"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

17 outubro 2006

Sete Lagoas - MG - indo embora

São ruas tristes as ruas do sertão...

02 outubro 2006

CLARICE – UMA APRENDIZAGEM OU O LIVROS DOS PRAZERES

Há alguns anos, aprendi que o texto literário é composto de camadas. Num primeiro plano ele se apresenta de uma forma. A medida que o depuramos, cada uma de suas camadas vão se definindo e assim, descobrimos um mundo de significados e a sua essência.
No caso do livro "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", de Clarice Lispector, é um bom exemplo, em que se é possível confirmar o perfil estratificado do texto literário.
Em sua primeira camada, o livro é chato, artificial, meio que auto ajuda (o próprio título do livro – uma aprendizagem), seu conteúdo filosófico não poderia ser pior, sem falar na forma como o personagem Ulisses, tenta moldar o comportamento de Lory, para que ela aprenda a amar, ficando desta forma, uma mulher criada para ele. Na leitura imediata do livro, fiquei sem entender como uma escritora no nível de Clarice pôde escrever algo tão esquisito.
Porém, no aprofundamento de suas camadas, percebemos que o livro é uma obra prima, uma jóia cuidadosamente lapidada. Ela fez, por meio da literatura, um excelente tratado sobre a linguagem. Foi uma das discípulas que escreveu as aulas do famoso lingüista Saussure, de maneira magistral.
Pois, existe coisa mais artificial e chata, que a língua expressa obedecendo todos os padrões lingüísticos da forma culta. Sem nenhum deslize, com todos os pontos, conjugações e concordâncias perfeitas. Um exemplo é o Marco Aurélio de Melo (Ministro do Supremo Tribunal Federal) falando. No início, fica-se encantado com o seu discurso, no entanto depois de algum tempo, vai nos entediando com a sua perfeição no uso do vernáculo. A Clarice concretizou isso, na construção do personagem Ulisses, o homem perfeito. Em grau tão elevado, que o tornou artificial, não humano. Desta forma, Ulisses é a língua, um amontoado de códigos gráficos e fônicos que nada têm haver com o referente, ou seja com aquilo que consideramos realidade. A língua, é abstração pura, no universo humano, é Deus, pois Ele não passa disto. É claro que Ulisses não é a língua do povo, bagunçada, criativa, cheia de distorções gramaticais, gírias, modismos, mas sim, a da academia, manipulada pelos deuses do olímpo.
Não é a toa que o seu personagem, seja um professor universitário de filosofia, homem maduro, culto, de alma marcada pelas cicatrizes da vida de que conseguiu superá-las, que escolhe uma mulher professora primária, imatura, sexualmente quase selvagem, infantil, para prepará-la para o amor. Lory é oposto de Ulisses. E para conhecer este outro extremo, ele sugere que ela escreva-lhe, tudo o que gostaria de dizer-lhe e que a falta coragem, porém, quando ela tenta relatar os seus sentimentos, tem medo do que poderá revelar. Escolhe as palavras, mas as palavras são insuficientes para que possa relatar os seus sentimentos, tenta desistir do que escreve e dele, mas não consegue. Parece não querer transformar no que ele deseja, no entanto segue em frente no relacionamento, acreditando que os seus encantos, a sua sensualidade sejam mais forte e possa seduzi-lo, sem ser preciso passar pela transformação a que ele exige: de que ela esteja pronta para ele, para amar. Portanto, este conflito entre eles, não aparece de forma gratuita, visto que no discurso entre pessoas, que não falam a mesma língua, não têm o mesmo padrão lingüistico, uma terá que ceder, e ajustar-se à língua do outro. Desta forma, uma relação de poder se estabelece e no caso desses dois personagens, Ulisses propõe a descer até a primariedade de Lory, mas para que ela consiga elevar-se, desenvolver-se, para que seja possível haver uma comunicações entre eles, ajustada a sua linguagem aprimorada, para paradoxalmente, a uma definição de amor dada por um brilhante professor de literatura, "amar é descer até objeto abjeto para amá-lo e compreendê-lo, porém Ulisses desce até o objeto não para compreendê-lo e amá-lo, mas para ajustá-lo aos seus padrões. A aprendizagem dos preceitos culturais é isso, um ajustamento dos instintos.
Logo, as camadas deste romance são diversas, apenas tentei abordar uma delas. A literatura é livre para a hermenêutica. Sem dizer que a própria autora, no título, deixa livre a interpretação ao dar dois títulos para o livro: "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres".

19 julho 2006

A BATALHA

Quando levantares tuas armas
contra meu corpo,
não lutarei.
Na nevasca angustiante de Kurosawa,
tu perdeste,
mas comigo tu vencerás.
Contigo não usarei jogar xadrez
em troca de alguns anos.
Ao contrário de Bergman,
entre a vida e a morte
escolherei a morte,
pois viver é morrer um pouco a cada dia.
Tu sempre venceste os que jogam para viver...
Quando enviares o corvo de Allan Poe,
não perderei tempo com indagações ao emissário.
Abrirei a porta e aceitarei a sentença.
De que servirá fazer anamnese
entre meus últimos suspiros,
se de tudo que vier a descobrir
nada levarei?
Se o relógio do meu tempo
perderá os ponteiros?
Se a vida que pulsa no meu corpo
lentamente sucumbirá?

20 abril 2006

ELEFANTE DO SÉCULO XXI

Atualmente, estou ainda mais desconectada dos rituais culturais e das formas como a sociedade atual é organizada. Vejo o mundo hoje, apesar de todo o avanço tecnológico, mais para a Idade Média ou com tendência ao barroco degradado e empobrecido.
Vejam só a desconexão. Acredito no modelo familiar clássico, no tripé composto por pai, mãe e filhos (caso o casal desejar tê-los), tendo como assento que dá sustentação a relação: o amor, sendo este uma forma de oferecer suporte cultural e estrutura psíquica para que o sujeito consiga sobreviver na civilização. Lembro que esse modelo não é o burguês, em que o vínculo é criado por meio de contrato e talvez seja aí que as coisas começam a complicar, a relação íntima passou a ser essencialmente um negócio e nem o amor é a banalidade exposta em camisetas e rotado por todos os lados.
Desta forma, aquilo que São Paulo diz em relação ao trabalho prestado pelo escravo ao senhor, que trabalhasse pelo amor e não pela servidão, hoje não tem mais sentido. O casamento, o trabalho, os comportamentos das pessoas são tudo um comércio, em que o sujeito se tornou um escravo sem autenticidade, virou um robô alimentado pela mídia, pelos livros de receitas de Como isso e Como aquilo....
Eu mim sinto um verdadeiro elefante drummondiano na selva do século XXI.

25 fevereiro 2006

PARAÍSOS ARTIFICIAIS

Publico a entrevista abaixo, por ser um assunto que venho estudando e a forma como o entrevistado argumenta as suas idéias é muito interessante, além de que nos ajuda a compreender melhor um dos fenômenos que tanto presenciamos em nosso conturbado cotidiano: a patologização pela medicina do comportamento humano. Espero que gostem!

Entrevista com Moacyr Scliar

Falta de serotonina, excesso de dopamina, falhas nas fendas sinápticas - a bioquímica cerebral está na ordem do dia desde que os médicos passaram a anunciar a descoberta de causas orgânicas para males da alma. A saber: depressões, angústia e pessimismo. O entusiasmo é tanto que nesse pacote de doenças entra o que até ontem era considerado traço de personalidade, como mau humor e melancolia. Chega-se a ter a impressão de que o objetivo de tais pesquisas é formular um remédio que propicie um estado de felicidade imune aos psiquismos, imperturbável diante das vicissitudes da vida. Essa pílula mágica seria mesmo formidável, e não só para o faturamento dos laboratórios farmacêuticos. Mas é preciso ir devagar com o andor, acredita o escritor gaúcho Moacyr Scliar, 60 anos e 44 livros publicados, ele próprio médico. Scliar, que tem na medicina um dos temas de sua literatura, diz nesta entrevista a VEJA que a ambição de controlar quimicamente todos os aspectos do comportamento humano, além de ser um desdobramento previsível da onipotência médica, camufla tentações totalitárias.

- Se traços de caráter passaram a ser distúrbios de personalidade, que fazer para não acabar num asilo de loucos?
- Ter em mente que a atual situação também é resultado da cumplicidade entre o criminoso e a vítima. Hoje, as pessoas buscam na medicina as soluções para todos os seus problemas. É o que Ivan Illich chamou de medicalização da vida. (*) Ele levanta a hipótese de que os médicos, ao tentar controlar uma série de aspectos da vida, serviam como instrumento de engenharia social. Aliás, no século XIX essa idéia ainda em esboço estava bem representada no asilo de alienados, satirizada por Machado de Assis em O Alienista.
- A melancolia e outros estados de espírito tidos como negativos podem ser produtivos?
- É claro que sim. Muitas pessoas encontram na tristeza, no inconformismo, no mau humor material para criar na literatura, na música, na pintura. Isso não só diminui como humaniza o seu sofrimento e os seus sentimentos. Quando lemos um livro de um melancólico como o escritor checo Franz Kafka, que teve uma vida de intenso sofrimento psicológico, nós partilhamos de sua angústia - o que nos torna melhores. Toda arte encontra sua expressão na metáfora da garrafa do náufrago que atira sua mensagem ao mar sem saber a quem ela chegará. Essa mensagem tem chegado a bem poucos, é verdade, mas em inúmeros casos talvez ela pudesse ser um substituto para os artifícios químicos. As pessoas que lêem, que se nutrem de arte, sabem que nenhum homem é uma ilha e que todos padecem, em maior ou menor grau, das limitações da condição humana.
- Como o senhor vê a tentativa da medicina de encontrar respostas químicas para quase todos os comportamentos?
- Há nessa atitude um componente da onipotência que por vezes contamina a pesquisa e a prática médicas. De uma perspectiva histórica, o fenômeno é explicável pelo fato de a medicina científica ser algo recente, que ainda inspira um entusiasmo desmedido como qualquer brinquedo novo.
- Mas a medicina não foi sempre uma ciência?
- Não. Durante séculos, em diferentes culturas, a arte de curar foi uma prática mágico-religiosa. Quem tratava das doenças eram pajés e sacerdotes, e o instrumento básico para a cura era a fé do doente no xamã que o atendia. Com Hipócrates, na Antiga Grécia, teve início a visão empírica, em que algumas doenças passaram a ter origens naturais. Mas só no final do século passado a medicina entrou realmente na sua fase científica, que pode ser resumida da seguinte forma: há uma causa para a doença e existe uma maneira de enfrentá-la no campo de combate que é o corpo do paciente. Quem inaugurou essa etapa, que pode ser considerada a primeira revolução na medicina, foi o francês Louis Pasteur, o descobridor dos microorganismos. Em sua época, Pasteur chegou a ser mais popular do que Napoleão Bonaparte, o que dá a medida do seu feito. Neste fim de século, estamos vivendo uma segunda revolução, representada por procedimentos como a engenharia genética, o estudo da bioquímica cerebral e novos métodos de diagnóstico e tratamento. É o apogeu da visão científica da medicina, que agora tenta ampliar seu raio de ação para questões comportamentais, por meio da psiquiatria. Vingou a idéia da pílula mágica - de que para cada sofrimento físico ou mental existe um remedinho milagroso.
- Por que a idéia da pílula mágica faz sucesso?
- Porque parece ser o caminho mais fácil para preencher esse vazio interior que tomou conta das pessoas neste final de século - vazio este que causa uma ansiedade exasperante. A busca da pílula mágica corresponde ao afrouxamento das relações interpessoais, que ficaram muito tênues, difícies. Em geral, tem-se poucos amigos, a família é uma chateação e os colegas de trabalho só querem saber de puxar o seu tapete. É preciso ver, ainda, que certas doenças e tipos de condicionamento ficaram estigmatizados. Depressão, por exemplo. As pessoas simplesmente não toleram a depressão em si mesmas e nos outros. Como em nossa sociedade os indivíduos são constantemente instados a mover-se, a fazer coisas, a tomar decisões, a agir, quem fica sozinho num canto é visto com suspeição. É curioso notar que a forma de considerarmos a doença bipolar, em que existe um pólo maníaco e outro depressivo, obedece a uma determinação social.
- Como assim?
- O pólo maníaco é muito mais aceito pelas sociedades competitivas do que o pólo depressivo. O sujeito que diz que pretende construir um prédio de 500 andares ou que formará uma frota de espaçonaves para fazer pacotes turísticos até a Lua é visto como um empreendedor. Mas se alguém ficar quieto, ensimesmado, não faltará quem diga que algo não está bem, que ele deve tomar alguma providência. E daí o sucesso de drogas como o Prozac.
- Essas drogas não representam evolução notável?
- É claro que existem distúrbios mentais com diagnóstico bem definido. A depressão, em muitos casos, pode ser uma doença grave, capaz de levar à invalidez e ao suicídio. Nesses casos, ela precisa ser tratada com remédios. Noto, porém, que é grande o número de pessoas que procuram médicos não porque estejam doentes, mas porque desejam mudar o seu humor, a sua personalidade. Querem fazer uma maquilagem de seu psiquismo, de seu estado de espírito. O bem de consumo prometido por muitos psiquiatras é um comportamento standard, de uma alegria plastificada que não dá margens a alterações de humor. Acho interessante que a substância mágica deste final de século sejam os antidepressivos. Podia ser um analgésico poderoso, um tranqüilizante muito forte, mas não. Isso mostra como a depressão é o espectro da modernidade. Para os gregos, a melancolia era um distúrbio dos humores, um excesso do que eles chamavam de bile negra, curável por dietas e purgas. Nada de preocupante. É a modernidade que vê na melancolia uma ameaça à inserção social do indivíduo, à capacidade produtiva. Evidentemente, quem busca em remédios e drogas uma máscara para a alma precisa lembrar que são paraísos artificiais, para usar uma expressão do poeta francês Baudelaire. Essas substâncias podem fazer com que o sujeito se afunde de vez e, o que é pior, com prescrição médica.
- Falta formação humanística aos médicos?
- Falta. E essa lacuna prejudica sobremaneira a relação com o paciente. As pessoas que hoje vão a um médico o fazem com a mesma expectativa de seus antepassados: encontrar alguém que as ouça. Muitas vezes basta isso. No entanto, o diálogo deu lugar a uma batelada de exames. O resultado é que o médico conversa cada vez menos com o paciente, toca menos na pessoa que o consulta. Houve ganho porque não há toque que substitua uma tomografia computadorizada no caso de um tumor no cérebro. Mas, ao deixar de ouvir e examinar com as próprias mãos o paciente, o profissional da saúde também perdeu sua humanidade. A cultura do médico do passado, que tinha noções de antropologia, era um leitor ávido e muitas vezes escritor, foi substituída pela formação estritamente tecnológica. Nesse caso, houve perda, porque não existe tomografia computadorizada que detecte a infelicidade de um paciente como origem daquele aperto no coração que se traduz em incômodos físicos. Nos Estados Unidos, algumas universidades esboçam uma reação, com um currículo composto de matérias como história da medicina, sociologia e ética. Tentam, assim, alargar o horizonte do estudante e, por tabela, melhorar a comunicação com seu futuro paciente.
- Apesar da busca de
um comportamento padrão, nunca se fez tanto a apologia das diferenças individuais. Como o senhor interpreta essa contradição?
- Essas diferenças são apenas um detalhe, funcionam como um acessório de moda. O que se propõe é uma pitada de individualidade combinada com uma grande dose de homogeneidade. No fundo, o que está por trás das mensagens publicitárias, da ênfase na criatividade no trabalho, é uma espécie de slogan esquizofrênico: "Seja diferente: seja igual". As ditaduras exercem o totalitarismo mediante a prisão, a tortura, a censura, as máquinas de extermínio. Já o que vou chamar de totalitarismo democrático se dá por meio do consumo, que homogeneíza padrões estéticos, de comportamento, de gosto. Arrisco dizer que essa necessidade de padronizar tudo guarda íntima relação com o prolongamento da adolescência, um fenômeno visível a olho nú.
- O que é isso?
- Na adolescência, todos querem pertencer à mesma tribo, falar a mesma língua, experimentar os mesmos sentimentos. Como tais necessidades satisfazem mais às exigências do mercado, essa fase da vida vem sendo esticada no plano cultural e social. Esse modelo do adolescente cheio de energia, com vontade de unir-se indissoluvelmente a um grupo, rápido no gatilho, encanta a sociedade contemporânea. No passado, a figura que servia de modelo era do velho experiente. Isso terminou porque a sabedoria foi substituída pela informação mastigada. Hoje, ninguém está interessado em ruminar o sentido da vida. Uma figura representativa deste nosso tempo é Bill Gates. Ele é o eterno adolescente, o prestidigitador capaz de fornecer respostas e sensações instantâneas.
- Qual o lugar da literatura em um mundo tão juvenil e apressado?
- As pessoas têm necessidade de ficção. É verdade que a literatura é apenas uma das formas que atendem a essa necessidade - na televisão, principalmente, a ficcionalização da realidade é um fato. Acho que a palavra que sintetiza a situação atual da literatura é perplexidade. Voltando ao final do século XIX, a literatura tinha o papel fundamental de ensinar as pessoas a viver. Recorria-se a grandes autores, como Balzac, Tolstoi e Dostoievski, para extrair lições, refletir sobre os fatos da vida e educar-se para o convívio humano. Essa função a literatura perdeu indelevelmente. Ao longo deste século, ela perdeu uma outra: a de doutrinação política. Essa deixou de ter sentido com o fim do comunismo, que lhe dava suporte. Na maioria das vezes, ser escritor era ser escritor de esquerda. O que sobrou para a literatura neste final de século? Acho que o modesto prazer de contar histórias, de ser veículo de emoções um pouco diferentes das proporcionadas pela indústria cultural.
- O senhor é um pessimista?
- Não se confundam minhas observações com passadismo ou saudosismo, duas das vias de acesso para o pessimismo. Ao chegar aos 60 anos, constato que existe um mecanismo de correção de rumo que sempre salva a sociedade do colapso. A história humana obedece a ciclos que alternam euforia e tranqüilidade. Estamos vivendo uma fase furiosa em que procuramos fugir dos próprios fantasmas, em que tentamos nos integrar a essa realidade chapada que é oferecida de bandeja pela economia de mercado e pela indústria do entretenimento. Tenho certeza, porém, de que um novo período está por vir. Nele, as pessoas voltarão a dar mais valor à vida interior e às relações interpessoais. Se fosse um pessimista, deixaria de escrever.
- Qual o tema do livro que o senhor pretende lançar até o final do ano?
- Estou escrevendo uma novela que gira em torno do médico sanitarista Noel Nutels, um judeu-russo que ainda criança imigrou para o Recife. Na capital pernambucana, ele formou-se em medicina e, não demorou muito, embrenhou-se no Xingu. Era um apaixonado pelos índios. Depois de presenciar as perseguições terríveis a judeus que antecederam e sucederam a Revolução Russa. Nutels identificou-se com esse grupo humano que também estava sendo massacrado. Ele morreu no início da década de 70, aos 59 anos, deixando um trabalho notável como sanitarista e indigenista. Atribui-se a Nutels, que era homem de esquerda, uma das melhores piadas com militares que este país já produziu. Depois do golpe de 64, já muito doente, ele foi visitado por cinco generais que o tinham em alta conta pelos serviços prestados no Xingu. "Como você está, Nutels?", perguntou um dos militares. "Como o Brasil: na m...e cercado de generais"., respondeu Nutels. É símbolo de uma época em que as pessoas tinham uma causa a se dedicavam a ela com paixão.

Entrevista dada para Mário SabinoPáginas amarelas da VEJA, de 28 de maio de 1997
(*)Nota da redação do PECO:Némesis Médica, de Ivan IllichPrimera edición en español, junio de 1978D.R.© Editorial Joaquin Mortiz, S.A.Grupo Editorial Planeta - Tabasco 106, México 7, D.F. Título original: Medical Nemesis© 1976, Random House, Inc - Pantheon Books Némesis MédicaEditora Nova Fronteira1976 - Rio de Janeiro / RJ

28 janeiro 2006

UM BELO CAPÍTULO DE THOMAS HARDY

DE NOVO EM CHRISTMNSTER

Quando chegaram, a estação estava muito animada. Rapazes de chapéu de palha esperavam moças que com eles tinham notável semelhança e usavam alegres e claros vestidos de verão.
- O lugar parece alegre – disse Sue. – É o dia das Comemorações!... Judas... como você é esperto... Chegou neste dia de propósito!
- Cheguei – disse Judas calmamente, tomando o menino mais moço nos braços e recomendando ao filho de Arabela que não se afastasse deles, enquanto Sue tomava conta da menina mais velha.
- Pensei que pudéssemos chegar hoje, tão bem quanto em outro qualquer dia.
- Mas, tenho medo que isso deprima você! – disse Sue, olhando-o ansiosamente dos pés à cabeça.
- Ah! É preciso não deixar que isso interfira na nossa vida. Temos muito que fazer antes de nos instalarmos aqui. E, antes de mais nada, precisamos procurar alojamento.
Tendo deixado a bagagem e as ferramentas na estação, foram a pé pela rua que lhes era tão familiar, misturados com a multidão que seguia na mesma direção. Na esquina dos Quatros Caminhos, preparavam-se para tomar o lado onde havia probabilidades de encontrar o que procuravam, quando, olhando o relógio e a multidão que se apressava, Judas disse:
- Vamos ver a procissão. E não nos preocupemos com o alojamento. Cuidaremos disso depois.
- Você não acha que deveríamos primeiro tratar de arranjar um teto? – sugeriu Sue.
- Contudo, Judas estava com o espírito na comemoração. Desceram a rua principal, o bebê nos braços de Judas, Sue segurando pela mão a meninazinha, enquanto o filho de Arabela seguia silenciosamente ao lado deles, com ar pensativo. Grupos de meninas bonitas, usando vestidos leves, e grupos de pais ignorantes que não haviam cursado nenhum colégio em sua juventude, seguiam na mesma direção, ladeados por irmãos ou filhos, cujas expressões revelavam nitidamente a opinião de que nenhum ser digno do nome de homem tinha jamais vivido neste mundo antes deles o terem vindo adornar com suas presenças.
- Meu fracasso pesa sobre mim à vista de cada um desses jovens – disse Judas. – Uma lição sobre a presunção me esperava hoje aqui! É um dia de humilhação para mim!... Se você, minha querida Sue, não tivesse vindo em meu socorro, teria ido para o diabo, por desespero!
- Sue viu, pela expressão de Judas, que ele estava numa terrível disposição de espírito.
- Melhor seria que nos tivéssemos ocupado logo de nossos afazeres, querido – disse Sue. – Tenho certeza que esse espetáculo despertará em você velhas tristezas e não lhe fará nenhum bem.
- Bem, estamos perto, vamos cuidar disso agora – disse Judas.
Viraram à esquerda da igreja de pórtico italiano, cujas colunas torsas eram guarnecidas por trepadeiras, e continuaram até que chegaram diante do teatro circular onde se encontrava o famoso lanternim: símbolo, para Judas, das suas ambições abandonadas. Era ali que tinha contemplado a cidade dos Colégios, na tarde de sua grande meditação. Era aí que tinha ficado enfim convencido da futilidade de suas esperanças de ser um filho da Universidade.
Naquele dia, no espaço livre que se estendia entre esse monumento e o colégio mais próximo, comprimia-se, em expectativa, uma multidão numerosa. Uma passagem havia sido reservada, no centro, entre a porta do colégio e a do grande edifício do teatro.
- É aqui o lugar. Vão passar já – gritou Judas de repente, muito excitado. Forçando caminho, chegou até a grade, tendo sempre o menino nos braços. Sue e as outras crianças o seguiam. A multidão se fechou atrás deles, conversando, brincando, rindo, enquanto os carros, um após outro, paravam diante da pequena porta do colégio e deles desciam personagens solenes, vestidos de vermelho cor de sangue.
O céu se tornara nublado e lívido e, de quando em quando. Ouvia-se o trovão.
O Pequeno Pai do Tempo teve um arrepio.
- Dir-se-ia o dia do julgamento final – murmurou ele.
- São apenas eruditos Doutores – Disse Sue.
Enquanto esperavam, grandes pingos de chuva caíam sobre suas cabeças e ombros. A espera se tornava enfadonha e Sue pediu mais uma vez para partir.
- Não tardará muito, agora – respondeu Judas, sem voltar a cabeça.
Contudo, a procissão continuava a não aparecer e alguém, na multidão, para passar o tempo, olhando a fachada do colégio mais próximo, disse que gostaria de saber o que queriam dizer com a inscrição latina que se encontrava no meio da parede. Judas, que estava perto, explicou. E percebendo que todos à volta dele o ouviam com interesse, começou a descrever as esculturas da frisa e a comentar alguns detalhes de arquitetura dos outros colégios da cidade.
A multidão de desocupados, inclusive os dois policiais que guardavam as portas, arregalavam os olhos, tal como os Licaonianos diante de S. Paulo, posto que Judas facilmente se entusiasmava com qualquer assunto. Pareciam admirados pelo fato daquele estrangeiro conhecer melhor que eles os edifícios da cidade. Por fim, um deles disse:
- Mas, eu conheço esse homem. Trabalhava aqui há muitos anos. Seu nome é Judas Fawley. Vocês não se lembram que lhe tinham dado o apelido de Pregador dos Miseráveis? Não se lembram? Tinha idéias nesse sentido. Ao que suponho, está casado e é o filho que carrega nos braços. Taylor o reconhecerá, ele que conhece todo mundo.
Quem falava era um homem que se chamava Jack Stagg. Tinha trabalhado com Judas, restaurando colégios antigos. Tinker Taylor estava por perto. Essas palavras atraíram sua atenção. Gritou por cima da grade:
- Sentimos-nos muito honrados em recebê-lo, meu amigo! Judas fez um sinal com a cabeça.
- Você não parece ter lucrado muito saindo daqui, não? Judas teve um gesto de assentimento.
- A não ser novas bocas para nutrir. – Isso foi dito por uma nova voz que Judas reconheceu como a do Tio Joe, um outro pedreiro de que se lembrava.
Retrucou com bom humor que não podia dizer o contrário. E, de réplica, estabeleceu-se uma conversa geral entre ele a multidão. Tinker Taylor lhe perguntou se se lembrava de uma noite, no “cabaret”, durante a qual tinha sido desafiado a recitar o Credo em latim.
- Mas a fortuna não se encontrava no seu caminho, não? – interveio Joe. – Você não era bastante forte para chegar ao fim, não?
- Não responda mais nada – suplicou Sue.
- Acho que não gosto de Christminster – murmurou tristemente o Pequeno Pai do Tempo, invisível e abafado pela multidão circunvizinhante.
Sentido-se alvo de toda aquela gente curiosa, Judas não se achava disposto a recuar diante de uma declaração franca de que não tinha a menor razão de se sentir envergonhado. E, pouco depois, sentiu-se impelido a dizer, com voz forte aos que o escutavam:
- é um problema difícil, amigos, para todos os jovens... problemas aos quais me atirei e sobre os quais milhares de outros refletem atualmente, nestes tempos novos. Deve cada um seguir cegamente o caminho em que se acha, sem considerar seus dotes pessoais, ou deve, pelo contrário, pesar as aptidões, as preferências que possa ter, e mudar a direção de sua vida? Foi o que tentei fazer e fracassei. Mas, não admito que o meu fracasso valha como prova de que estava errado, do mesmo modo como não admitiria que o sucesso justificasse o bem-fundado do meu ponto de vista. E é assim, entretanto, que, muitas vezes, julgamos os esforços, não pelo seu valor essencial, mas pelo seu resultado acidental. Se me tivesse tornado um desses senhores vestidos de vermelho e preto que estamos vendo descer, ali, todos diriam: “vejam como este homem agiu sabiamente, seguindo o pendor de sua natureza!” Mas, não tendo acabado melhor do que comecei, dizem: “Vejam como este homem agiu estupidamente, seguindo um capricho de sua imaginação!” No Entanto, foi minha pobreza e não a minha vontade que determinou a minha derrota. São precisas duas ou três gerações para fazer o que eu tentei fazer em uma só. Meus instintos, minhas paixões, talvez devesse dizer: meus vícios, eram fortes demais para não obstruir o caminho de um homem sem recursos. Precisaria ter um sangue de peixe e um egoísmo de porco para ter realmente uma probabilidade de me tornar um homem importante! Vocês podem me ridicularizar – permito que o façam. – Presto-me bem a isso, não há dúvida. Mas, creio que se soubessem de tudo por que passei, nesses últimos anos, vocês teriam, antes pena de mim. E se eles soubessem – indicava com um gesto de cabeça o colégio onde Doutores estavam chegando – fariam possivelmente o mesmo.
- Realmente ele tem um ar doente e exausto – disse uma mulher.
O rosto de Sue exprimia a sua emoção. Mas embora estivesse ao lado de Judas, ficava escondida por ele.
- Talvez eu seja útil, antes de morrer, como um terrível exemplo do que não se deve fazer, uma espécie de ilustração de uma história edificante – continuou Judas, não sem certo amargor, se bem que tivesse começado da falar com serenidade. – Não sou, afinal de contas, senão uma desprezível vítima desse espírito de inquietude moral e social que faz tantos desgraçados na nossa época.
- Não lhes diga isso – murmurou Sue, com lágrimas nos olhos, compreendendo o estado de espírito de Judas – Não é isso o que você é. Você lutou nobremente para se instruir e só almas muito baixas poderiam censurar isso.
Judas mudou a criança para uma posição mais cômoda, nos braços, e conclui:
- E o que vocês vêem, um homem pobre e doente, não é o que há de pior em mim. Estou num caos moral. Procurando às apalpadelas, no escuro. Agindo por instinto e sem modelo algum. Há oito ou nove anos atrás, quando aqui vim pela primeira vez, tinha um perfeito estoque de opiniões estabelecidas, que foram caindo, uma a uma. E, quanto mais caminho menos me sinto seguro. Pergunto-me se, presentemente, tenho outra regra de vida a não ser a de seguir pendores que não sejam nocivos nem a mim nem aos outros, e fazer prazer às pessoas de quem gosto. Aí está, senhores: queríeis saber o que eu me tinha tornado, disso tudo. Possa isso vos ser útil! Não posso me explicar mais longamente, aqui. Percebo que deve haver qualquer coisa de errado nas nossas fórmulas sociais: para descobri-lo, haveria necessidade de homens ou mulheres mais clarividentes do que eu – se é que alguém o possa fazer, em nossos dias. Porque quem é que sabe o que é bom para o homem neste mundo? E quem pode dizer a um homem o que haverá, depois dele, debaixo do sol?
- Escutem, escutem! – gritava o povo.
- Bom sermão! – disse Tinker Taylor. E, dirigindo-se a seus vizinhos:
- Certamente que um desses pastores que andam por toda a parte, oficiando quando os Reverendos estão de férias, não teria discursado sobre tantas questões de doutrina por menos de uma guinea. Não acham? Aposto que nenhum! E ainda, teriam tido de preparar o sermão. E, no entanto, ele não é senão um operário!
Como uma espécie de comentário objetivo ao discurso de Judas, chegou neste momento, um carro conduzindo um Doutor, pomposamente vestido e ofegante. Como o cavalo não parasse no lugar oportuno, saltou do carro e caminhou até o Colégio. O cocheiro pulou no chão e pôs-se da dar ponta-pés na barriga do animal.
- Se se pode fazer isso no portão de um Colégio – disse Judas – na própria cidade da Religião e da Instrução, quem poderá dizer até que ponto chegamos.
- Silêncio! – disse um dos policiais que, junto com seu companheiro, acabara de abrir as duas grandes portas defrontes ao colégio – cale-se, homem, durante o desfile do cortejo.
A chuva começou a cair com mais força, e todos os que tinham guarda-chuvas, os abriram. Judas não possuía nenhum e Sue, apenas um pequeno guarda-sol. Esta última tinha empalidecido muito, sem que Judas o tivesse notado.
- Partamos, Judas querido – murmurou, tentando abrigá-lo. – Não temos ainda alojamento e todas as nossas coisas estão na estação. De mais a mais, você está todo molhado, tenho medo que fique doente!
- Estão chegando, agora. Só um momento e, depois, iremos embora – disse.
Um carrilhão de seis sinos começou a tocar, cabeças aparecem em todas as janelas e o cortejo dos Provedores e dos novos Doutores começou a desfilar. Suas silhuetas, vestidas de preto e vermelho, passavam no campo de visão de Judas como planetas inacessíveis diante de uma objetiva.
A medida que desfilavam, pessoas bem informadas iam dizendo-lhes os nomes, e, quando atingiram o velho teatro circular de Wren, levantaram-se vivas aclamações.
- vamos até lá! – exclamou Judas.
Chovia agora torrencialmente, mas ele parecia não perceber nada e arrastava os seus para o lado do teatro. Ficaram ali, em pé sobre a palha que tinha sido posta para abafar o ranger das rodas. Os bustos de pedra, pálidos e estranhos, corroídos pelas geadas, pareciam contemplar a cerimônia e olhar particularmente Judas, Sue e as crianças, encharcadas, como se fossem personagens grotescas que nada tivessem que fazer ali.
Queria tanto entrar! – disse Judas com fervor. – Espere: daqui posso ouvir algumas palavras do discurso em latim: as janelas estão abertas.
Todavia, com o barulho do órgão, os gritos e as hurras que acompanhavam cada discurso, Judas, molhado, não pode ouvir grande coisa. Mal distinguia, de vez em quando, uma palavra sonora terminada em um ou ibus.
- Ah! Ficarei sempre de fora, até o fim de minha vida! – disse, por fim suspirando.
THOMAS HARDY – JUDAS, O OBSCURO – ED. ITATIAIA, 1958, PAG. 319-325

08 janeiro 2006

RABISCO I

PRONOMES

Não importa o eu,
o tu,
o ele.
Mas sim, o nós,
o vós,
o eles.
A busca do singular é cômoda e
estéril.
Porém, o plural abre caminho para o
amor,
o ódio,
o insólito,
a fertilidade e
o caos.