DE NOVO EM CHRISTMNSTER
Quando chegaram, a estação estava muito animada. Rapazes de chapéu de palha esperavam moças que com eles tinham notável semelhança e usavam alegres e claros vestidos de verão.
- O lugar parece alegre – disse Sue. – É o dia das Comemorações!... Judas... como você é esperto... Chegou neste dia de propósito!
- Cheguei – disse Judas calmamente, tomando o menino mais moço nos braços e recomendando ao filho de Arabela que não se afastasse deles, enquanto Sue tomava conta da menina mais velha.
- Pensei que pudéssemos chegar hoje, tão bem quanto em outro qualquer dia.
- Mas, tenho medo que isso deprima você! – disse Sue, olhando-o ansiosamente dos pés à cabeça.
- Ah! É preciso não deixar que isso interfira na nossa vida. Temos muito que fazer antes de nos instalarmos aqui. E, antes de mais nada, precisamos procurar alojamento.
Tendo deixado a bagagem e as ferramentas na estação, foram a pé pela rua que lhes era tão familiar, misturados com a multidão que seguia na mesma direção. Na esquina dos Quatros Caminhos, preparavam-se para tomar o lado onde havia probabilidades de encontrar o que procuravam, quando, olhando o relógio e a multidão que se apressava, Judas disse:
- Vamos ver a procissão. E não nos preocupemos com o alojamento. Cuidaremos disso depois.
- Você não acha que deveríamos primeiro tratar de arranjar um teto? – sugeriu Sue.
- Contudo, Judas estava com o espírito na comemoração. Desceram a rua principal, o bebê nos braços de Judas, Sue segurando pela mão a meninazinha, enquanto o filho de Arabela seguia silenciosamente ao lado deles, com ar pensativo. Grupos de meninas bonitas, usando vestidos leves, e grupos de pais ignorantes que não haviam cursado nenhum colégio em sua juventude, seguiam na mesma direção, ladeados por irmãos ou filhos, cujas expressões revelavam nitidamente a opinião de que nenhum ser digno do nome de homem tinha jamais vivido neste mundo antes deles o terem vindo adornar com suas presenças.
- Meu fracasso pesa sobre mim à vista de cada um desses jovens – disse Judas. – Uma lição sobre a presunção me esperava hoje aqui! É um dia de humilhação para mim!... Se você, minha querida Sue, não tivesse vindo em meu socorro, teria ido para o diabo, por desespero!
- Sue viu, pela expressão de Judas, que ele estava numa terrível disposição de espírito.
- Melhor seria que nos tivéssemos ocupado logo de nossos afazeres, querido – disse Sue. – Tenho certeza que esse espetáculo despertará em você velhas tristezas e não lhe fará nenhum bem.
- Bem, estamos perto, vamos cuidar disso agora – disse Judas.
Viraram à esquerda da igreja de pórtico italiano, cujas colunas torsas eram guarnecidas por trepadeiras, e continuaram até que chegaram diante do teatro circular onde se encontrava o famoso lanternim: símbolo, para Judas, das suas ambições abandonadas. Era ali que tinha contemplado a cidade dos Colégios, na tarde de sua grande meditação. Era aí que tinha ficado enfim convencido da futilidade de suas esperanças de ser um filho da Universidade.
Naquele dia, no espaço livre que se estendia entre esse monumento e o colégio mais próximo, comprimia-se, em expectativa, uma multidão numerosa. Uma passagem havia sido reservada, no centro, entre a porta do colégio e a do grande edifício do teatro.
- É aqui o lugar. Vão passar já – gritou Judas de repente, muito excitado. Forçando caminho, chegou até a grade, tendo sempre o menino nos braços. Sue e as outras crianças o seguiam. A multidão se fechou atrás deles, conversando, brincando, rindo, enquanto os carros, um após outro, paravam diante da pequena porta do colégio e deles desciam personagens solenes, vestidos de vermelho cor de sangue.
O céu se tornara nublado e lívido e, de quando em quando. Ouvia-se o trovão.
O Pequeno Pai do Tempo teve um arrepio.
- Dir-se-ia o dia do julgamento final – murmurou ele.
- São apenas eruditos Doutores – Disse Sue.
Enquanto esperavam, grandes pingos de chuva caíam sobre suas cabeças e ombros. A espera se tornava enfadonha e Sue pediu mais uma vez para partir.
- Não tardará muito, agora – respondeu Judas, sem voltar a cabeça.
Contudo, a procissão continuava a não aparecer e alguém, na multidão, para passar o tempo, olhando a fachada do colégio mais próximo, disse que gostaria de saber o que queriam dizer com a inscrição latina que se encontrava no meio da parede. Judas, que estava perto, explicou. E percebendo que todos à volta dele o ouviam com interesse, começou a descrever as esculturas da frisa e a comentar alguns detalhes de arquitetura dos outros colégios da cidade.
A multidão de desocupados, inclusive os dois policiais que guardavam as portas, arregalavam os olhos, tal como os Licaonianos diante de S. Paulo, posto que Judas facilmente se entusiasmava com qualquer assunto. Pareciam admirados pelo fato daquele estrangeiro conhecer melhor que eles os edifícios da cidade. Por fim, um deles disse:
- Mas, eu conheço esse homem. Trabalhava aqui há muitos anos. Seu nome é Judas Fawley. Vocês não se lembram que lhe tinham dado o apelido de Pregador dos Miseráveis? Não se lembram? Tinha idéias nesse sentido. Ao que suponho, está casado e é o filho que carrega nos braços. Taylor o reconhecerá, ele que conhece todo mundo.
Quem falava era um homem que se chamava Jack Stagg. Tinha trabalhado com Judas, restaurando colégios antigos. Tinker Taylor estava por perto. Essas palavras atraíram sua atenção. Gritou por cima da grade:
- Sentimos-nos muito honrados em recebê-lo, meu amigo! Judas fez um sinal com a cabeça.
- Você não parece ter lucrado muito saindo daqui, não? Judas teve um gesto de assentimento.
- A não ser novas bocas para nutrir. – Isso foi dito por uma nova voz que Judas reconheceu como a do Tio Joe, um outro pedreiro de que se lembrava.
Retrucou com bom humor que não podia dizer o contrário. E, de réplica, estabeleceu-se uma conversa geral entre ele a multidão. Tinker Taylor lhe perguntou se se lembrava de uma noite, no “cabaret”, durante a qual tinha sido desafiado a recitar o Credo em latim.
- Mas a fortuna não se encontrava no seu caminho, não? – interveio Joe. – Você não era bastante forte para chegar ao fim, não?
- Não responda mais nada – suplicou Sue.
- Acho que não gosto de Christminster – murmurou tristemente o Pequeno Pai do Tempo, invisível e abafado pela multidão circunvizinhante.
Sentido-se alvo de toda aquela gente curiosa, Judas não se achava disposto a recuar diante de uma declaração franca de que não tinha a menor razão de se sentir envergonhado. E, pouco depois, sentiu-se impelido a dizer, com voz forte aos que o escutavam:
- é um problema difícil, amigos, para todos os jovens... problemas aos quais me atirei e sobre os quais milhares de outros refletem atualmente, nestes tempos novos. Deve cada um seguir cegamente o caminho em que se acha, sem considerar seus dotes pessoais, ou deve, pelo contrário, pesar as aptidões, as preferências que possa ter, e mudar a direção de sua vida? Foi o que tentei fazer e fracassei. Mas, não admito que o meu fracasso valha como prova de que estava errado, do mesmo modo como não admitiria que o sucesso justificasse o bem-fundado do meu ponto de vista. E é assim, entretanto, que, muitas vezes, julgamos os esforços, não pelo seu valor essencial, mas pelo seu resultado acidental. Se me tivesse tornado um desses senhores vestidos de vermelho e preto que estamos vendo descer, ali, todos diriam: “vejam como este homem agiu sabiamente, seguindo o pendor de sua natureza!” Mas, não tendo acabado melhor do que comecei, dizem: “Vejam como este homem agiu estupidamente, seguindo um capricho de sua imaginação!” No Entanto, foi minha pobreza e não a minha vontade que determinou a minha derrota. São precisas duas ou três gerações para fazer o que eu tentei fazer em uma só. Meus instintos, minhas paixões, talvez devesse dizer: meus vícios, eram fortes demais para não obstruir o caminho de um homem sem recursos. Precisaria ter um sangue de peixe e um egoísmo de porco para ter realmente uma probabilidade de me tornar um homem importante! Vocês podem me ridicularizar – permito que o façam. – Presto-me bem a isso, não há dúvida. Mas, creio que se soubessem de tudo por que passei, nesses últimos anos, vocês teriam, antes pena de mim. E se eles soubessem – indicava com um gesto de cabeça o colégio onde Doutores estavam chegando – fariam possivelmente o mesmo.
- Realmente ele tem um ar doente e exausto – disse uma mulher.
O rosto de Sue exprimia a sua emoção. Mas embora estivesse ao lado de Judas, ficava escondida por ele.
- Talvez eu seja útil, antes de morrer, como um terrível exemplo do que não se deve fazer, uma espécie de ilustração de uma história edificante – continuou Judas, não sem certo amargor, se bem que tivesse começado da falar com serenidade. – Não sou, afinal de contas, senão uma desprezível vítima desse espírito de inquietude moral e social que faz tantos desgraçados na nossa época.
- Não lhes diga isso – murmurou Sue, com lágrimas nos olhos, compreendendo o estado de espírito de Judas – Não é isso o que você é. Você lutou nobremente para se instruir e só almas muito baixas poderiam censurar isso.
Judas mudou a criança para uma posição mais cômoda, nos braços, e conclui:
- E o que vocês vêem, um homem pobre e doente, não é o que há de pior em mim. Estou num caos moral. Procurando às apalpadelas, no escuro. Agindo por instinto e sem modelo algum. Há oito ou nove anos atrás, quando aqui vim pela primeira vez, tinha um perfeito estoque de opiniões estabelecidas, que foram caindo, uma a uma. E, quanto mais caminho menos me sinto seguro. Pergunto-me se, presentemente, tenho outra regra de vida a não ser a de seguir pendores que não sejam nocivos nem a mim nem aos outros, e fazer prazer às pessoas de quem gosto. Aí está, senhores: queríeis saber o que eu me tinha tornado, disso tudo. Possa isso vos ser útil! Não posso me explicar mais longamente, aqui. Percebo que deve haver qualquer coisa de errado nas nossas fórmulas sociais: para descobri-lo, haveria necessidade de homens ou mulheres mais clarividentes do que eu – se é que alguém o possa fazer, em nossos dias. Porque quem é que sabe o que é bom para o homem neste mundo? E quem pode dizer a um homem o que haverá, depois dele, debaixo do sol?
- Escutem, escutem! – gritava o povo.
- Bom sermão! – disse Tinker Taylor. E, dirigindo-se a seus vizinhos:
- Certamente que um desses pastores que andam por toda a parte, oficiando quando os Reverendos estão de férias, não teria discursado sobre tantas questões de doutrina por menos de uma guinea. Não acham? Aposto que nenhum! E ainda, teriam tido de preparar o sermão. E, no entanto, ele não é senão um operário!
Como uma espécie de comentário objetivo ao discurso de Judas, chegou neste momento, um carro conduzindo um Doutor, pomposamente vestido e ofegante. Como o cavalo não parasse no lugar oportuno, saltou do carro e caminhou até o Colégio. O cocheiro pulou no chão e pôs-se da dar ponta-pés na barriga do animal.
- Se se pode fazer isso no portão de um Colégio – disse Judas – na própria cidade da Religião e da Instrução, quem poderá dizer até que ponto chegamos.
- Silêncio! – disse um dos policiais que, junto com seu companheiro, acabara de abrir as duas grandes portas defrontes ao colégio – cale-se, homem, durante o desfile do cortejo.
A chuva começou a cair com mais força, e todos os que tinham guarda-chuvas, os abriram. Judas não possuía nenhum e Sue, apenas um pequeno guarda-sol. Esta última tinha empalidecido muito, sem que Judas o tivesse notado.
- Partamos, Judas querido – murmurou, tentando abrigá-lo. – Não temos ainda alojamento e todas as nossas coisas estão na estação. De mais a mais, você está todo molhado, tenho medo que fique doente!
- Estão chegando, agora. Só um momento e, depois, iremos embora – disse.
Um carrilhão de seis sinos começou a tocar, cabeças aparecem em todas as janelas e o cortejo dos Provedores e dos novos Doutores começou a desfilar. Suas silhuetas, vestidas de preto e vermelho, passavam no campo de visão de Judas como planetas inacessíveis diante de uma objetiva.
A medida que desfilavam, pessoas bem informadas iam dizendo-lhes os nomes, e, quando atingiram o velho teatro circular de Wren, levantaram-se vivas aclamações.
- vamos até lá! – exclamou Judas.
Chovia agora torrencialmente, mas ele parecia não perceber nada e arrastava os seus para o lado do teatro. Ficaram ali, em pé sobre a palha que tinha sido posta para abafar o ranger das rodas. Os bustos de pedra, pálidos e estranhos, corroídos pelas geadas, pareciam contemplar a cerimônia e olhar particularmente Judas, Sue e as crianças, encharcadas, como se fossem personagens grotescas que nada tivessem que fazer ali.
Queria tanto entrar! – disse Judas com fervor. – Espere: daqui posso ouvir algumas palavras do discurso em latim: as janelas estão abertas.
Todavia, com o barulho do órgão, os gritos e as hurras que acompanhavam cada discurso, Judas, molhado, não pode ouvir grande coisa. Mal distinguia, de vez em quando, uma palavra sonora terminada em um ou ibus.
- Ah! Ficarei sempre de fora, até o fim de minha vida! – disse, por fim suspirando.
THOMAS HARDY – JUDAS, O OBSCURO – ED. ITATIAIA, 1958, PAG. 319-325
Um comentário:
ficou o gosto de quero mais...
bjs
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