"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

02 outubro 2006

CLARICE – UMA APRENDIZAGEM OU O LIVROS DOS PRAZERES

Há alguns anos, aprendi que o texto literário é composto de camadas. Num primeiro plano ele se apresenta de uma forma. A medida que o depuramos, cada uma de suas camadas vão se definindo e assim, descobrimos um mundo de significados e a sua essência.
No caso do livro "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", de Clarice Lispector, é um bom exemplo, em que se é possível confirmar o perfil estratificado do texto literário.
Em sua primeira camada, o livro é chato, artificial, meio que auto ajuda (o próprio título do livro – uma aprendizagem), seu conteúdo filosófico não poderia ser pior, sem falar na forma como o personagem Ulisses, tenta moldar o comportamento de Lory, para que ela aprenda a amar, ficando desta forma, uma mulher criada para ele. Na leitura imediata do livro, fiquei sem entender como uma escritora no nível de Clarice pôde escrever algo tão esquisito.
Porém, no aprofundamento de suas camadas, percebemos que o livro é uma obra prima, uma jóia cuidadosamente lapidada. Ela fez, por meio da literatura, um excelente tratado sobre a linguagem. Foi uma das discípulas que escreveu as aulas do famoso lingüista Saussure, de maneira magistral.
Pois, existe coisa mais artificial e chata, que a língua expressa obedecendo todos os padrões lingüísticos da forma culta. Sem nenhum deslize, com todos os pontos, conjugações e concordâncias perfeitas. Um exemplo é o Marco Aurélio de Melo (Ministro do Supremo Tribunal Federal) falando. No início, fica-se encantado com o seu discurso, no entanto depois de algum tempo, vai nos entediando com a sua perfeição no uso do vernáculo. A Clarice concretizou isso, na construção do personagem Ulisses, o homem perfeito. Em grau tão elevado, que o tornou artificial, não humano. Desta forma, Ulisses é a língua, um amontoado de códigos gráficos e fônicos que nada têm haver com o referente, ou seja com aquilo que consideramos realidade. A língua, é abstração pura, no universo humano, é Deus, pois Ele não passa disto. É claro que Ulisses não é a língua do povo, bagunçada, criativa, cheia de distorções gramaticais, gírias, modismos, mas sim, a da academia, manipulada pelos deuses do olímpo.
Não é a toa que o seu personagem, seja um professor universitário de filosofia, homem maduro, culto, de alma marcada pelas cicatrizes da vida de que conseguiu superá-las, que escolhe uma mulher professora primária, imatura, sexualmente quase selvagem, infantil, para prepará-la para o amor. Lory é oposto de Ulisses. E para conhecer este outro extremo, ele sugere que ela escreva-lhe, tudo o que gostaria de dizer-lhe e que a falta coragem, porém, quando ela tenta relatar os seus sentimentos, tem medo do que poderá revelar. Escolhe as palavras, mas as palavras são insuficientes para que possa relatar os seus sentimentos, tenta desistir do que escreve e dele, mas não consegue. Parece não querer transformar no que ele deseja, no entanto segue em frente no relacionamento, acreditando que os seus encantos, a sua sensualidade sejam mais forte e possa seduzi-lo, sem ser preciso passar pela transformação a que ele exige: de que ela esteja pronta para ele, para amar. Portanto, este conflito entre eles, não aparece de forma gratuita, visto que no discurso entre pessoas, que não falam a mesma língua, não têm o mesmo padrão lingüistico, uma terá que ceder, e ajustar-se à língua do outro. Desta forma, uma relação de poder se estabelece e no caso desses dois personagens, Ulisses propõe a descer até a primariedade de Lory, mas para que ela consiga elevar-se, desenvolver-se, para que seja possível haver uma comunicações entre eles, ajustada a sua linguagem aprimorada, para paradoxalmente, a uma definição de amor dada por um brilhante professor de literatura, "amar é descer até objeto abjeto para amá-lo e compreendê-lo, porém Ulisses desce até o objeto não para compreendê-lo e amá-lo, mas para ajustá-lo aos seus padrões. A aprendizagem dos preceitos culturais é isso, um ajustamento dos instintos.
Logo, as camadas deste romance são diversas, apenas tentei abordar uma delas. A literatura é livre para a hermenêutica. Sem dizer que a própria autora, no título, deixa livre a interpretação ao dar dois títulos para o livro: "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres".

4 comentários:

Anônimo disse...

Eu nunca li esse romance. Não sei se é uma obra-prima, nem possso falar. Mas, de qualquer modo, é uma análise interessante. E parabéns pelo blog! Não o conhecia.

Anônimo disse...

O livro é maravilhoso. E mais marvilhosa ainda é o jeito que Clarice começa e termina o livro. Porque afinal a aprendizagem é contínua, não tem um início próprio e nem um fim.
E aprender, meu amigo, é um prazer sem tamanho!

Minha obra preferida dela. Com certeza!

Bjs!

"Ser" disse...

Estudo na Universidade Estadual da Bahia.
Acabei de ler essa obra de Clarice, para fazer meu seminário final, estou trabalhando neste artigo, com intuito de abordar a temática "A ruptura da linguagem na construção do amor" em uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Me apaixonei por essa história, e principalmente pela maneira em que ela foi escrita por Clarice, que trouxe essa ruptura das normal padronizadas da linguagem.
Parebéns pelo seu blog adorei!
Bjos da uma passadinha no meu...

Juliana Pacheco

Unknown disse...

Adorei o blog! Vou trabalhar esse livro no meu TCC, mais precisamente a construção de Lóri. bjo!!