"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

25 fevereiro 2006

PARAÍSOS ARTIFICIAIS

Publico a entrevista abaixo, por ser um assunto que venho estudando e a forma como o entrevistado argumenta as suas idéias é muito interessante, além de que nos ajuda a compreender melhor um dos fenômenos que tanto presenciamos em nosso conturbado cotidiano: a patologização pela medicina do comportamento humano. Espero que gostem!

Entrevista com Moacyr Scliar

Falta de serotonina, excesso de dopamina, falhas nas fendas sinápticas - a bioquímica cerebral está na ordem do dia desde que os médicos passaram a anunciar a descoberta de causas orgânicas para males da alma. A saber: depressões, angústia e pessimismo. O entusiasmo é tanto que nesse pacote de doenças entra o que até ontem era considerado traço de personalidade, como mau humor e melancolia. Chega-se a ter a impressão de que o objetivo de tais pesquisas é formular um remédio que propicie um estado de felicidade imune aos psiquismos, imperturbável diante das vicissitudes da vida. Essa pílula mágica seria mesmo formidável, e não só para o faturamento dos laboratórios farmacêuticos. Mas é preciso ir devagar com o andor, acredita o escritor gaúcho Moacyr Scliar, 60 anos e 44 livros publicados, ele próprio médico. Scliar, que tem na medicina um dos temas de sua literatura, diz nesta entrevista a VEJA que a ambição de controlar quimicamente todos os aspectos do comportamento humano, além de ser um desdobramento previsível da onipotência médica, camufla tentações totalitárias.

- Se traços de caráter passaram a ser distúrbios de personalidade, que fazer para não acabar num asilo de loucos?
- Ter em mente que a atual situação também é resultado da cumplicidade entre o criminoso e a vítima. Hoje, as pessoas buscam na medicina as soluções para todos os seus problemas. É o que Ivan Illich chamou de medicalização da vida. (*) Ele levanta a hipótese de que os médicos, ao tentar controlar uma série de aspectos da vida, serviam como instrumento de engenharia social. Aliás, no século XIX essa idéia ainda em esboço estava bem representada no asilo de alienados, satirizada por Machado de Assis em O Alienista.
- A melancolia e outros estados de espírito tidos como negativos podem ser produtivos?
- É claro que sim. Muitas pessoas encontram na tristeza, no inconformismo, no mau humor material para criar na literatura, na música, na pintura. Isso não só diminui como humaniza o seu sofrimento e os seus sentimentos. Quando lemos um livro de um melancólico como o escritor checo Franz Kafka, que teve uma vida de intenso sofrimento psicológico, nós partilhamos de sua angústia - o que nos torna melhores. Toda arte encontra sua expressão na metáfora da garrafa do náufrago que atira sua mensagem ao mar sem saber a quem ela chegará. Essa mensagem tem chegado a bem poucos, é verdade, mas em inúmeros casos talvez ela pudesse ser um substituto para os artifícios químicos. As pessoas que lêem, que se nutrem de arte, sabem que nenhum homem é uma ilha e que todos padecem, em maior ou menor grau, das limitações da condição humana.
- Como o senhor vê a tentativa da medicina de encontrar respostas químicas para quase todos os comportamentos?
- Há nessa atitude um componente da onipotência que por vezes contamina a pesquisa e a prática médicas. De uma perspectiva histórica, o fenômeno é explicável pelo fato de a medicina científica ser algo recente, que ainda inspira um entusiasmo desmedido como qualquer brinquedo novo.
- Mas a medicina não foi sempre uma ciência?
- Não. Durante séculos, em diferentes culturas, a arte de curar foi uma prática mágico-religiosa. Quem tratava das doenças eram pajés e sacerdotes, e o instrumento básico para a cura era a fé do doente no xamã que o atendia. Com Hipócrates, na Antiga Grécia, teve início a visão empírica, em que algumas doenças passaram a ter origens naturais. Mas só no final do século passado a medicina entrou realmente na sua fase científica, que pode ser resumida da seguinte forma: há uma causa para a doença e existe uma maneira de enfrentá-la no campo de combate que é o corpo do paciente. Quem inaugurou essa etapa, que pode ser considerada a primeira revolução na medicina, foi o francês Louis Pasteur, o descobridor dos microorganismos. Em sua época, Pasteur chegou a ser mais popular do que Napoleão Bonaparte, o que dá a medida do seu feito. Neste fim de século, estamos vivendo uma segunda revolução, representada por procedimentos como a engenharia genética, o estudo da bioquímica cerebral e novos métodos de diagnóstico e tratamento. É o apogeu da visão científica da medicina, que agora tenta ampliar seu raio de ação para questões comportamentais, por meio da psiquiatria. Vingou a idéia da pílula mágica - de que para cada sofrimento físico ou mental existe um remedinho milagroso.
- Por que a idéia da pílula mágica faz sucesso?
- Porque parece ser o caminho mais fácil para preencher esse vazio interior que tomou conta das pessoas neste final de século - vazio este que causa uma ansiedade exasperante. A busca da pílula mágica corresponde ao afrouxamento das relações interpessoais, que ficaram muito tênues, difícies. Em geral, tem-se poucos amigos, a família é uma chateação e os colegas de trabalho só querem saber de puxar o seu tapete. É preciso ver, ainda, que certas doenças e tipos de condicionamento ficaram estigmatizados. Depressão, por exemplo. As pessoas simplesmente não toleram a depressão em si mesmas e nos outros. Como em nossa sociedade os indivíduos são constantemente instados a mover-se, a fazer coisas, a tomar decisões, a agir, quem fica sozinho num canto é visto com suspeição. É curioso notar que a forma de considerarmos a doença bipolar, em que existe um pólo maníaco e outro depressivo, obedece a uma determinação social.
- Como assim?
- O pólo maníaco é muito mais aceito pelas sociedades competitivas do que o pólo depressivo. O sujeito que diz que pretende construir um prédio de 500 andares ou que formará uma frota de espaçonaves para fazer pacotes turísticos até a Lua é visto como um empreendedor. Mas se alguém ficar quieto, ensimesmado, não faltará quem diga que algo não está bem, que ele deve tomar alguma providência. E daí o sucesso de drogas como o Prozac.
- Essas drogas não representam evolução notável?
- É claro que existem distúrbios mentais com diagnóstico bem definido. A depressão, em muitos casos, pode ser uma doença grave, capaz de levar à invalidez e ao suicídio. Nesses casos, ela precisa ser tratada com remédios. Noto, porém, que é grande o número de pessoas que procuram médicos não porque estejam doentes, mas porque desejam mudar o seu humor, a sua personalidade. Querem fazer uma maquilagem de seu psiquismo, de seu estado de espírito. O bem de consumo prometido por muitos psiquiatras é um comportamento standard, de uma alegria plastificada que não dá margens a alterações de humor. Acho interessante que a substância mágica deste final de século sejam os antidepressivos. Podia ser um analgésico poderoso, um tranqüilizante muito forte, mas não. Isso mostra como a depressão é o espectro da modernidade. Para os gregos, a melancolia era um distúrbio dos humores, um excesso do que eles chamavam de bile negra, curável por dietas e purgas. Nada de preocupante. É a modernidade que vê na melancolia uma ameaça à inserção social do indivíduo, à capacidade produtiva. Evidentemente, quem busca em remédios e drogas uma máscara para a alma precisa lembrar que são paraísos artificiais, para usar uma expressão do poeta francês Baudelaire. Essas substâncias podem fazer com que o sujeito se afunde de vez e, o que é pior, com prescrição médica.
- Falta formação humanística aos médicos?
- Falta. E essa lacuna prejudica sobremaneira a relação com o paciente. As pessoas que hoje vão a um médico o fazem com a mesma expectativa de seus antepassados: encontrar alguém que as ouça. Muitas vezes basta isso. No entanto, o diálogo deu lugar a uma batelada de exames. O resultado é que o médico conversa cada vez menos com o paciente, toca menos na pessoa que o consulta. Houve ganho porque não há toque que substitua uma tomografia computadorizada no caso de um tumor no cérebro. Mas, ao deixar de ouvir e examinar com as próprias mãos o paciente, o profissional da saúde também perdeu sua humanidade. A cultura do médico do passado, que tinha noções de antropologia, era um leitor ávido e muitas vezes escritor, foi substituída pela formação estritamente tecnológica. Nesse caso, houve perda, porque não existe tomografia computadorizada que detecte a infelicidade de um paciente como origem daquele aperto no coração que se traduz em incômodos físicos. Nos Estados Unidos, algumas universidades esboçam uma reação, com um currículo composto de matérias como história da medicina, sociologia e ética. Tentam, assim, alargar o horizonte do estudante e, por tabela, melhorar a comunicação com seu futuro paciente.
- Apesar da busca de
um comportamento padrão, nunca se fez tanto a apologia das diferenças individuais. Como o senhor interpreta essa contradição?
- Essas diferenças são apenas um detalhe, funcionam como um acessório de moda. O que se propõe é uma pitada de individualidade combinada com uma grande dose de homogeneidade. No fundo, o que está por trás das mensagens publicitárias, da ênfase na criatividade no trabalho, é uma espécie de slogan esquizofrênico: "Seja diferente: seja igual". As ditaduras exercem o totalitarismo mediante a prisão, a tortura, a censura, as máquinas de extermínio. Já o que vou chamar de totalitarismo democrático se dá por meio do consumo, que homogeneíza padrões estéticos, de comportamento, de gosto. Arrisco dizer que essa necessidade de padronizar tudo guarda íntima relação com o prolongamento da adolescência, um fenômeno visível a olho nú.
- O que é isso?
- Na adolescência, todos querem pertencer à mesma tribo, falar a mesma língua, experimentar os mesmos sentimentos. Como tais necessidades satisfazem mais às exigências do mercado, essa fase da vida vem sendo esticada no plano cultural e social. Esse modelo do adolescente cheio de energia, com vontade de unir-se indissoluvelmente a um grupo, rápido no gatilho, encanta a sociedade contemporânea. No passado, a figura que servia de modelo era do velho experiente. Isso terminou porque a sabedoria foi substituída pela informação mastigada. Hoje, ninguém está interessado em ruminar o sentido da vida. Uma figura representativa deste nosso tempo é Bill Gates. Ele é o eterno adolescente, o prestidigitador capaz de fornecer respostas e sensações instantâneas.
- Qual o lugar da literatura em um mundo tão juvenil e apressado?
- As pessoas têm necessidade de ficção. É verdade que a literatura é apenas uma das formas que atendem a essa necessidade - na televisão, principalmente, a ficcionalização da realidade é um fato. Acho que a palavra que sintetiza a situação atual da literatura é perplexidade. Voltando ao final do século XIX, a literatura tinha o papel fundamental de ensinar as pessoas a viver. Recorria-se a grandes autores, como Balzac, Tolstoi e Dostoievski, para extrair lições, refletir sobre os fatos da vida e educar-se para o convívio humano. Essa função a literatura perdeu indelevelmente. Ao longo deste século, ela perdeu uma outra: a de doutrinação política. Essa deixou de ter sentido com o fim do comunismo, que lhe dava suporte. Na maioria das vezes, ser escritor era ser escritor de esquerda. O que sobrou para a literatura neste final de século? Acho que o modesto prazer de contar histórias, de ser veículo de emoções um pouco diferentes das proporcionadas pela indústria cultural.
- O senhor é um pessimista?
- Não se confundam minhas observações com passadismo ou saudosismo, duas das vias de acesso para o pessimismo. Ao chegar aos 60 anos, constato que existe um mecanismo de correção de rumo que sempre salva a sociedade do colapso. A história humana obedece a ciclos que alternam euforia e tranqüilidade. Estamos vivendo uma fase furiosa em que procuramos fugir dos próprios fantasmas, em que tentamos nos integrar a essa realidade chapada que é oferecida de bandeja pela economia de mercado e pela indústria do entretenimento. Tenho certeza, porém, de que um novo período está por vir. Nele, as pessoas voltarão a dar mais valor à vida interior e às relações interpessoais. Se fosse um pessimista, deixaria de escrever.
- Qual o tema do livro que o senhor pretende lançar até o final do ano?
- Estou escrevendo uma novela que gira em torno do médico sanitarista Noel Nutels, um judeu-russo que ainda criança imigrou para o Recife. Na capital pernambucana, ele formou-se em medicina e, não demorou muito, embrenhou-se no Xingu. Era um apaixonado pelos índios. Depois de presenciar as perseguições terríveis a judeus que antecederam e sucederam a Revolução Russa. Nutels identificou-se com esse grupo humano que também estava sendo massacrado. Ele morreu no início da década de 70, aos 59 anos, deixando um trabalho notável como sanitarista e indigenista. Atribui-se a Nutels, que era homem de esquerda, uma das melhores piadas com militares que este país já produziu. Depois do golpe de 64, já muito doente, ele foi visitado por cinco generais que o tinham em alta conta pelos serviços prestados no Xingu. "Como você está, Nutels?", perguntou um dos militares. "Como o Brasil: na m...e cercado de generais"., respondeu Nutels. É símbolo de uma época em que as pessoas tinham uma causa a se dedicavam a ela com paixão.

Entrevista dada para Mário SabinoPáginas amarelas da VEJA, de 28 de maio de 1997
(*)Nota da redação do PECO:Némesis Médica, de Ivan IllichPrimera edición en español, junio de 1978D.R.© Editorial Joaquin Mortiz, S.A.Grupo Editorial Planeta - Tabasco 106, México 7, D.F. Título original: Medical Nemesis© 1976, Random House, Inc - Pantheon Books Némesis MédicaEditora Nova Fronteira1976 - Rio de Janeiro / RJ