diferentes. O retorno a Portsmouth aconteceu em outubro de 1836. Darwin, física e espiritualmente amadurecido, voltou rapidamente a The Mounth, a propriedade familiar onde caixas de documentos enviados de todas as escalas o aguardavam. Ele estava intimamente convencido da evolução dos seres vivos. Mas tinha consciência do caráter explosivo de suas idéias; tampouco queria publicá-las sem que tivessem amadurecido bem e, sobretudo, sem tê-las reforçado com base em novos estudos, em outros exemplos. Antes ele publicou, com grande sucesso, o relato de sua viagem.
Foram suas idéias a respeito da evolução geológica que suscitam mais interesse, e ele pôde expressá-las plenamente, enquanto deixava de lado as reflexões sobre biologia. Pouco tempo depois, ele leu a Teoria da População, de Malthus, que acabara de ser publicada e que reforçaria suas próprias concepções. "Eu havia finalmente chegado ao momento de elaborar uma teoria...", escreveu, tempos depois. Só em 1859 ele viria a publicar a Origem das espécies, embora o título completo fosse A origem das espécies por meio da seleção natural ou a Preservação das raças favorecidas na luta pela vida.
A obra teve uma procura impressionante e se transformou no escândalo da época. Ele nem tinha, ainda, ousado aplicar suas teorias à raça humana. Escreveu simplesmente: "Um raio de luz complementar haverá um dia de iluminar a questão da origem do homem". Frase prudente, até mesmo sibilina, impotente porém para evitar a cólera e até mesmo o ódio de muitos. Em 1871, saiu a primeira edição de A descendência do homem, livro carregado de um caráter tão explosivo que até mesmo muitos adeptos da teoria da obra anterior se afastaram dele.
A idéia de que seres humanos e macacos pudessem ter ancestrais comuns foi um choque muito forte. No dilúvio de severas críticas que caíram sobre a cabeça do autor, há a indagação mordaz feita pelo bispo de Oxford: "É possível acreditar que variedades especiais de nabos tenham tendência a se tornar homens?".
Outro eclesiástico declarou ter procurado, em vão, na língua inglesa, termos baixos o suficiente para qualificar Darwin e seus partidários. Nos Estados Unidos, onde ninguém ousava brincar com a Bíblia, um professor que defendeu as teses de Darwin, questionando dessa forma o Gênesis, foi entregue à Justiça. Mas Darwin tinha como couraça uma filosofia própria. Enquanto o mundo inteiro era virado do avesso por suas idéias, ele falecia aos 73 anos de idade, em 19 de abril de 1882, em sua propriedade de Kent, de onde ele jamais saiu depois de sua viagem imortal.
Por Pierre de Latil

18 fevereiro 2005

O EMUDECIMENTO DAS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


Generalizando, pode-se dizer que as ciências humanas e sociais não estão respondendo, através de suas pesquisas, aos problemas que a sociedade vem vivenciando. Na tentativa de fazer alguma elucidação, os pesquisadores recorrem à repetição de teorias, que outrora tiveram a sua importância, porém hoje, elas tornam o discurso vazio de sentido e vago, em grande parte das publicações.
A necessidade dos pesquisadores de estarem dentro de uma instituição acadêmica, é um dos fatores que colaboram para o emudecimento dessas ciências. Pois hoje, estas instituições são importantes pólos no financiamento de pesquisas em diversas áreas e oferecerem uma cômoda legitimação institucional ao profissional que realiza o seu estudo nelas. Estes dois fatos colocam um número considerável de profissionais condicionados a estas verbas e a segurança na divulgação da pesquisa. E isto torna-se, um dos obstáculos para um olhar diferenciado sobre a sociedade. Visto que, estas instituições são restritivas quanto ao valor do financiamento, porque são obrigadas a desdobrá-lo em outras áreas.
Outro fator, é o aspecto metodológico e as malditas linhas de pesquisas, impostos aos pesquisadores para terem a pesquisa reconhecida pela comunidade cientifica. As universidades no caso do método cientifico, segue-o como um dogma, utilizando-o como uma receita, um paradigma intransponível. Já as linhas de pesquisas são definidas de acordo com interesses interno da instituição e não com os problemas enfrentados pela sociedade. O método clássico, instituído pelo positivismo para verificação e confirmação das hipóteses levantadas, é hoje, no caso das ciências humanas e sociais, muito limitativo, visto que o universo humano é muito complexo e transitório e as intervenções tem que ser muito mais dinâmicas.
O último fato, é a atuação dos orientadores na pesquisa, uma vez que, quando ocorre do pesquisador ter alguma idéia diferente para realizar a sua pesquisa, ele é literalmente impedido, pelo orientador de ir em frente. Sendo a atuação desses ditadores da "ciência" muitas vezes conservadoras, e para um pesquisador, a liberdade é extremamente necessária. Quanto as orientações importantes para o embate reflexivo, podem muito bem ser adquiridas através de uma extensa bibliografia existente, sobre diversos temas e de fácil acesso, e pela própria experiência de êxito e fracasso no momento de se verificar as hipóteses. No entanto, deve-se salientar que para isto, o pesquisador tenha a humildade de reconhecer as suas falhas e ouvir outras visões, sem com isso, tornar-se um boneco de fantoche das idéias de alguém ou da própria pesquisa.
Diversos exemplos, de excelentes pesquisas, podemos encontrar na história, que deram um novo rumo às ciências humanas e sociais. Quando recorremos às obras de Marx, Freud, Weber e alguns outros, ícones das pesquisas realizadas na área humana e social dos dois últimos séculos, esquecemos que as suas pesquisas foram pensadas e elaboradas fora das academias. Marx, dedicou a sua vida à obra, elaborada dentro da biblioteca e cortiços de Londres, financiada pela sua pobreza, pela morte de seus amados filhos, pela compreensão de sua mulher e pela tamanha generosidade de Engels, que muitas vezes assumiu a direção dos negócios do pai, tornando-se um burguês em atividade, para poder mandar dinheiro ao Marx, que trabalhava em extrema miséria em Londres. Freud, quando começou a publicar as suas pesquisas, no final do século XIX, já havia começado a ditadura do desenvolvimento cientifico, apenas dentro das universidades, foi durante muito tempo ridicularizado, apesar de seu rigor metodológico. Não foi poupado por sua independência. Weber, teve que sumir durante dez anos, para florescer as suas brilhantes idéias e tornar-se um dos mais notáveis sociólogos do século XX.
Contudo, não devemos perder de vista o caráter generalista destas afirmações, pois existem algumas ilhas que norteiam o pouco progresso alcançado nas últimas décadas nestas ciências. Mas que foram insuficientes, diante de tantas transformações as quais vem passando o mundo em que vivemos.
Portanto, para tirar as ciências humanas e sociais de seu emudecimento, ou melhor dizendo, de sua gagueira, os pesquisadores devem parar de ficar apenas atrás dos laboratórios, fabricando estatísticas e teorias vazias e começarem a ver que o melhor campo de pesquisas são as pessoas inseridas no mundo. Coragem para não ter medo de fazer indagações sobre o homem e a sociedade, estudar muito e receber como prêmio as vaias, a indiferença e tantas outras coisas típicas de quem aceitou a viver de sua única tese, de quem nunca gostou de conhecer nada, que quiz apenas o título de doutor. Como diz uma das pessoas mais esclarecidas que conheço, ficaram a vida inteira falando da tese que escreveram.

P.S.: Agradeço a R. por me ensinar o que é ciência, não à que se encontra nos manuais de procedimentos científicos, mas a que esta fora das algemas, de olhar crítico e criterioso sobre a sociedade e a própria pesquisa. E ao É. por me ensinar que nem todos estão preocupados em aprender. E o que é dito, não é para ser entendido por todos. Para exemplificar isto, ele usa como metáfora a pergunta feita a J.C. por um apóstolo, quando perguntava-lhe, por que se expressava sobre a forma de parábola e ele o respondeu que era para que todos ouvissem, mas para que nem todos compreendessem.