"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

04 outubro 2021

Entre “Je sui Charlie” e “Je sui Karl”!

A frase "Je suis Charlie" ("Eu sou Charlie") transformou-se em um sinal comum, em todo o mundo, de prestar solidariedade contra os ataques e para a liberdade de expressão, após o Massacre do Charlie Hebdo. Um atentado terrorista que atingiu o jornal satírico francês Charlie Hebdo em 7 de janeiro de 2015, em Paris, resultando em doze pessoas mortas e cinco feridas gravemente. O ataque foi perpetrado pelos irmãos Saïd e Chérif Kouachi supostamente como forma de protesto contra a edição do Charlie Hebdo, que ocasionou polêmica no mundo islâmico e foi recebida como um insulto aos muçulmanos.

Pois bem, qual a relação dessa expressão “Je sui Charlie” com o filme alemão “Je sui Karl”?  A linha em que são tecidas as duas narrativas são a mesma. O terrorismo de tipo nacionalista, físico e psicológico (Je sui Karl) x terrorismo religioso (Je sui Charlie), o fanatismo, o aliciamento de pessoas e o espetáculo da barbárie.

A arte antecipa a vida? Até que ponto da nossa trama social atual deixaremos nos nortear por discursos exacerbadamente manipuladores, com uma mistura de ideias desconexas e retrógradas e, com mitos salvadores. Em muitos países já estamos sendo guiados cegamente por eles, como no quadro de Bruegel, o velho, nas Parábolas dos Cegos.   

Voltando ao filme, enquanto o algoz Karl coloca uma bomba no prédio de Maxi para dar evidência política às ideias deturpadas da supremacia europeia, visando culpar os imigrantes dessa ação; ele sem qualquer pudor, ainda alicia Maxi ao seu grupo. Usa seu luto e seu desespero para galgar mais fanáticos e manipulados.  

A película “Je sui Karl” é o descortinamento peculiar da ética ocidental. Vale até o s
uicídio (com aparência de assassinato, também, para parecer impetrados por imigrantes) em prol do espetáculo da barbárie e da conquista do poder pela supremacia dos jovens europeus.

Outro detalhe do filme, são cenas de imigrantes sendo caçados com fuzis pelos jovens de ideias nazifascistas como bichos (olhem que até bichos, já são proibidas as caças em alguns lugares) é algo ainda por vir? Lembrando, que os imigrantes que hoje ocupam o continente europeu é fruto, entre outras mazelas, do colonialismo e imperialismo europeu.

Então diante de tal quadro, só nos resta a esperança da luz no final do túnel, da qual fecha as cortinas do filme e, neste caso, esse símbolo “Não é motor de tudo e nossa única/fonte de luz, na luz de sua túnica?” – (Drummond); e do canto que “Foi um caso sem comparação. A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A, gente, com ele, iaaté aonde que ia aquela cantiga – (Guimarães Rosa). A luz no final do túnel e o canto são capazes de amenizar o medo, na difícil e escura caminhada das 3 vítimas símbolos do filme e da nossa.

29 março 2021

A saga de um tal de “João de Santo Cristo” em Berlin Alexanderplatz

E um dos selecionados ao Óscar de minha filmografia íntima de 2021 é “Berlin Alexanderplatz”. Originalmente é um romance, adaptado para uma série de TV por Rainer Werner Fassbinder e, depois, reduzido a um magnífico filme de Burhan Qurbani, o que cito.


Arte é forma e não conteúdo. E é pela sua forma que se torna acessível a todos e com matizes e camadas de explorações diversas. E, esse é o caso de “Berlin Alexanderplatz”. Filme que poderá ser visto diversas vezes e por públicos múltiplos.

Quem conhece Berlim, com certeza, passou por essa praça que dá nome ao filme. E onde uma grande parte do enredo ocorre em seus arredores.

O filme fala de um refugiado sem pátria e negro sobrevivendo na cidade de Berlim. Então, como não dará para explanar tudo aqui sobre o filme. Irei apenas citar os tópicos que me fizeram eleger ele, o FILME:
✔ Um refugiado perde a sua identidade, a sua raiz (ele teve diversos nomes e o último que consegue, e se jubila por tê-lo, por ser o suposto passaporte para a sua liberdade em território alemão, tem o sobrenome de macaco dado a ele por um branco alemão).
✔A exploração do trabalho escravo de refugiados ilegais em pleno centro político da Alemanha. Esse é um tema da qual exala em mim o “homem revoltado” de Camus. Aqui, temos por exemplo, mas só exemplo, pois são inúmeras as formas de escravidão que usamos modernamente nessas terras e são consideradas legitimas, o favor, que vem como forma de explorar o trabalho alheio não renumerado. Entretanto, esse é um tema para outras postagens.
✔Fora da escravidão regulamentada pelo Estado moral, sobra a opção da prostituição e o aliciamento ao universo do tráfico de entorpecentes. Tão degradante quanto a anterior.
✔ O projeto de ser um homem bom, num ambiente da “insustentável leveza do ser” ou mesmo, da dificuldade que temos na existência de “Separar o joio do trigo” na esfera do bom e do mau. Como muito bem reflete Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, sobre a figuração do mal e do maligno na figura de Hermógenes, o bem e o mal estão misturados na mesmo ser, mesmo naqueles seres mais perversos.
E o Hermógenes do filme é Reinhold Hoffmann. O ator se esmerou para fazer esse personagem.
✔ E o filme explora outros temas, como o encontro, a esperança, o reinício a cada novo ciclo dessa montanha russa que é existir. E sem hipocrisia! Na sobrevivência no meio deste vale de lágrimas, falar de filosofias é uma coisa, viver de verdade são outros 500. Se quer entender do que estou falando, veja outro filme “O poço” ou a série “Expresso do Amanhã”.

“E João não conseguiu o que queria
Quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente
Pra ajudar toda essa gente que só faz
Sofrer” (Legião Urbana - Faroeste Caboclo)