Encontro-me em um quarto de Paris, melancólico e sentindo reflorescer em mim a vida que vivo, e a que poderia tervivido. Sinto em meu ser a ternura lusa, de um pobre homem de Póvoa de Varzim, que muito ironizou a sua pátria por amá-la e melhor dela querer. Tudo em mim é lusitano. Vejo que consegui transmitir e me libertar desses sentimentos em meu romance, que há pouco terminei. Nele derramei liricamente os valores portugueses essenciais: o homem, as paisagens, a história, a quinta, a freguesia e a aldeia, mas sempre fui um crítico mordaz, caricaturando os ridículos de uma sociedade presa a valores rurais que ansiavam pelos urbanas criados pela revolução industrial.
Tive uma infância turbulenta. O meu nascimento se deu em circunstância irregular, pois os meus pais ainda não eram casados, obrigando-me a passar a infância e a adolescência afastado deles. Fui registrado como filho de mãe incógnita, uma ave sem ninho. Vivi com a minha ama de leite e, após a sua morte, com meus avós paternos. A falta de afeto, amparo e carinho, na qual meu ser mergulhou, aguçou a minha sensibilidade, caminhando no tempo da vida com a alma ferida, protegendo-me com arraigada timidez, como um caramujo se defendendo, fazendo com que, a partir da adolescência, eu criasse mundos e personagens, impedindo o retorno a minha infância, que tanto procurei esquecer e sobre a qual sempre silenciei. Lembro-me de uma de minhas confissões da infância, uma artigo sobre o "francesismo", onde digo: "apenas nasci, apenas dei os primeiros passos, ainda com sapatinhos de crochê, eu comecei a respirar a França. Em torno de mim só havia a França. A minha mais remota recordação é de escutar, nos joelhos dum velho escudeiro preto, grande leitor de literatura de cordel, as histórias que me contava de Carlos Magno e dos Doze Pares... Também o meu preto lia contos tristes das águas do mar. Eram as aventuras de um João de Calais". Depois desse artigo, quase que não fiz outra coisa pela a vida afora, a não ser escrever. "As abelhas só sabem fazer mel, e eu só sei fazer romances".
Parece tão recente o lançamento na Revista Ocidental do Romance O Crime do Padre Amaro e, logo depois, em livro sua primeira versão. A primeira edição não era O Padre Amaro que eu trouxera do ventre. Após as diversas revisões, passou a ser uma obra nova, a minha melhor obra. Na gestação cheguei a escrever a um amigo, antigo confidente, Ramalho Ortigão, dizendo-lhe como concebi o livro em uma tarde, na casa de uma senhora que tocava uma gavota, quando de repente flamejou-me, através da idéia, todo o livro, chegando à minha mente com um escândalo no país, um romance que punha a nu a fraqueza, a anarquia , a covardia em que mergulharia Portugal em conseqüência de maus governos. Queria com o livro dar um choque elétrico ao porco adormecido (refiro-me à Pátria). Além do mais é um romance que fala da vida da pequena vila devota, o grupo de padres e beatas da casa S. Joaneira, o mundo grotesco que se agita em torno da velha Sé. Uma história dum sortido amor sacrílego, entre um sacerdote e uma rapariga educada numa atmosfera de beatice e lassidão moral. Este romance inaugura o realismo em Portugal.
Acredito que renasço em meus romances. A vida é feita de perdas sucessivas, e cada dia morre alguma coisa de nós mesmos, ou, o que vem a ser o mesmo, algum dos que amamos. Houve uma época que escrevi em um álbum no qual já haviam colaborado Guerra Junqueira e o Oliveira Martins. A vida, eis o mote. Reflexo da alma: O amigo Oliveira Martins diz que a vida é um sonho; o amigo Guerra Junqueira diz que é um punhado de areia. Se é sonho, é o único que vale a pena sonhar; se é areia, é a única com que vale a pena edificar.
Antes da minha transferência para o consulado de Bristol, lancei o meu romance O Primo Basílico, a bomba literária e moral que explodiu na terra lusa ou o escândalo branco. Os críticos conservavam sobre mim um silêncio desdenhoso, mais aos poucos foram quebrando o gelo, catalogando como obscena e imoral uma obra realista ou naturalista. Tive nele a capacidade de plasmar fielmente em poucos traços uma realidade observada, lamentando-me por não poder conseguir a nota sublime da realidade eterna nem a nota justa da realidade transitória . Uma síntese instantânea do enredo: É uma mulher que tem uma amante, que é espreitada e seguida por uma criada – a qual se apodera das provas do adultério e estabelece uma tirania de todos os instantes sobre a ama: tirania longa, cruel, horrorosa, um verdadeiro drama íntimo. Sendo o assunto costume contemporâneos – não da província desta vez – mas de Lisboa. É um trabalho realista – talvez um pouco violento e cru, ma não foi para fazer dele uma leitura de serão nos colégios que o escrevi. O romance, esse é a apoteose do adultério, na estuda, nada explica, não pinta caracteres, não senha temperamentos, não analisa paixões. Não tem psicologia, nem ação.
Embora este fosse um livro que eu tivesse pressa em concluir, não perdi nele o habito das alterações, pois, confesso, é quase impossível para um escritor não fazer alterações nas provas, quando ao reler um trabalho impresso se vê uma palavra ou uma frase falsa – é absurdo não substituir, bem assim, é absurdo não introduzir ou alterar quando acode uma palavra ou uma frase de mais efeito. Isto acontece sempre, desde que se imprimem livros. É uma eterna insatisfação, busca da perfeição, uma ânsia de dar à língua uma forma nova, simples, na qual a nitidez do pensamento corresponde à beleza da frase. Até na capa vivi o escritor, uma capa bonita – é essencial num livro – como um vestido uma mulher. Foi um livro que me deu um trabalho dos demônios. Eu não sou gênio e trabalho devagar: talvez não acreditam, mas cada folha da revisão do "Primo" levou-me de dois a três dias, mas no dia vinte e um de fevereiro de mil oitocentos e setenta e oito O Primo Basílico foi posta a venda em Lisboa.
Estava ávido por conhecer a repercussão do livro. Ramalho escreverá com franqueza sobre o romance: "As cenas d’alcova são reproduzidas na sua nudez mais impudica e mais asquerosa. Este livro concebido com amargura e com misantropia deixa no espírito de quem lê uma triste impressão de melancolia e desalento" . Meu velho pai José Maria também externou as suas observações sobre o romance: "No ponto de vista da escola realista que te domina, o romance é uma obra d’arte perfeita. Entretanto eu creio que, mesmo nessa escola, há um ponto além do qual não é permitido, ou pelo menos não é conveniente passar. Pode mostrar-se a chaga, e o realismo está nisso; mostrar, porém, toda a podridão não dá mais caráter à escola realista, e leva ao exagero, que é um defeito de todo o gênero de composição. De resto deixa falar, ou não falar os invejosos, e vai por diante. Recomendo-te só que em tudo o que escreveres evites descrições que senhoras não possam ler sem corar".
Passei um bom tempo justificando e explicando o ataque à família lisboeta: Um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a que conhece a burguesia de Lisboa; - A senhora sentimental , mal educada, nem espiritual (porque o cristianismo já o não tem; sanção moral da justiça, não sabe o que isso é) arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc, etc; - enfim uma burguesia da baixa... Uma sociedade sobre estas falsas bases, não esta na verdade: atacá-las é um dever. E neste ponto O Primo Basílico não está inteiramente fora da arte revolucionária, creio. Pois analisei a vida social enfocando a constituição moral da família na burguesia média da capital. Oferecendo uma crua visão da realidade, à qual o público não estava acostumado, e que foi objeto de ataque e viva controvérsia. Aparecem folhetos que avisavam as mães dos perigos para a moral existente na nova arte.
Minha evolução foi lenta, harmoniosa, intensa. A disciplina férrea da observação aquietava a minha fantasia e serenava a minha forma. Conquistando a minha maneira inconfundível, sugestiva e irônica, síntese consciente dos dois pendores contraditórios de minha alma: O impulso atávico do meu temperamento para a livre imaginação, o lirismo e a eloquência, dum lado; e do outro a minha tendência, adquirida pela educação positivista à qual me submeti, para uma percepção clara e imediata dos elementos objetivos da realidade e o desejo de exatidão na expressão deles, sem desdenhar, ou mesmo procurando-lhes os aspectos prosaicos, feios ou baixos. O resultado do meu esforço para resolver essa dicotomia interna é um estilo específico de romance em que entram numa peculiar fórmula de fusão, o solto vôo da fantasia romântica e a insubordinável probidade realista. Iniciei esta nova estética em O Mandarim, deliciosa novela fantástica, cujo prólogo, destinado a uma versão francesa, é uma irônica auto-análise literária. Um conto fantasia e fantástico , onde se vê, ainda como nos bons velhos tempos, aparecer o diabo, embora em redingote, e onde ainda há fantasmas, embora com boas intenções psicológicas. Espíritos assim formados devem afastar-se necessariamente de quanto seja realidade, análise, experimentação, certeza objetiva. O que os atraí é a fantasia, sob todas as suas formas, desde a canção até a caricatura, também em arte, nós produzimos principalmente líricos e satíricos. Eis porque, mesmo depois do naturalismo, ainda escrevemos contos fantásticos, autênticos, desses onde há fantasmas e onde se encontra, no canto das páginas, o diabo, o amigo diabo, esse delicioso terror da nossa infância católica.
Depois de uma longa gestação conclui Os Maias, neste romance, estendi o meu campo visual à alta sociedade., tardiamente romântica. Servindo de fundo um caso de incesto., pinta-se em quadros cheios e movimentados a vida das alta esferas da política, do governo, da aristocracia, das finanças e da literatura, observada com ironia cruelmente escrupulosa. Também, não podia evitar, neste romance, minhas purificações nas águas lustrais da geografia poética e exótica, Não encontrei para o herói do livro e mesmo para mim, melhor purificações do que a viagem a mundos distantes do planeta, através de geografias das antigas civilizações.
Lembro-me de minhas confidências sobre o romance, ao querido Joaquim Pedro, dizia-lhe: "saíram uma cousa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas, há episódios bastantes toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos demais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio; a cena no jornal "A Tarde"; e, sobretudo, o sarau literário". Mesmo sendo idealizado há mais de dez anos , o livro atingiu alentadas proporções.
Os Maias movimentaram e dividiram a crítica, não podendo eu me queixar do silêncio. Dentre as apreciações sobre o romance, a que mais me agradou foi a de Silva Gaio, era como se dissera serem Os Maias uma caricatura da sociedade portuguesa. Ele fizera está observação:" são realmente, em mais de um ponto de vista. Mas, dá-se com está sociedade o que se dá com alguns indivíduos: são já de si tão caricatos, que o lápis irreverente nada mais fez do que dar-lhes a atitude que lhes convém, a expressão última definitiva do que eles são".
Até o momento Os Maias é o meu último livro impresso. Sendo ele um desfile da multidão de personagens, imortais. Desde Maria Eduarda e Carlos da Mais, protagonistas principais, ao lado de cujas dolorosas existências passam o grotesco Conde Gouvarinho, Damasco salcede, o poeta Alencar, o sarcástico João de Ega até o bom e inditoso Afonso da Maia, o senhor do Ramalhete. Creio hoje que fui recompensado pelos dez anos consumidos. Os Maias conseguiram se edificar sobre as rochas.
Apesar de minha má saúde, escrever estas palavras me faz peregrinar em minha vida agravando a minha melancolia. Pois sou um doente que não conhece cama e Paris é ainda o sítio em que bate mais largamente o coração da humanidade. Como uma borboleta à morte adeja sobre minha cabeça. Meu corpo se encontra esguio e curvo, tomando aparências esqueléticas, meus nervos se encontram eletrizados e vibráteis, mesmo assim me movo, agito-me alegremente, na maior parte do tempo tenho uma atitude de exaustão. Às vezes me brotam observações argutas, ditos mordazes, anedotas hilariantes. Depois a prostração, o letargo de dias e dias, em que não me agrada ver pessoa alguma, esta solidão que me povoa de pensamentos dolorosos. Meu trabalho agora se assemelha a uma tortura mental e não a uma criação como antes, quando era feito em pleno gozo, na tentativa de tornar meus romances uma obra de arte.
A propósito, A Casa de Ramires está péssimo, um horror, espero que ninguém leia. Sei que sou um eterno insatisfeito, Ramires, Fradique e o Jacinto d’A Cidade e as Serras não terminarão as suas jornadas.
Oh! Minha Lisboa, você sempre foi o meu laboratório de arte, o meu material de estudo, a minha crítica preocupação, o meu mundo de escritor. Sou a chaga dessa sociedade decadente, que tentei salvar expondo-a a luz ou fustigando-a com o estilete da ironia. Na realidade, eu te amo, minha querida Lisboa. Orgulho-me do pobre homem de Póvoa de Varzim. Como esquecer os velhos tempos? – o cenáculo, o Chiado, a Casa Havanesa, o Hotel Bragança, os Vencidos da Vida. Às vezes a vejo mesquinha. Talvez seja o tédio. E voltar a ti é o meu sonho, Lisboa.
Sinto-me exausto. E creio que estou imerso na única dança que dançamos. Hoje são quinze de agosto de mil e novecentos, entretanto, não tenho esperança, o romance o qual todos somos obrigados a viver, para mim está no último capítulo. Minha alma transborda as últimas palavras que ainda pedem movimento. Mas o meu instinto insiste em que tudo ao meu redor vai acabar, desaparecendo gentes, bichos, arvores, jardins, casas, órfãs, pianistas, histórias, cadernos – o que pode restar da história de um romancista ou de um louco? Não mais a vontade de glória (mas que glória?) ou de poder (mas que poder?). Apenas o instinto de permanecer através da idéia, da palavra – desafio à morte. Obsessão de infinito da nossa finitude, exigência maior do criador. A morte não é difícil. Difícil é a vida e o seu ofício.
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