"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

19 agosto 2010

A VERDADE SOBRE A CAMPANHA CONTRA AS REPARAÇÕES A PERSEGUIDOS POLÍTICOS

Ter, 29 de Junho de 2010 19:37
Celso Lungaretti (*)

Por três dias seguidos, o vetusto jornalão O Estado de S. Paulo faz lobby descarado contra o programa de reparações às vítimas da ditadura de 1964/85, pressionando o Tribunal de Contas da União a acatar uma proposta de redução de benefícios identificada com as posições dasviúvas da ditadura, dos sites goebbelianos e das correntes virtuais de extrema-direita.

É a velha tabelinha entre uma determinada autoridade e a imprensa afinada com sua ideologia, tentando empurrar os acontecimentos na direção que agrada a ambos.

Não se trata nem da repetição da História como farsa, embora o Estadão já tenha feito idêntica tentativa de detonar a anistia federal em 2004, daquela vez acompanhado em alto estilo pela imprensa burguesa.

Só que já era uma cruzada farsesca, pois distorcia totalmente os fatos para encaixarem-se na imagem demagógica que se queria passar ao público. Então, o que temos agora é, isto sim, a repetição da farsa como encenação de mafuá.

A campanha começou com o destaque exageradíssimo dado ao assunto no domingo (27/06): matéria de capa, com direito a página inteira e nada menos do que cinco retrancas.

No texto principal, ficamos sabendo que Marinus Marsico, procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, quer que sejam revistos, "por ora", 9.371 benefícios já concedidos desde a promulgação da lei respectiva em 2002.

Por quê?

Porque "a revisão poderá gerar uma economia de milhões de reais aos cofres públicos", diz o procurador.

Ora, isto não é nem nunca foi argumento aceitável numa democracia. Reduzem-se benefícios quando são injustificados, não para amenizar problemas de caixa dos governos. E em nenhum dos textos do Estadão são honestamente apresentados os critérios do programa.

Tratou-se de uma iniciativa pioneira no Brasil, seguindo as recomendações da Organização das Nações Unidas para países que saem de ditaduras.

A Comissão de Anistia foi constituída em 2002 para identificar os cidadãos que sofreram graves danos de ordem física, psicológica, moral e profissional como consequência do arbítrio instaurado no Brasil entre 1964 e 1985, recomendando ao ministro da Justiça a reparação adequada em cada caso.

As regras do programa são as seguintes:

• para quem comprova terem seus direitos sido atingidos apenas em termos físicos e/ou psicológicos e/ou morais, é concedida uma indenização em parcela única (que o procurador Marsico não questiona);
• quem, ademais, teve sua trajetória profissional comprometida pelo estado de exceção, faz jus a uma pensão mensal e a uma indenização retroativa referente às décadas transcorridas entre a lesão a seus direitos e o início do recebimento da reparação.
Isto se aplica, principalmente, àqueles que foram afastados do serviço público, de instituições subordinadas ou vinculadas ao Estado e das Forças Armadas por terem opiniões diferentes das dos golpistas encastelados no poder. Tal caça às bruxas, inconcebível e inaceitável no século XX, privou dezenas de milhares de cidadãos do seu emprego legítimo.

E houve também casos de indivíduos que perderam seu trabalho na iniciativa privada em função de perseguições políticas, como o jornalista Carlos Heitor Cony (o Correio da Manhã foi obrigado a demiti-lo) e os também jornalistas Jaguar e Ziraldo, cujo Pasquim foi sufocado pela ditadura por meio de prisões arbitrárias dos integrantes da equipe, censura que atingia as raias do grotesco e terríveis pressões econômicas.

Por se referirem a cidadãos prósperos e famosos, estes três casos chocaram a opinião pública. Mas, a página virtual do programa está à disposição de todos e uma análise criteriosa das reparações já aprovadas permitirá a qualquer interessado verificar que os benefícios duvidosos nem de longe são 9.731. Não chegam sequer a uma centena.

O procurador Marsico e o Estadão pinçam casos isolados para dar a impressão de que os demais seguem todos o mesmo diapasão, O QUE NÃO É VERDADE.

Meu caso foi considerado, pelo então presidente da Comissão da Anistia, Marcello Lavènere, o mais dramático que o colegiado já havia julgado até aquele final de 2005. Exatamente por isto, tive de ficar conhecendo em profundidade o programa, pois não tinha como pagar advogado e travei minha luta sozinho.

Afirmo, com total conhecimento de causa, que houve distorções e equívocos, como em todas as ações humanas, mas numa escala imensamente inferior à que o procurador alega.

O QUE SE DIZ E O QUE SE OMITE
SOBRE A PENSÃO DA VIÚVA LAMARCA

O viés ideológico desse ataque ao programa salta aos olhos quando procurador e jornalão questionam o benefício concedido a Maria Pavan Lamarca, viúva do ex-capitão Carlos Lamarca, que "desertou do Exército, virou guerrilheiro e foi morto em 1971", segundo a reportagem.

Para os cidadãos civilizados, foi o Exército que desertou da democracia, passando a prestar serviços de jagunçada para os golpistas que usurparam o poder.

Ao voltar-se contra os que tornaram as Forças Armadas um instrumento do arbítrio, Lamarca honrou o compromisso que assumira, de defender a ordem constitucional do País. Foi preso e covardemente executado.

Está na reportagem:

"Lamarca foi promovido a coronel, quando a promoção correta seria a capitão, argumenta a representação. Os valores pagos à viúva equivalem ao vencimento de general, completa o texto. 'A remuneração mensal de R$ 11.444, bem como o pagamento retroativo de R$ 902,7 mil deveriam ser reduzidos', diz [o procurador Marsico]".

Ora, capitão ele já era. Caso as instituições não tivessem sido golpeadas em 1964, Lamarca, militar tão brilhante a ponto de haver sido escolhido para integrar a Força de Paz da ONU no canal de Suez, atingiria inevitavelmente as culminâncias do oficialato.

E, ao trombetear que haveria irregularidade nesse caso, um procurador jamais poderia omitir o que o presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão Pires Jr., esclareceu irrefutavelmente em 2007, respondendo à grita falaciosa da direita:

• quem reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Carlos Lamarca foi a Comissão de Mortos e Desaparecidos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos, em 1996;
• quem primeiramente reconheceu a condição de anistiado político a Lamarca, afastando a tese da deserção, foi a Justiça Federal de São Paulo, em decisão transitada em julgado e confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça;
• quem o promoveu a coronel foi a 7ª Vara Federal de São Paulo, em 2006;
• a Comissão de Anistia não acatou o pedido da viúva requerente, que solicitava a progressão para general-de-brigada, mantendo apenas a decisão proferida anteriormente pela Justiça, que concedeu a Lamrca o posto de coronel;
Então, o que realmente fez a Comissão de Anistia foi:
• estender a Lamarca o privilégio de que desfrutam todos os oficiais ao passarem à reserva, de receber pensão equivalente ao soldo da patente imediatamente superior;
• considerar Maria e seus filhos César e Cláudia também anistiados, concedendo a cada um deles uma indenização de R$ 100 mil, em parcela única.
Quem quiser saber mais, é só reler meu artigo de três anos atrás, Caso Lamarca: muito barulho por nada.

Mesmo assim, o editorial do Estadão de 3ª feira (29/06), A indústria da reparação, repete a desinformação da reportagem de dois atrás, até com as mesmas palavras:

"O procurador Marinus Marsico cita três exemplos de reparações claramente impróprias. O primeiro é o benefício pago à viúva do capitão Carlos Lamarca, que desertou do Exército para se tornar guerrilheiro e foi morto na Bahia em 1971. Depois da anistia, Lamarca foi promovido post-mortem a coronel, acima dos postos de major e tenente-coronel. Com isso, a viúva Maria Pavan Lamarca recebe o equivalente ao soldo de um general".

O jornal parece estar voltando aos idos de 1964, quando a família proprietária assumidamente conspirou para a derrubada do governo constitucional de João Goulart, ponto de partida do festival de horrores que a União agora está sendo obrigada a reparar.

Justiça seja feita, recuou quando a sucessão de abusos e atrocidades atingiu seu auge, passando a questionar aspectos do regime que ajudou a instaurar.

Mas, deveria reconhecer que sua posição no caso não é nem um pouco isenta.

E que não tem autoridade moral nenhuma para questionar a reparação das injustiças do passado.

* Jornalista, escritor e ex-preso político com lesão permanente provocada por torturas, anistiado pelo ministro da Justiça em 2005. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com

14 agosto 2010

NOTA DE OPINIÃO DA COMISSÃO DE ANISTIA SOBRE A DECISÃO DO TCU

A Comissão de Anistia tomou conhecimento, por meio da imprensa, de decisão do TCU que acolheu solicitação do procurador Marinus Marsico para que todas as indenizações concedidas como prestações continuadas sejam reapreciadas pelo Tribunal, com fulcro em suposto caráter previdenciário das mesmas e em possíveis ilegalidades.

Como contribuição ao debate democrático junto à sociedade e às instituições públicas brasileiras, a Comissão de Anistia manifesta preocupação no sentido de que a decisão do TCU incorra em um equívoco jurídico, político e um retrocesso histórico.

1. Do ponto de vista jurídico importam dois registros.
O primeiro o de que, para tentar comprovar a possível existência de “ilegalidades” nas indenizações utilizaram-se de 3 casos emblemáticos: Carlos Lamarca, Ziraldo Alves Pinto e Sérgio Jaguaribe.

Ocorre que a decisão não abrangeu informações fundamentais. No caso do Coronel Carlos Lamarca, assassinado na Bahia, faltou a informação de que o direito devido à sua viúva é objeto de decisão da Justiça Federal meramente atualizada pelo Ministério da Justiça. Faltou registrar também que recentemente a Justiça Federal do Rio de Janeiro confirmou a correição da decisão da Comissão de Anistia no caso do jornalista perseguido Ziraldo e que possui situação idêntica a de Jaguar. Estaria a Justiça Federal cometendo ilegalidades?

Nos três casos, os critérios indenizatórios estão previstos na Constituição e na lei 10.559/2002. Vale ressaltar que o artigo 8º do ADCT prevê que a anistia é concedida “asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo”.

A segunda impropriedade reside em possível exorbitância das competências do TCU, que abrangem a apreciação da: “III -legalidade dos atos de admissão de pessoal e de concessão de aposentadorias, reformas e pensões civis e militares” nos termos do art. 71 da Constituição.

Ocorre que a lei 10.559/2002, criada por proposição do governo Fernando Henrique e aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, em seu art. 1º, criou o específico “regime jurídico do anistiado político”, compreendendo como direito: “II -reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1o e 5o do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;”. Ainda, o artigo 9º, caracteriza de forma inequívoca a reparação como parcela indenizatória, destacando que “Os valores pagos por anistia não poderão ser objeto de contribuição ao INSS, a caixas de assistência ou fundos de pensão ou previdência, nem objeto de ressarcimento por estes de suas responsabilidades estatutárias”. Avançando ainda mais, a lei prevê, em seu parágrafo único que “os valores pagos a título de indenização a anistiados políticos são isentos do Imposto de Renda”.

Se a equiparação entre a indenização reparatória e a previdência social fosse o objetivo da Lei n.º 10.559, não teria ela em seu artigo 1º estabelecido de forma expressa o referido “regime do anistiado político” em oposição aos regimes especiais da previdência já existentes à época. Justamente o oposto: o 9º artigo da lei determina que todos os benefícios decorrentes de anistia sob tutela previdenciária do INSS sejam convertidos para a modalidade indenizatória e pagos pelos Ministérios do Planejamento e da Defesa: “O pagamento de aposentadoria ou pensão excepcional relativa aos já anistiados políticos, que vem sendo efetuado pelo INSS e demais entidades públicas, bem como por empresas, mediante convênio com o referido instituto, será mantido, sem solução de continuidade, até a sua substituição pelo regime de prestação mensal, permanente e continuada, instituído por esta Lei”.

Assim, questão basilar no direito brasileiro, os direitos indenizatórios não se confundem com os direitos previdenciários. A tentativa de igualar as prestações mensais a um benefício de natureza previdenciária é um exercício imaginativo forçado, cujo resultado inadequado seria uma assimetria entre as reparações de prestação única e as reparações de prestação mensal. Conforme a decisão, os perseguidos políticos que recebem reparação em prestação única seriam “indenizados” e os que recebem prestação mensal seriam titulares de “beneficio previdenciário”. A lei brasileira não estabelece esta distinção, ao contrário, dispõe que ambas reparações são resultantes do mesmo fato gerador, são reguladas pelos mesmos requisitos, com regime jurídico próprio e, óbvio, sob o teto de uma mesma lei. Neste sentido, estabelecer uma analogia entre a indenização em prestação mensal e a previdência social seria francamente exorbitante e ilegal, pois que procura, por meio do controle de contas, redefinir a natureza jurídica do regime do anistiado político, previsto na Constituição e regulamentado na Lei n.º 10.559/2002.

2. Do ponto de vista político, o temerário gesto do TCU ao se “autoconceder” uma competência explicitamente inexistente na Constituição pode enfraquecer a própria democracia. Incorre em erro a idéia difundida de que “[...] quem paga não foi quem oprimiu. É o contribuinte. Não é o Estado quempaga essas indenizações. É a sociedade.”, expressa recentemente pelo patrocinador da causa. Todo o direito internacional e as diretivas da ONU são basilares em afirmar que é dever de Estado, e não de governos, a reparação a danos produzidos por ditaduras. O dever de reparação é obrigação jurídica irrenunciável em um Estado de Direito. Mais ainda: o sistema jurídico nacional reconheceu esta responsabilidade nas Leis n.º 9.140/1995 e n.º 10.559/2002 e o Supremo Tribunal Federal definiu de forma claríssima que tais reparações fundamentam-se na “responsabilidade extraordinária do Estado” absorvida dos agentes públicos que agiram em seu nome (ADI 2.639/2006, Relator Min. Nelson Jobim). Deste modo, os critérios de indenização foram fixados pela Constituição de 1988 e pela Lei 10.559/2002 e qualquer alteração nestes critérios cabe somente ao poder Legislativo ou ao poder constituinte reformador, e não a órgãos de fiscalização e controle.

3. Do ponto de vista histórico tem-se que a anistia é um ato político onde reparação, verdade e justiça são indissociáveis. O dado objetivo é que no Brasil o processo de reparação tem sido o eixo estruturante da agenda ainda pendente da transição política. O processo de reparação tem possibilitado a revelação da verdade histórica, o acesso aos documentos e testemunhos dos perseguidos políticos e a realização dos debates públicos sobre o tema.

O Estado brasileiro demorou em promover o dever de reparação. Os valores retroativos devidos aos perseguidos políticos somente são altos em razão da mora do próprio Estado em regulamentar as indenizações devidas desde 1988. O somatório da inafastável dívida regressa é proporcionalmente igual à demora no processo de reparação. Questionar as “altas indenizações” tomando por base os valores dos retroativos, e não das prestações mensais em si importa em distorção dos fatos e do direito. Como a Constituição determina, os efeitos financeiros iniciam-se em outubro de 1988, o cálculo de retroativos que conduz aos altos valores é simplesmente aritmético, aplicada a prescrição qüinqüenal das dívidas do Estado. Não há, neste sentido, qualquer juízo administrativo sobre esse valor que possa ser corrigido sem flagrante desrespeito à Constituição.

Nas agendas das transições políticas, as Comissões de Reparação cumprem um duplo papel: juridicamente sanam um dano e, politicamente, fortalecem a democracia, restabelecendo o Estado deDireito e recuperando a confiança cívica das vítimas no Estado que antes as violou. É por esta razão que legislações especiais, como a Lei n.º 10.559, criam processos diferenciados para a concessão de reparações, com simplificação das provas (muitas vezes, como no caso brasileiro, parcialmente destruídas pelo próprio Estado) e critérios diferenciados de indenização (que não a verificação do dano moral e material). São órgãos públicos específicos para promover um amplo processo de oitiva das vítimas, registrar seus depoimentos, processar as suas dores e traumas, em um ambiente de resgate da confiança pública da cidadania violada com o Estado perpetrador das violações aos direitos humanos.

Após 10 anos de lenta e gradual indenização às vítimas, o anúncio público por parte do Estado brasileiro de revisar as impagáveis compensações decorrentes do “custo ditadura”, ou seja, dos desmandos cometidos pelo Estado nos períodos ditatoriais – como torturas, prisões, clandestinidades, exílios, banimentos, demissões arbitrárias, expurgos escolares, cassações de mandatos políticos, monitoramentos ilegais, aposentadorias compulsórias, cassações de remunerações, punições administrativas, indiciamentos em processos administrativos ou judiciais – pode implicar em quebra do processo gradativo de reconciliação nacional e de resgate da confiança pública daqueles que viram o seu próprio Estado agir para destruir seus projetos de vida. Tantos anos depois, torna-se inoportuno e injustificável para as vítimas, o Estado valer-se da criação de procedimentos de revisão diferentes daqueles inicialmente estipulados, estabelecendo uma instância revisora com um controle diferenciado, impondo ao perseguido político mais uma etapa para a obtenção de direito devido desde 1988, ampliando a flagrante violação ínsita na morosidade do Estado em cumprir com seu dever de reparar.
É importante destacar que a Comissão de Anistia não se opõe que o TCU promova fiscalização de legalidade concreta. A propósito, o Ministério da Justiça já observou algumas destas recomendações em outras oportunidades. O que não se pode concordar, neste momento é com o fato de que a Corte de Contas abandone seu papel de fiscal de contas arvorando-se verdadeiramente em nova instância decisória para a concessão dos direitos reparatórios. O sentido das Comissões de Reparação é o de estabelecer um procedimento mais simples, célere e homogêneo que o procedimento judicial, como forma de garantir a restituição dos direitos às vítimas ainda em vida ou aos seus familiares. Não guarda qualquer relação com este objetivo remeter ao TCU o trabalho arduamente realizado por 7 diferentes Ministros da Justiça ao longo de 10 anos.

A inclusão de um procedimento revisor nos dias de hoje pode abalar a confiança cívica que as vítimas depositaram no Estado democrático e a própria reparação moral consubstanciada no pedido oficial de desculpas a ele ofertado pelo Estado, prejudicando o processo de reconciliação nacional.

Trata-se de um grave retrocesso na agenda da transição política e da consolidação dos Direitos Humanos no Brasil. Em outros países que enfrentaram regimes de exceção a agenda nacional move-se no sentido de avançar, com o Chile abrindo a integralidade dos arquivos disponíveis, a Espanha retirando estátuas e denominações de espaços públicos alusivas à ditadura de Franco, a Argentina condenando torturadores, e todos os países (desde o fatídico episódio nazista na Alemanha) estabelecendo programas de reparação às vítimas e depurando do serviço públicos aqueles que promoveram violações graves aos direitos humanos. Esta decisão no Brasil orienta-se no sentido oposto: recoloca sob o plano da incerteza e da insegurança as reparações destinadas às vítimas ao invés de lançar-se sobre a investigação dos perpetradores.

É imperativo avançar com a localização e abertura dos arquivos das Forças Armadas; com a proteção judicial das vítimas, com uma reforma ampla dos órgãos de segurança; com a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos entre outras tantas medidas já dadas pelo exemplo dos países que viveram experiências similares à nossa e pelo que está disposto nos tratados internacionais sobre a matéria. Caberia agora ao Brasil debruçar-se sobre os arquivos das vítimas, não para querer rever os critérios criados pelo legislador democrático diante do incomensurável custo-ditadura, mas sim para encontrar-se com os milhares de relatos das atrocidades impostas aos anônimos que os meios de comunicação ainda não se interessaram em propalar.

Por fim, a Comissão de Anistia reconhece a legitimidade do TCU para o controle de contas pontual e concreto, mas opõe-se ao extrapolamento ora em curso que pretende identificar o regime indenizatório com o regime previdenciário e proclamar uma nova instância revisora de todas as indenizações mensais. A Comissão de Anistia ainda reconhece todas as demais formas de controle da Administração Pública a que está submetida, como as esferas de controle interno e o próprio Ministério Público Federal.

Se há algum ponto positivo a ser extraído da decisão de ontem no caso desta ser mantida por instâncias recursais superiores, trata-se da possibilidade reaberta para que o Estado, uma vez mais, possa através de um órgão público dar publicidade às histórias de violações praticadas durante os anos de exceção no Brasil. Numa eventual reapreciação de todo o conjunto de processos julgados espera-se que o Tribunal de Contas, não transforme um processo de reparação política em processo meramente contábil e saiba ouvir e divulgar os relatos das vítimas, verificando com a devida sensibilidade histórica a legalidade de todas as concessões empreendidas pelo Ministério da Justiça. Somente deste modo a atual medida poderá contribuir para o fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.

Brasília, 12 de agosto de 2010.
Paulo Abrão Pires Junior
Presidente da Comissão de Anistia Ministério da Justiça
Sueli Aparecida Bellato
Vice-Presidente da Comissão de Anistia Ministério da Justiça

11 agosto 2010

LEANDRO E SEU VÍDEO



ERA UMA VEZ um índio chamado Juruna. Ele escandalizou o país no fim dos anos 70 com um simples gravador. O xavante ia aos gabinetes de Brasília, apresentava seus pleitos, ouvia o blá-blá-blá dos burocratas e gravava. Quando Juruna tocou suas fitas, o Brasil percebeu que não era só ele quem estava sendo feito de bobo e tratado como um estorvo. Juruna transformou-se numa celebridade e, em 1982, tornou-se o primeiro índio a sentar na Câmara dos Deputados. Deu-se à bebida e morreu no anonimato em 2002.

Para felicidade geral, existem hoje internet e YouTube. O garoto Leandro dos Santos de Paula, que vive no conjunto Nelson Mandela, em Manguinhos, perto de uma área conhecida como "Faixa de Gaza", gravou em vídeo uma breve conversa com Lula e Sérgio Cabral durante uma visita dos dois ao bairro e tornou-se um Juruna 2.0.
Leandro queixou-se ao Nosso Guia de que na área esportiva da obra que os maganos visitavam não podia jogar tênis. Tomou a primeira, de Lula: "Isso é esporte da burguesia, porra". (Se Leandro tivesse o chassis de Serena Williams, ele não arriscava uma cortada dessas.) Na condição de pai dos pobres, aconselhou: "Por que você não faz natação?"

"Porque a gente não pode entrar na piscina." Por quê? "Porque não abre para a população."

Nosso Guia virou-se para o governador Sérgio Cabral e ensinou: "No dia em que a imprensa vier aqui e pegar um final de semana com essa porra fechada, o prejuízo político será infinitamente maior do que colocar dois guardas aqui".
Maravilha. A patuleia paga a piscina, não pode entrar, e Lula se preocupa com a possibilidade de a imprensa flagrar a cena. Sem imprensa, tudo bem. Ademais, o que ele teme é o "prejuízo político". O da Viúva é desprezível.

Leandro reclamou do barulho que o "Caveirão" (o blindado com que a PM demonstra sua força) faz à noite na sua rua. Entrou em cena o governador Sérgio Cabral, chamando Leandro de "otário" e "sacana". A intervenção de Cabral foi claramente intimidatória, mas o jovem não baixou a bola. Afinal, como no caso de Juruna, sua ação foi premeditada. Ele é freguês das comemorações triunfalistas do governador. À diferença do índio, ele faz o registro em vídeo.

Cabral sustenta que Leandro está sendo usado por interesses eleitorais. Engano. Foram ele e Nosso Guia que usaram a autoridade que a choldra lhes confere para desfilar vulgaridades, o resto é registro. Como diria o bandido Elias Maluco, "não esculacha". Em seu benefício, foi arrogante, mas não chamou Leandro para a briga, como fez Ciro Gomes em Tianguá, nem estapeou um eleitor em Campo Grande, como fez o governador André Puccinelli. (Nos dois casos, os doutores haviam sido chamados de "ladrão".)

Bem-aventurados os leandros desta vida, bem-aventurado o YouTube e glória eterna ao Juruna. O xavante, depois de eleito deputado, fez um discurso chamando todos os ministros do governo João Figueiredo de "ladrões". O general invocou os sentimentos do ministro do Exército e quis que o ministério o processasse: "Eu quero todos! Quem não fizer, eu demito!" Onze fizeram, e chegou-se a temer uma crise com o Congresso. Deu em nada. O Brasil tinha começado a melhorar.

ELIO GASPARI - Leandro e seu vídeo são o Juruna 2.0
Jornal o Globo de 11/08/2010