"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

04 outubro 2021

Entre “Je sui Charlie” e “Je sui Karl”!

A frase "Je suis Charlie" ("Eu sou Charlie") transformou-se em um sinal comum, em todo o mundo, de prestar solidariedade contra os ataques e para a liberdade de expressão, após o Massacre do Charlie Hebdo. Um atentado terrorista que atingiu o jornal satírico francês Charlie Hebdo em 7 de janeiro de 2015, em Paris, resultando em doze pessoas mortas e cinco feridas gravemente. O ataque foi perpetrado pelos irmãos Saïd e Chérif Kouachi supostamente como forma de protesto contra a edição do Charlie Hebdo, que ocasionou polêmica no mundo islâmico e foi recebida como um insulto aos muçulmanos.

Pois bem, qual a relação dessa expressão “Je sui Charlie” com o filme alemão “Je sui Karl”?  A linha em que são tecidas as duas narrativas são a mesma. O terrorismo de tipo nacionalista, físico e psicológico (Je sui Karl) x terrorismo religioso (Je sui Charlie), o fanatismo, o aliciamento de pessoas e o espetáculo da barbárie.

A arte antecipa a vida? Até que ponto da nossa trama social atual deixaremos nos nortear por discursos exacerbadamente manipuladores, com uma mistura de ideias desconexas e retrógradas e, com mitos salvadores. Em muitos países já estamos sendo guiados cegamente por eles, como no quadro de Bruegel, o velho, nas Parábolas dos Cegos.   

Voltando ao filme, enquanto o algoz Karl coloca uma bomba no prédio de Maxi para dar evidência política às ideias deturpadas da supremacia europeia, visando culpar os imigrantes dessa ação; ele sem qualquer pudor, ainda alicia Maxi ao seu grupo. Usa seu luto e seu desespero para galgar mais fanáticos e manipulados.  

A película “Je sui Karl” é o descortinamento peculiar da ética ocidental. Vale até o s
uicídio (com aparência de assassinato, também, para parecer impetrados por imigrantes) em prol do espetáculo da barbárie e da conquista do poder pela supremacia dos jovens europeus.

Outro detalhe do filme, são cenas de imigrantes sendo caçados com fuzis pelos jovens de ideias nazifascistas como bichos (olhem que até bichos, já são proibidas as caças em alguns lugares) é algo ainda por vir? Lembrando, que os imigrantes que hoje ocupam o continente europeu é fruto, entre outras mazelas, do colonialismo e imperialismo europeu.

Então diante de tal quadro, só nos resta a esperança da luz no final do túnel, da qual fecha as cortinas do filme e, neste caso, esse símbolo “Não é motor de tudo e nossa única/fonte de luz, na luz de sua túnica?” – (Drummond); e do canto que “Foi um caso sem comparação. A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A, gente, com ele, iaaté aonde que ia aquela cantiga – (Guimarães Rosa). A luz no final do túnel e o canto são capazes de amenizar o medo, na difícil e escura caminhada das 3 vítimas símbolos do filme e da nossa.

29 março 2021

A saga de um tal de “João de Santo Cristo” em Berlin Alexanderplatz

E um dos selecionados ao Óscar de minha filmografia íntima de 2021 é “Berlin Alexanderplatz”. Originalmente é um romance, adaptado para uma série de TV por Rainer Werner Fassbinder e, depois, reduzido a um magnífico filme de Burhan Qurbani, o que cito.


Arte é forma e não conteúdo. E é pela sua forma que se torna acessível a todos e com matizes e camadas de explorações diversas. E, esse é o caso de “Berlin Alexanderplatz”. Filme que poderá ser visto diversas vezes e por públicos múltiplos.

Quem conhece Berlim, com certeza, passou por essa praça que dá nome ao filme. E onde uma grande parte do enredo ocorre em seus arredores.

O filme fala de um refugiado sem pátria e negro sobrevivendo na cidade de Berlim. Então, como não dará para explanar tudo aqui sobre o filme. Irei apenas citar os tópicos que me fizeram eleger ele, o FILME:
✔ Um refugiado perde a sua identidade, a sua raiz (ele teve diversos nomes e o último que consegue, e se jubila por tê-lo, por ser o suposto passaporte para a sua liberdade em território alemão, tem o sobrenome de macaco dado a ele por um branco alemão).
✔A exploração do trabalho escravo de refugiados ilegais em pleno centro político da Alemanha. Esse é um tema da qual exala em mim o “homem revoltado” de Camus. Aqui, temos por exemplo, mas só exemplo, pois são inúmeras as formas de escravidão que usamos modernamente nessas terras e são consideradas legitimas, o favor, que vem como forma de explorar o trabalho alheio não renumerado. Entretanto, esse é um tema para outras postagens.
✔Fora da escravidão regulamentada pelo Estado moral, sobra a opção da prostituição e o aliciamento ao universo do tráfico de entorpecentes. Tão degradante quanto a anterior.
✔ O projeto de ser um homem bom, num ambiente da “insustentável leveza do ser” ou mesmo, da dificuldade que temos na existência de “Separar o joio do trigo” na esfera do bom e do mau. Como muito bem reflete Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, sobre a figuração do mal e do maligno na figura de Hermógenes, o bem e o mal estão misturados na mesmo ser, mesmo naqueles seres mais perversos.
E o Hermógenes do filme é Reinhold Hoffmann. O ator se esmerou para fazer esse personagem.
✔ E o filme explora outros temas, como o encontro, a esperança, o reinício a cada novo ciclo dessa montanha russa que é existir. E sem hipocrisia! Na sobrevivência no meio deste vale de lágrimas, falar de filosofias é uma coisa, viver de verdade são outros 500. Se quer entender do que estou falando, veja outro filme “O poço” ou a série “Expresso do Amanhã”.

“E João não conseguiu o que queria
Quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente
Pra ajudar toda essa gente que só faz
Sofrer” (Legião Urbana - Faroeste Caboclo) 

24 agosto 2019

O MISTÉRIO DE HENRI PICK

Normalmente, quando vou sozinha ao cinema não gosto de escolher de antemão o filme. Prefiro chegar e selecionar na hora aquele que melhor combina com as minhas necessidades intelectuais, emocionais e de momento. Porém, hoje no cinema que gosto aqui ir aqui no Rio, onde passa filmes não comerciais, os disponíveis para o horário após as 20 horas não me deram vontade de ver nenhum. De repente vejo o nome "o mistério de Henri Pick" e mesmo sem ler a sinopse como havia feito com os outros fui ao ponto de venda eletrônico e comprei o ingresso. Era o que restava.

E foi realmente a escolha às cegas que melhor se encaixou. "O mistério de Henri Pick" é um filme peculiar. Enredo e trama maravilhosos. Adorei o desfecho e seu fim. Saí do cinema feliz por o ter visto. O escolhi por acaso e foi um belo presente para terminar essa segunda-feira. 

O filme é mesclado com literatura de alta qualidade: russa, francesa, portuguesa e americana. Além de um humor levemente ácido que tanto me atraí. 

28 setembro 2016

MIOSÓTIS - GUIMARÃES ROSA


Em alemão miosótis aparece no poema "o novo Orfeu" com o termo "vergiBmeinnicht"

"Orfeu
Músico do outono
Embriagado do mosto de estrelas
Ouves a Terra girar
Hoje com mais força que sempre?
O eixo do mundo enferrujou
À tarde e de manhã as cotovias voam para o céu
Procuram em vão o infinito
Leões entediam-se
Riachos envelhecem
E os miosótis pensam em suicídio" 
Em "O novo Orfeu" Iwan Goll - Poesia Expressionista Alemã - uma antologia 

A flor Miosótis (Não-me-esqueças) é conhecida também em outras línguas como: “Forget-me-not” (Inglês), “Vergissmeinnicht” (Alemão), “Nomeolvides” (Espanhol), “Nontiscordardimé” (Italiano). Flor Miosótis significa recordaçãofidelidade e amor verdadeiro. É também conhecida como “Não-me-esqueças”. Segundo a lenda europeia, o jovem apaixonado era um cavaleiro que ao tentar apanhar a flor Miosótis para oferecer à sua amada, caiu no rio e se afogou devido ao peso da armadura que usava. Desde então, a flor simboliza o amor sincero e desesperado. A explicação do nome "não-me-esqueças" da flor pode ser explicada por algumas lendas. Uma delas diz que num belo dia de Primavera, dois jovens apaixonados se encontravam à margem de um rio. Nas águas turbulentas, a jovem avistou um ramo de miosótis flutuando e ficou maravilhada pela beleza da flor. O seu amado, mergulhou então para apanhar as flores e oferecê-las à sua namorada. No entanto, quando tentou voltar para a margem, foi arrastado pela forte correnteza. Esta lenda conta que pouco antes de desaparecer ele gritou para a sua amada: "Não me esqueça, me ame para sempre!". A partir desse dia a flor miosótis passou a crescer nas margens dos rios, para que mais ninguém tivesse que morrer por sua causa. (fonte)

“Aí, namorei falso, asnaz, ah, essas meninas por nomes de flores. (...) A lá, perto da casa de Mestre Lucas, morava um senhor chamado Dodó Meireles, que tinha uma filha chamada Miosótis. Assim, à parva, às tantices, essa mocinha Miosótis também tinha sido minha namorada, agora por muitos momentos eu achava consolo em que ela me visse – que soubesse: eu, com minhas armas matadeiras, tinha dado revolta contra meu padrinho, saíra de casa, aos gritos, danado no animal, pelo cerrado a fora, capaz de capaz! Daí, a Mestre Lucas eu tinha de dar uma explicação. Eu não gostava daquela Miosótis, ela era uma bobinhã, no São Gregório nunca tinha pensado nela; gostava era de Rosa’uarda. (...) Dona Dindinha, mulher de Mestre Lucas, no despedir, me abraçou, me de umas lágrimas de bondade: – “Tem tanta gente ruim neste mundo, meu filho... E você assim tão moço, tão bonito...” Aí, nem cheguei a ver aquela menina Miosótis. A Rosa’uarda, vi, de longes olhares.” João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.

19 agosto 2010

A VERDADE SOBRE A CAMPANHA CONTRA AS REPARAÇÕES A PERSEGUIDOS POLÍTICOS

Ter, 29 de Junho de 2010 19:37
Celso Lungaretti (*)

Por três dias seguidos, o vetusto jornalão O Estado de S. Paulo faz lobby descarado contra o programa de reparações às vítimas da ditadura de 1964/85, pressionando o Tribunal de Contas da União a acatar uma proposta de redução de benefícios identificada com as posições dasviúvas da ditadura, dos sites goebbelianos e das correntes virtuais de extrema-direita.

É a velha tabelinha entre uma determinada autoridade e a imprensa afinada com sua ideologia, tentando empurrar os acontecimentos na direção que agrada a ambos.

Não se trata nem da repetição da História como farsa, embora o Estadão já tenha feito idêntica tentativa de detonar a anistia federal em 2004, daquela vez acompanhado em alto estilo pela imprensa burguesa.

Só que já era uma cruzada farsesca, pois distorcia totalmente os fatos para encaixarem-se na imagem demagógica que se queria passar ao público. Então, o que temos agora é, isto sim, a repetição da farsa como encenação de mafuá.

A campanha começou com o destaque exageradíssimo dado ao assunto no domingo (27/06): matéria de capa, com direito a página inteira e nada menos do que cinco retrancas.

No texto principal, ficamos sabendo que Marinus Marsico, procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, quer que sejam revistos, "por ora", 9.371 benefícios já concedidos desde a promulgação da lei respectiva em 2002.

Por quê?

Porque "a revisão poderá gerar uma economia de milhões de reais aos cofres públicos", diz o procurador.

Ora, isto não é nem nunca foi argumento aceitável numa democracia. Reduzem-se benefícios quando são injustificados, não para amenizar problemas de caixa dos governos. E em nenhum dos textos do Estadão são honestamente apresentados os critérios do programa.

Tratou-se de uma iniciativa pioneira no Brasil, seguindo as recomendações da Organização das Nações Unidas para países que saem de ditaduras.

A Comissão de Anistia foi constituída em 2002 para identificar os cidadãos que sofreram graves danos de ordem física, psicológica, moral e profissional como consequência do arbítrio instaurado no Brasil entre 1964 e 1985, recomendando ao ministro da Justiça a reparação adequada em cada caso.

As regras do programa são as seguintes:

• para quem comprova terem seus direitos sido atingidos apenas em termos físicos e/ou psicológicos e/ou morais, é concedida uma indenização em parcela única (que o procurador Marsico não questiona);
• quem, ademais, teve sua trajetória profissional comprometida pelo estado de exceção, faz jus a uma pensão mensal e a uma indenização retroativa referente às décadas transcorridas entre a lesão a seus direitos e o início do recebimento da reparação.
Isto se aplica, principalmente, àqueles que foram afastados do serviço público, de instituições subordinadas ou vinculadas ao Estado e das Forças Armadas por terem opiniões diferentes das dos golpistas encastelados no poder. Tal caça às bruxas, inconcebível e inaceitável no século XX, privou dezenas de milhares de cidadãos do seu emprego legítimo.

E houve também casos de indivíduos que perderam seu trabalho na iniciativa privada em função de perseguições políticas, como o jornalista Carlos Heitor Cony (o Correio da Manhã foi obrigado a demiti-lo) e os também jornalistas Jaguar e Ziraldo, cujo Pasquim foi sufocado pela ditadura por meio de prisões arbitrárias dos integrantes da equipe, censura que atingia as raias do grotesco e terríveis pressões econômicas.

Por se referirem a cidadãos prósperos e famosos, estes três casos chocaram a opinião pública. Mas, a página virtual do programa está à disposição de todos e uma análise criteriosa das reparações já aprovadas permitirá a qualquer interessado verificar que os benefícios duvidosos nem de longe são 9.731. Não chegam sequer a uma centena.

O procurador Marsico e o Estadão pinçam casos isolados para dar a impressão de que os demais seguem todos o mesmo diapasão, O QUE NÃO É VERDADE.

Meu caso foi considerado, pelo então presidente da Comissão da Anistia, Marcello Lavènere, o mais dramático que o colegiado já havia julgado até aquele final de 2005. Exatamente por isto, tive de ficar conhecendo em profundidade o programa, pois não tinha como pagar advogado e travei minha luta sozinho.

Afirmo, com total conhecimento de causa, que houve distorções e equívocos, como em todas as ações humanas, mas numa escala imensamente inferior à que o procurador alega.

O QUE SE DIZ E O QUE SE OMITE
SOBRE A PENSÃO DA VIÚVA LAMARCA

O viés ideológico desse ataque ao programa salta aos olhos quando procurador e jornalão questionam o benefício concedido a Maria Pavan Lamarca, viúva do ex-capitão Carlos Lamarca, que "desertou do Exército, virou guerrilheiro e foi morto em 1971", segundo a reportagem.

Para os cidadãos civilizados, foi o Exército que desertou da democracia, passando a prestar serviços de jagunçada para os golpistas que usurparam o poder.

Ao voltar-se contra os que tornaram as Forças Armadas um instrumento do arbítrio, Lamarca honrou o compromisso que assumira, de defender a ordem constitucional do País. Foi preso e covardemente executado.

Está na reportagem:

"Lamarca foi promovido a coronel, quando a promoção correta seria a capitão, argumenta a representação. Os valores pagos à viúva equivalem ao vencimento de general, completa o texto. 'A remuneração mensal de R$ 11.444, bem como o pagamento retroativo de R$ 902,7 mil deveriam ser reduzidos', diz [o procurador Marsico]".

Ora, capitão ele já era. Caso as instituições não tivessem sido golpeadas em 1964, Lamarca, militar tão brilhante a ponto de haver sido escolhido para integrar a Força de Paz da ONU no canal de Suez, atingiria inevitavelmente as culminâncias do oficialato.

E, ao trombetear que haveria irregularidade nesse caso, um procurador jamais poderia omitir o que o presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão Pires Jr., esclareceu irrefutavelmente em 2007, respondendo à grita falaciosa da direita:

• quem reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Carlos Lamarca foi a Comissão de Mortos e Desaparecidos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos, em 1996;
• quem primeiramente reconheceu a condição de anistiado político a Lamarca, afastando a tese da deserção, foi a Justiça Federal de São Paulo, em decisão transitada em julgado e confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça;
• quem o promoveu a coronel foi a 7ª Vara Federal de São Paulo, em 2006;
• a Comissão de Anistia não acatou o pedido da viúva requerente, que solicitava a progressão para general-de-brigada, mantendo apenas a decisão proferida anteriormente pela Justiça, que concedeu a Lamrca o posto de coronel;
Então, o que realmente fez a Comissão de Anistia foi:
• estender a Lamarca o privilégio de que desfrutam todos os oficiais ao passarem à reserva, de receber pensão equivalente ao soldo da patente imediatamente superior;
• considerar Maria e seus filhos César e Cláudia também anistiados, concedendo a cada um deles uma indenização de R$ 100 mil, em parcela única.
Quem quiser saber mais, é só reler meu artigo de três anos atrás, Caso Lamarca: muito barulho por nada.

Mesmo assim, o editorial do Estadão de 3ª feira (29/06), A indústria da reparação, repete a desinformação da reportagem de dois atrás, até com as mesmas palavras:

"O procurador Marinus Marsico cita três exemplos de reparações claramente impróprias. O primeiro é o benefício pago à viúva do capitão Carlos Lamarca, que desertou do Exército para se tornar guerrilheiro e foi morto na Bahia em 1971. Depois da anistia, Lamarca foi promovido post-mortem a coronel, acima dos postos de major e tenente-coronel. Com isso, a viúva Maria Pavan Lamarca recebe o equivalente ao soldo de um general".

O jornal parece estar voltando aos idos de 1964, quando a família proprietária assumidamente conspirou para a derrubada do governo constitucional de João Goulart, ponto de partida do festival de horrores que a União agora está sendo obrigada a reparar.

Justiça seja feita, recuou quando a sucessão de abusos e atrocidades atingiu seu auge, passando a questionar aspectos do regime que ajudou a instaurar.

Mas, deveria reconhecer que sua posição no caso não é nem um pouco isenta.

E que não tem autoridade moral nenhuma para questionar a reparação das injustiças do passado.

* Jornalista, escritor e ex-preso político com lesão permanente provocada por torturas, anistiado pelo ministro da Justiça em 2005. http://naufrago-da-utopia.blogspot.com

14 agosto 2010

NOTA DE OPINIÃO DA COMISSÃO DE ANISTIA SOBRE A DECISÃO DO TCU

A Comissão de Anistia tomou conhecimento, por meio da imprensa, de decisão do TCU que acolheu solicitação do procurador Marinus Marsico para que todas as indenizações concedidas como prestações continuadas sejam reapreciadas pelo Tribunal, com fulcro em suposto caráter previdenciário das mesmas e em possíveis ilegalidades.

Como contribuição ao debate democrático junto à sociedade e às instituições públicas brasileiras, a Comissão de Anistia manifesta preocupação no sentido de que a decisão do TCU incorra em um equívoco jurídico, político e um retrocesso histórico.

1. Do ponto de vista jurídico importam dois registros.
O primeiro o de que, para tentar comprovar a possível existência de “ilegalidades” nas indenizações utilizaram-se de 3 casos emblemáticos: Carlos Lamarca, Ziraldo Alves Pinto e Sérgio Jaguaribe.

Ocorre que a decisão não abrangeu informações fundamentais. No caso do Coronel Carlos Lamarca, assassinado na Bahia, faltou a informação de que o direito devido à sua viúva é objeto de decisão da Justiça Federal meramente atualizada pelo Ministério da Justiça. Faltou registrar também que recentemente a Justiça Federal do Rio de Janeiro confirmou a correição da decisão da Comissão de Anistia no caso do jornalista perseguido Ziraldo e que possui situação idêntica a de Jaguar. Estaria a Justiça Federal cometendo ilegalidades?

Nos três casos, os critérios indenizatórios estão previstos na Constituição e na lei 10.559/2002. Vale ressaltar que o artigo 8º do ADCT prevê que a anistia é concedida “asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo”.

A segunda impropriedade reside em possível exorbitância das competências do TCU, que abrangem a apreciação da: “III -legalidade dos atos de admissão de pessoal e de concessão de aposentadorias, reformas e pensões civis e militares” nos termos do art. 71 da Constituição.

Ocorre que a lei 10.559/2002, criada por proposição do governo Fernando Henrique e aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, em seu art. 1º, criou o específico “regime jurídico do anistiado político”, compreendendo como direito: “II -reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições estabelecidas no caput e nos §§ 1o e 5o do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;”. Ainda, o artigo 9º, caracteriza de forma inequívoca a reparação como parcela indenizatória, destacando que “Os valores pagos por anistia não poderão ser objeto de contribuição ao INSS, a caixas de assistência ou fundos de pensão ou previdência, nem objeto de ressarcimento por estes de suas responsabilidades estatutárias”. Avançando ainda mais, a lei prevê, em seu parágrafo único que “os valores pagos a título de indenização a anistiados políticos são isentos do Imposto de Renda”.

Se a equiparação entre a indenização reparatória e a previdência social fosse o objetivo da Lei n.º 10.559, não teria ela em seu artigo 1º estabelecido de forma expressa o referido “regime do anistiado político” em oposição aos regimes especiais da previdência já existentes à época. Justamente o oposto: o 9º artigo da lei determina que todos os benefícios decorrentes de anistia sob tutela previdenciária do INSS sejam convertidos para a modalidade indenizatória e pagos pelos Ministérios do Planejamento e da Defesa: “O pagamento de aposentadoria ou pensão excepcional relativa aos já anistiados políticos, que vem sendo efetuado pelo INSS e demais entidades públicas, bem como por empresas, mediante convênio com o referido instituto, será mantido, sem solução de continuidade, até a sua substituição pelo regime de prestação mensal, permanente e continuada, instituído por esta Lei”.

Assim, questão basilar no direito brasileiro, os direitos indenizatórios não se confundem com os direitos previdenciários. A tentativa de igualar as prestações mensais a um benefício de natureza previdenciária é um exercício imaginativo forçado, cujo resultado inadequado seria uma assimetria entre as reparações de prestação única e as reparações de prestação mensal. Conforme a decisão, os perseguidos políticos que recebem reparação em prestação única seriam “indenizados” e os que recebem prestação mensal seriam titulares de “beneficio previdenciário”. A lei brasileira não estabelece esta distinção, ao contrário, dispõe que ambas reparações são resultantes do mesmo fato gerador, são reguladas pelos mesmos requisitos, com regime jurídico próprio e, óbvio, sob o teto de uma mesma lei. Neste sentido, estabelecer uma analogia entre a indenização em prestação mensal e a previdência social seria francamente exorbitante e ilegal, pois que procura, por meio do controle de contas, redefinir a natureza jurídica do regime do anistiado político, previsto na Constituição e regulamentado na Lei n.º 10.559/2002.

2. Do ponto de vista político, o temerário gesto do TCU ao se “autoconceder” uma competência explicitamente inexistente na Constituição pode enfraquecer a própria democracia. Incorre em erro a idéia difundida de que “[...] quem paga não foi quem oprimiu. É o contribuinte. Não é o Estado quempaga essas indenizações. É a sociedade.”, expressa recentemente pelo patrocinador da causa. Todo o direito internacional e as diretivas da ONU são basilares em afirmar que é dever de Estado, e não de governos, a reparação a danos produzidos por ditaduras. O dever de reparação é obrigação jurídica irrenunciável em um Estado de Direito. Mais ainda: o sistema jurídico nacional reconheceu esta responsabilidade nas Leis n.º 9.140/1995 e n.º 10.559/2002 e o Supremo Tribunal Federal definiu de forma claríssima que tais reparações fundamentam-se na “responsabilidade extraordinária do Estado” absorvida dos agentes públicos que agiram em seu nome (ADI 2.639/2006, Relator Min. Nelson Jobim). Deste modo, os critérios de indenização foram fixados pela Constituição de 1988 e pela Lei 10.559/2002 e qualquer alteração nestes critérios cabe somente ao poder Legislativo ou ao poder constituinte reformador, e não a órgãos de fiscalização e controle.

3. Do ponto de vista histórico tem-se que a anistia é um ato político onde reparação, verdade e justiça são indissociáveis. O dado objetivo é que no Brasil o processo de reparação tem sido o eixo estruturante da agenda ainda pendente da transição política. O processo de reparação tem possibilitado a revelação da verdade histórica, o acesso aos documentos e testemunhos dos perseguidos políticos e a realização dos debates públicos sobre o tema.

O Estado brasileiro demorou em promover o dever de reparação. Os valores retroativos devidos aos perseguidos políticos somente são altos em razão da mora do próprio Estado em regulamentar as indenizações devidas desde 1988. O somatório da inafastável dívida regressa é proporcionalmente igual à demora no processo de reparação. Questionar as “altas indenizações” tomando por base os valores dos retroativos, e não das prestações mensais em si importa em distorção dos fatos e do direito. Como a Constituição determina, os efeitos financeiros iniciam-se em outubro de 1988, o cálculo de retroativos que conduz aos altos valores é simplesmente aritmético, aplicada a prescrição qüinqüenal das dívidas do Estado. Não há, neste sentido, qualquer juízo administrativo sobre esse valor que possa ser corrigido sem flagrante desrespeito à Constituição.

Nas agendas das transições políticas, as Comissões de Reparação cumprem um duplo papel: juridicamente sanam um dano e, politicamente, fortalecem a democracia, restabelecendo o Estado deDireito e recuperando a confiança cívica das vítimas no Estado que antes as violou. É por esta razão que legislações especiais, como a Lei n.º 10.559, criam processos diferenciados para a concessão de reparações, com simplificação das provas (muitas vezes, como no caso brasileiro, parcialmente destruídas pelo próprio Estado) e critérios diferenciados de indenização (que não a verificação do dano moral e material). São órgãos públicos específicos para promover um amplo processo de oitiva das vítimas, registrar seus depoimentos, processar as suas dores e traumas, em um ambiente de resgate da confiança pública da cidadania violada com o Estado perpetrador das violações aos direitos humanos.

Após 10 anos de lenta e gradual indenização às vítimas, o anúncio público por parte do Estado brasileiro de revisar as impagáveis compensações decorrentes do “custo ditadura”, ou seja, dos desmandos cometidos pelo Estado nos períodos ditatoriais – como torturas, prisões, clandestinidades, exílios, banimentos, demissões arbitrárias, expurgos escolares, cassações de mandatos políticos, monitoramentos ilegais, aposentadorias compulsórias, cassações de remunerações, punições administrativas, indiciamentos em processos administrativos ou judiciais – pode implicar em quebra do processo gradativo de reconciliação nacional e de resgate da confiança pública daqueles que viram o seu próprio Estado agir para destruir seus projetos de vida. Tantos anos depois, torna-se inoportuno e injustificável para as vítimas, o Estado valer-se da criação de procedimentos de revisão diferentes daqueles inicialmente estipulados, estabelecendo uma instância revisora com um controle diferenciado, impondo ao perseguido político mais uma etapa para a obtenção de direito devido desde 1988, ampliando a flagrante violação ínsita na morosidade do Estado em cumprir com seu dever de reparar.
É importante destacar que a Comissão de Anistia não se opõe que o TCU promova fiscalização de legalidade concreta. A propósito, o Ministério da Justiça já observou algumas destas recomendações em outras oportunidades. O que não se pode concordar, neste momento é com o fato de que a Corte de Contas abandone seu papel de fiscal de contas arvorando-se verdadeiramente em nova instância decisória para a concessão dos direitos reparatórios. O sentido das Comissões de Reparação é o de estabelecer um procedimento mais simples, célere e homogêneo que o procedimento judicial, como forma de garantir a restituição dos direitos às vítimas ainda em vida ou aos seus familiares. Não guarda qualquer relação com este objetivo remeter ao TCU o trabalho arduamente realizado por 7 diferentes Ministros da Justiça ao longo de 10 anos.

A inclusão de um procedimento revisor nos dias de hoje pode abalar a confiança cívica que as vítimas depositaram no Estado democrático e a própria reparação moral consubstanciada no pedido oficial de desculpas a ele ofertado pelo Estado, prejudicando o processo de reconciliação nacional.

Trata-se de um grave retrocesso na agenda da transição política e da consolidação dos Direitos Humanos no Brasil. Em outros países que enfrentaram regimes de exceção a agenda nacional move-se no sentido de avançar, com o Chile abrindo a integralidade dos arquivos disponíveis, a Espanha retirando estátuas e denominações de espaços públicos alusivas à ditadura de Franco, a Argentina condenando torturadores, e todos os países (desde o fatídico episódio nazista na Alemanha) estabelecendo programas de reparação às vítimas e depurando do serviço públicos aqueles que promoveram violações graves aos direitos humanos. Esta decisão no Brasil orienta-se no sentido oposto: recoloca sob o plano da incerteza e da insegurança as reparações destinadas às vítimas ao invés de lançar-se sobre a investigação dos perpetradores.

É imperativo avançar com a localização e abertura dos arquivos das Forças Armadas; com a proteção judicial das vítimas, com uma reforma ampla dos órgãos de segurança; com a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos entre outras tantas medidas já dadas pelo exemplo dos países que viveram experiências similares à nossa e pelo que está disposto nos tratados internacionais sobre a matéria. Caberia agora ao Brasil debruçar-se sobre os arquivos das vítimas, não para querer rever os critérios criados pelo legislador democrático diante do incomensurável custo-ditadura, mas sim para encontrar-se com os milhares de relatos das atrocidades impostas aos anônimos que os meios de comunicação ainda não se interessaram em propalar.

Por fim, a Comissão de Anistia reconhece a legitimidade do TCU para o controle de contas pontual e concreto, mas opõe-se ao extrapolamento ora em curso que pretende identificar o regime indenizatório com o regime previdenciário e proclamar uma nova instância revisora de todas as indenizações mensais. A Comissão de Anistia ainda reconhece todas as demais formas de controle da Administração Pública a que está submetida, como as esferas de controle interno e o próprio Ministério Público Federal.

Se há algum ponto positivo a ser extraído da decisão de ontem no caso desta ser mantida por instâncias recursais superiores, trata-se da possibilidade reaberta para que o Estado, uma vez mais, possa através de um órgão público dar publicidade às histórias de violações praticadas durante os anos de exceção no Brasil. Numa eventual reapreciação de todo o conjunto de processos julgados espera-se que o Tribunal de Contas, não transforme um processo de reparação política em processo meramente contábil e saiba ouvir e divulgar os relatos das vítimas, verificando com a devida sensibilidade histórica a legalidade de todas as concessões empreendidas pelo Ministério da Justiça. Somente deste modo a atual medida poderá contribuir para o fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.

Brasília, 12 de agosto de 2010.
Paulo Abrão Pires Junior
Presidente da Comissão de Anistia Ministério da Justiça
Sueli Aparecida Bellato
Vice-Presidente da Comissão de Anistia Ministério da Justiça

11 agosto 2010

LEANDRO E SEU VÍDEO



ERA UMA VEZ um índio chamado Juruna. Ele escandalizou o país no fim dos anos 70 com um simples gravador. O xavante ia aos gabinetes de Brasília, apresentava seus pleitos, ouvia o blá-blá-blá dos burocratas e gravava. Quando Juruna tocou suas fitas, o Brasil percebeu que não era só ele quem estava sendo feito de bobo e tratado como um estorvo. Juruna transformou-se numa celebridade e, em 1982, tornou-se o primeiro índio a sentar na Câmara dos Deputados. Deu-se à bebida e morreu no anonimato em 2002.

Para felicidade geral, existem hoje internet e YouTube. O garoto Leandro dos Santos de Paula, que vive no conjunto Nelson Mandela, em Manguinhos, perto de uma área conhecida como "Faixa de Gaza", gravou em vídeo uma breve conversa com Lula e Sérgio Cabral durante uma visita dos dois ao bairro e tornou-se um Juruna 2.0.
Leandro queixou-se ao Nosso Guia de que na área esportiva da obra que os maganos visitavam não podia jogar tênis. Tomou a primeira, de Lula: "Isso é esporte da burguesia, porra". (Se Leandro tivesse o chassis de Serena Williams, ele não arriscava uma cortada dessas.) Na condição de pai dos pobres, aconselhou: "Por que você não faz natação?"

"Porque a gente não pode entrar na piscina." Por quê? "Porque não abre para a população."

Nosso Guia virou-se para o governador Sérgio Cabral e ensinou: "No dia em que a imprensa vier aqui e pegar um final de semana com essa porra fechada, o prejuízo político será infinitamente maior do que colocar dois guardas aqui".
Maravilha. A patuleia paga a piscina, não pode entrar, e Lula se preocupa com a possibilidade de a imprensa flagrar a cena. Sem imprensa, tudo bem. Ademais, o que ele teme é o "prejuízo político". O da Viúva é desprezível.

Leandro reclamou do barulho que o "Caveirão" (o blindado com que a PM demonstra sua força) faz à noite na sua rua. Entrou em cena o governador Sérgio Cabral, chamando Leandro de "otário" e "sacana". A intervenção de Cabral foi claramente intimidatória, mas o jovem não baixou a bola. Afinal, como no caso de Juruna, sua ação foi premeditada. Ele é freguês das comemorações triunfalistas do governador. À diferença do índio, ele faz o registro em vídeo.

Cabral sustenta que Leandro está sendo usado por interesses eleitorais. Engano. Foram ele e Nosso Guia que usaram a autoridade que a choldra lhes confere para desfilar vulgaridades, o resto é registro. Como diria o bandido Elias Maluco, "não esculacha". Em seu benefício, foi arrogante, mas não chamou Leandro para a briga, como fez Ciro Gomes em Tianguá, nem estapeou um eleitor em Campo Grande, como fez o governador André Puccinelli. (Nos dois casos, os doutores haviam sido chamados de "ladrão".)

Bem-aventurados os leandros desta vida, bem-aventurado o YouTube e glória eterna ao Juruna. O xavante, depois de eleito deputado, fez um discurso chamando todos os ministros do governo João Figueiredo de "ladrões". O general invocou os sentimentos do ministro do Exército e quis que o ministério o processasse: "Eu quero todos! Quem não fizer, eu demito!" Onze fizeram, e chegou-se a temer uma crise com o Congresso. Deu em nada. O Brasil tinha começado a melhorar.

ELIO GASPARI - Leandro e seu vídeo são o Juruna 2.0
Jornal o Globo de 11/08/2010

05 outubro 2009

MEUS TRECHOS PREFERIDOS DE "EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO"

“Se então meu avô necessitava chamar a atenção das duas irmãs, tinha de recorrer a essas advertências físicas de que servem os alienistas para com certos maníacos da distração: golpes repetidos em um copo, com a lâmina da faca, coincidindo com uma brusca interpelação da voz e do olhar, meios violentos que esses psiquiatras empregam muitas vezes no trato corrente com as pessoas sãs, ou por hábito profissional, ou porque julgam todo mundo meio louco” (p.27)

MARCEL PROUST
em Busca do Tempo Perdido – No Caminho de Swann
Tradução de Mário Quintana
15º edição. São Paulo: Globo - 1993

14 setembro 2009

PORQUE QUE MUITA COISA NO BRASIL NÃO FUNCIONA

“(...) Se se quiser mudar os costumes e o comportamento social dos cidadãos, não se deve legislar. Os costumes só podem ser alterados pela introdução de outros costumes. Ora, isso é obra exclusiva da educação, não das leis.”

Montesquieu (citado por COMPARATO)

COMPARATO, Fábio Konder, Dos princípios éticos em geral. In___ Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. Companhia das Letras: São Paulo. 2006. p. 498

06 setembro 2009

DOR E ARTE

Quando se fala da relação entre a dor e a arte, deve-se distinguir a dor física da dor moral. Na minha opinião - e até onde posso afirmar baseado em experiência própria - a dor física tende a anular as condições psicológicas propícias à geração da obra de arte. Se não é impossível que alguém, atacado de forte dor física, seja levado, por efeito dela, a elaborar um poema, tal ocorrência seria uma exceção. Uma exceção porque a dor física, se de forte intensidade, tem o poder de anular momentaneamente nossa capacidade intelectual, reduzindo-nos ao nosso corpo - o corpo que dói. E quem produz a arte é o corpo que pensa, que inventa, sonha, fantasia.

O filósofo inglês Alfred North Whitehead, autor com Bertrand Russell, de um livro importante para a filosofia do século 20, intitulado "Principia Mathematica - observou que “quando nos damos conta do funcionamento de nossas vísceras, alguma coisa vai mal. O mesmo Whitehead, desenvolvendo esse ponto de vista, já afirmara, noutra ocasião, que o que caracteriza o corpo vivo é a não percepção dos elementos que o constituem, enquanto integrantes desse organismo. Exemplifico; se minha mão toca em minha perna, percebo a mão e a perna. Mas não percebo os contatos que eventualmente ocorram entre os músculos, tendões e ossos que constituem minha mão; sei que esses músculos, ossos e tendões, existem, mas não os percebo; se sinto a existência de qualquer deles - o que em geral se manifesta pela sensação desagradável a que chamamos dor - é que ali a máquina do corpo deu defeito.

Pode ser esclarecedor compararmos, neste caso, o corpo humano com, digamos, um aparelho de televisão. Se em determinado ponto dele, de repente, começam a ocorrer estalos e faíscas, é que algum defeito está interferindo no funcionamento normal do aparelho. Se o aparelho de TV fosse um ser vivo, certamente sentiria dores. Talvez se possa então afirmar que a dor é o sintoma do mau funcionamento do organismo vivo - o sinal indicativo de que alguma coisa vai mal naquele ponto que dói.

Ou noutro ponto, como parece ocorrer com certas dores de cabeça que são reflexo do mau funcionamento do estômago, por exemplo. Mas, qualquer que seja o caso, a dor física tem a capacidade de tornar o nosso corpo anormalmente presente em nossa consciência, até mesmo de ocupá-la a tal ponto que mal conseguimos pensar em outra coisa. Nessas condições, é impossível criar uma obra de arte. Logo, se alguma dor efetivamente provoca o surgimento da obra de arte, terá que ser a dor moral.A relação entre a dor - o sofrimento, a infelicidade - e a arte parece geralmente admitida, embora não se saiba se essa relação existe e, no caso de que exista, de que tipo é. Uma relação causal? Uma relação sublimatória? Uma relação meramente temática?Por outro lado, parece certo que os momentos de tranqüilidade satisfeita não são estímulos habitualmente geradoras da obra de arte. As pessoas extrovertidas, que se satisfazem com atividades esportivas ou semelhantes - caracterizadas mais pela ação do que pela reflexão -, não costumam se dedicar à atividade artística. Mas não só essas; de modo geral, qualquer pessoa que se sinta vivendo um momento de felicidade e plenitude, dificilmente sentirá necessidade de produzir arte, mesmo sendo artista.Isso não significa que esses próprios momentos de plenitude não são, eles próprios, geradores de arte. André Gide afirmou, certa vez, que “a arte nasce quando viver não é suficiente para exprimir a vida". Ou seja, se concordarmos com Gide, a arte é feita para suprir uma carência; nos momentos plenos - quando a máquina da vida parece funcionar satisfatoriamente bem - a arte é desnecessária. Talvez assim se explique a tendência a associar-se a criação artística com o sofrimento.

Aqui podemos estabelecer um paralelo entre a dor física e a dor moral. Do mesmo modo que o organismo vivo, quando está funcionando bem, por assim dizer, ignora-se a si mesmo, as pessoas também, na sua vida cotidiana, se tudo corre bem, vivem o presente pelo presente, sem qualquer preocupação com seus problemas e muito menos com o problema fundamental da vida humana: a inevitável morte.

E, do mesmo modo que, se o estômago anda mal, o homem se dá conta de que tem estômago porque ele dói, também se algum drama lhe ocorre - a perda de um ente querido, por exemplo -, ele é subitamente chamado a refletir sobre sua própria condição humana. Essa reflexão pode conduzir à necessidade da obra de arte.Neste paralelo que estabelecemos entre a dor física e a dor moral, fica evidente uma diferença essencial: até mesmo porque envolve questões existenciais, filosóficas, afetivas, morais, a dor moral - ao contrário da dor física, que nos reduz à condição de ``corpo" - nos coloca diante de nossos valores e de nosso destino. Enquanto a dor física tende a nos diminuir por entorpecer a reflexão, a dor moral tende a nos ampliar, por nos obrigar a ela.

Em resumo, tanto a dor física quanto a dor moral nos levam a tomar consciência da realidade. Detenhamo-nos um instante neste ponto. Se quando meu estômago está funcionando bem, não tomo conhecimento dele e só o tomo quando funciona mal, isso nos leva inevitavelmente a concluir que o normal é possuir estômago sem saber que o possui. E não se daria o mesmo, no plano da dor moral?

A normalidade não consistiria em ignorar a realidade da mesma maneira que ignoramos o nosso estômago? Acredito que, se se tratasse de uma simples opção, dificilmente alguém, saudável, preferiria viver com a certeza sempre presente de que está condenado à morte, de que o amor que vive agora não vai durar, de que dentro de alguns anos estará velho e achacado de doenças. O homem não quer sofrer. Se meu estômago dói, não posso ignorá-lo, mas farei o possível para me livrar dessa dor. Se a minha vida dói, a opção é mudar de vida ou, se não posso fazê-lo, descobrir um modo de fugir da realidade dolorosa: pelo misticismo ou pela bebida ou pela droga, etc.

A dor, portanto, além de ser um sintoma, é uma exigência do corpo - e da vida - para tomarmos consciência dos problemas e procurarmos resolvê-los. Se uma dor de cabeça pode ser eliminada com analgésico, para a dor da existência muitas vezes não existe remédio. E é diante da dor sem remédio, do problema sem solução, que surge a necessidade do poema ou da sinfonia: a arte é, de certo modo, uma solução para os problemas sem solução.

Cumpre observar, no entanto, que, se não é a dor física, tampouco é a dor moral que gera a obra de arte. A dor moral nos obriga a encarar a realidade, a redescobri-la na sua verdade, e essa redescoberta é que gera a obra. Sendo assim, devemos concluir que, não apenas a dor, mas qualquer outro fator de vida, que nos tire do equilíbrio em que nos mantemos à beira do abismo existencial, pode funcionar como espoleta do poema ou da sinfonia. Platão dizia que o conhecimento nasce do espanto. A arte também.

Um filósofo alemão, que teve grande influência sobre os artistas da segunda metade do século 19 e mesmo sobre artistas e pensadores que viveram depois. Arthur Schopenhauer, estabeleceu uma ligação estreita entre a dor, chegando a considerar a arte uma espécie de redenção do ser humano, condenado, segundo ele, desde que nasce até que morre, ao sofrimento.

Schopenhauer pinta o destino humano em cores negras. “Na primeira mocidade - diz ele - somos colocados em face do destino que se vai abrir diante de nós, como as crianças em frente ao pano de boca de um teatro, na expectativa alegre e impaciente das coisas que vão passar-se em cena; é uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Aos olhos daquele que sabe o que realmente se vai passar, as crianças são inocentes condenados não à morte mas à vida, e que todavia ainda não conhecem o conteúdo de sua sentença."

Em seu modo de ver, a causa de todo sofrimento do ser humano é a necessidade de querer, a que está submetido. O homem sofre por querer o que não tem e, quando o consegue, sofre porque a satisfação do desejo é ilusória e efêmera. Diz Schopenhauer: "Querer é essencialmente sofrer e, como o viver é querer, toda a existência é essencialmente dor."


Seu livro "Dores do Mundo” começa assim: “Se a nossa existência não tem por fim a dor, pode dizer-se que não tem razão nenhuma de ser. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim, que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um mero acidente, e não a própria finalidade da existência. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra." E acrescenta adiante: “pode se considerar a nossa vida como um episódio que perturba inutilmente a beatitude e o repouso do nada."

O caminho que ele aponta para o ser humano enfrentar sua miserável condição é, logicamente, a renúncia ao desejo, ao querer: “O homem seduzido pela ilusão da vida individual, escravo do egoísmo, só vê as coisas que o tocam pessoalmente, e encontra aí motivos incessantemente renovados para desejar e querer, já aquele que penetra a essência das coisas, que domina o conjunto, encara, pelo contrário, com tranqüilidade todo o desejo e de todo o querer. Daí em diante, a sua vontade desvia-se da vida, repele os gozos que a perpetuam. O homem chega então ao estado da renúncia voluntária, da resignação, da tranqüilidade verdadeira, e da ausência absoluta da vontade".Dentro dessa concepção, a arte assume para Schopenhauer um papel fundamental: por ser contemplação desinteressada - livre de todo propósito egoísta, ela nos dá o sentimento de paz em toda a sua plenitude. E de todas as artes a música é, segundo ele, a que melhor cumpre essa função: “Quando ouço música, a minha imaginação compraz-se muitas vezes com o pensamento de que a vida de todos os homens e a minha própria vida não são mais do que sonhos dum espírito eterno, bons e maus sonhos, de que cada morte é o despertar."

Dentro de sua concepção filosófica, a arte funcionaria como expressão dessa necessidade de fugir às contingências da vida, um equivalente à renúncia ao desejo. “O que dá ao trágico um impulso particular para o sublime - diz ele na obra `O Mundo como Vontade e Representação' - é a revelação deste pensamento, de que o mundo, a vida, não pode satisfazer completamente, e por conseqüência não é digna de que fiquemos presos a ela: é nisto que consiste o espírito trágico - em conduzir-nos à resignação".

É fato indiscutível que o sofrimento e a morte são dados consubstanciais à existência humana, ou seja, ignorá-los é simplesmente falar de alguma coisa que não é a vida.A maior parte do tempo de nossa vida é constituída de fatos banais, mesmo porque não se suportaria viver com a permanente intensidade dramática de uma peça de Shakespeare ou de uma tragédia de Sófocles. Felizmente, o dia-a-dia é corriqueiro e banal, com grandes tumultos e dramas. Isso torna a existência monótona e, por essa razão, as pessoas buscam meios e modos de quebrar-lhe a monotonia, já seja promovendo festas, bailes, jogos, espetáculos, enfim, toda a série de entretenimentos, como os que encontramos em nossa época: a televisão, o cinema, o teatro, o show musical, o esporte, a leitura de jornais, de revistas e livros, etc.De acordo com a classe social a que pertence e as circunstâncias da época, o indivíduo experimenta uma vida mais ou menos tranqüila ou atormentada: por exemplo, os moradores das favelas do Rio de Janeiro vivem em permanente sobressalto, numa atmosfera de drama quase equivalente às tragédias e dramas do teatro ou do cinema: são fatos freqüentes, em seu cotidiano, tiroteios e mortes, agressões, crueldades, uma permanente situação de pânico e insegurança. Nem por isso as pessoas que enfrentam essa vida atormentada escrevem peças de teatro, poemas, ou fazem filmes sobre tais coisas. Nem mesmo os sambas, que os artistas dessas comunidades compõem, versam sobre esses problemas.

A tese de Schopenhauer de que a vida humana ou é dor ou é monotonia, já que a felicidade dura pouco e o que prepondera é o sofrimento, pressupõe que as pessoas não suportam o cotidiano e que, por essa razão, aspiram à morte. Não é isso, porém, o que a experiência nos mostra: as pessoas, mesmo as que têm uma vida de privações e sofrimentos, querem continuar vivas e mantêm acesas a esperança de uma vida melhor no futuro.

Uma coisa que o filósofo alemão parece não ter percebido é que a gente mais pobre - que experimenta, além do sofrimento natural da existência, as privações da miséria - tem mais disposição para se divertir, é mais alegre, efusiva e vital que a maioria dos que desfrutam de melhores condições materiais de vida. O desencanto, que a filosofia de Schopenhauer reflete, encontra-se mais facilmente em integrantes da classe média e da classe rica - à qual ele próprio pertencia - entediados e temerosos de arriscar o que conseguiram. O que parece mostrar que a relação entre o sofrimento e a vontade de viver não é tão simples quanto ele imaginava, e que a renúncia a todo o desejo e a aspiração ao nada não são a única resposta possível às dores do mundo.A intuição dessa complexidade encontramos na visão de outro filósofo alemão, Friedrich Nietzsche. Indagando a razão do surgimento da tragédia na civilização grega, marcada pelo desejo da beleza, da festa, da alegria, responde que, talvez, aquela inclinação para o mito trágico, venha exatamente, da força, da saúde exuberante, enfim, do excesso de vitalidade do povo grego. Identificando o pessimismo com a racionalidade socrática, Nietzsche, em prefácio a seu livro “A Origem da Tragédia", afirma que a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético, criação de um Deus puramente artista, absolutamente destituído de escrúpulos e de moral, para quem a criação e a destruição, o bem e o mal, são manifestações de seu capricho indiferente e de sua onipotência.

Nietzsche observa que nada se opõe mais a essa interpretação puramente estética do mundo do que a doutrina cristã que, com seu moralismo, relega a arte ao reino da mentira, isto é, nega-a e a maldiz. A essa visão moralista - que reprime as paixões, teme a beleza e a volúpia - Nietzsche contrapõe o espírito dionisíaco, o êxtase dionisíaco, a identificação com o que ele chama de “a incomensurável alegria primordial da existência".

Não resta dúvida que a dor, o sofrimento, é com freqüência a matéria-prima do teatro, do romance, do cinema, das novelas de televisão. Mas isso não significa que as pessoas desejem viver no sofrimento ou que prefiram o sofrimento (o drama, a tragédia), ao cotidiano tranqüilo e rotineiro. Pelo contrário, a rotina é condição necessária à preservação da tranqüilidade e segurança interior.

Há aqui um detalhe que deve ser considerado: uma coisa é viver na tragédia, outra coisa é vê-la no teatro ou lê-la no livro. O teatro, o romance, a poesia, o cinema, foram criados pelo homem exatamente para quebrar a monotonia da vida. Do mesmo modo, que antigamente, nas tribos, o contador de histórias distraía os demais com narrativas às vezes assustadoras, às vezes misteriosas, dramáticas ou engraçadas, hoje quem nos distrai, nos assusta ou nos diverte é o teatrólogo, o poeta, o romancista, o cineasta, o novelista de televisão.

Aristóteles já havia compreendido que a tragédia cumpre uma função social (cultural), quando definiu o seu papel catártico sobre o espectador. Goethe considerava que essa catarse se fazia igualmente sobre o autor. De qualquer modo, a experiência simbólica ou fictícia do sofrimento é uma necessidade do ser humano. O espectador não vai ao teatro ou ao cinema porque aspira a mais sofrimento em sua vida: ele vai para viver uma vida de graça, para experimentar a emoção dos dramas humanos, sem pagar o preço que se paga na vida real.

Quando a luz do cinema acende, o sofrimento se revela fictício, provocando um alívio equivalente ao que experimentamos ao acordar de um sonho mau. Exatamente o contrário do que ocorre na vida, onde o sofrimento é real, a perda é real, a luz não acende ao final do espetáculo nem os atores, que “morreram" em cena, se levantam, vivos outra vez, para agradecer os aplausos.

Não obstante, e por isso mesmo, a vocação do homem é para a felicidade. E a arte é, contraditoriamente, uma afirmação dessa irrenunciável necessidade. Já dizia o poeta paraibano Augusto dos Anjos - que aliás era leitor de Schopenhauer - que “a mais alta expressão da dor estética/ consiste essencialmente na alegria". De fato, o próprio Schopenhauer reconhece, quando fala da música, que através dela o compositor consegue superar a vontade (o querer) que implica sempre em sofrimento.A relação entre a dor e a expressão artística deve ser examinada na sua complexidade. Uma obra de arte, mesmo a que mais cruamente expresse o sofrimento humano, não é igual a um grito de dor. Um grito de dor não é arte. Noutras palavras, a dor pode ser matéria-prima da arte - em muitos casos - mas a obra mesma resulta da elaboração complexa da emoção e da linguagem estética, visando criar uma totalidade cujo significado transcende a experiência que a motivou. A própria atitude do poeta ou do dramaturgo, quando se dispõe a transformar uma experiência dolorosa em obra de arte, já indica uma superação da dor mesma, tornada objeto de reflexão. Um necessário distanciamento estabeleceu-se entre o homem que sofreu e o seu sofrimento para que ele tenha sido capaz de transformá-lo numa peça ou num poema.Certamente a experiência existencial está viva nele, mas já não é a mesma, porque a dor real, se nos atinge profundamente, nos incapacita de, enquanto a sofremos, transformá-la em prazer estético. A formulação, na obra, do sofrimento experimentado guarda, conforme o caso, diferentes distâncias com respeito à dor vivida. Mas nunca é a dor mesma que aparece na obra, pelo fato de que a obra é a superação da dor, a sua transformação alquímica em alegria, em prazer estético. Como disse Fernando Pessoa:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente

O homem, por sua própria natureza, hesita entre a segurança e a aventura, a tranqüilidade e a emoção. Por isso, ao mesmo tempo que aceita a rotina do cotidiano, é induzido a violá-la; preserva seu casamento tedioso e busca no cinema ou na novela de televisão a paixão fictícia que não pode viver. Isso tanto vale para o expectador e leitor como para o autor: de algum modo, através dos personagens que cria, das melodias que concebe, o artista vive uma outra vida, experimenta outras emoções, em suma, escapa à pobreza e aos limites de sua vida banal.

E é precisamente o grau em que essa necessidade se manifesta no individuo - somado certamente a outras qualidades - que determina se ele será um consumidor ou um criador de obras de arte. Deve-se observar, porém, que o que caracteriza o artista não é a simples necessidade de fugir à realidade banal e dolorosa, mas a capacidade de criar, com sua arte, um universo simbólico próprio, dentro do qual o mundo e a vida, com suas incongruências e enigmas, se tornam de algum modo assimilável.Albert Einstein, num discurso pronunciado por ocasião do sexagésimo aniversário do físico Max Planck, afirmou que “o homem procura formar, de alguma maneira, mas segundo a própria lógica, uma imagem simples e clara do mundo. Para isso, ultrapassa o universo de sua vivência, porque se esforça em certa medida por substituí-lo por essa imagem. A seu modo, é esse o procedimento de cada um, quer se trate de um pintor, de um poeta, de um filósofo ou de um físico. A essa imagem e à sua realização, consagra o máximo de sua vida afetiva para assim alcançar a paz e a força que não pode obter nos estreitos limites da experiência agitada e subjetiva".

De fato, a experiência estética é essencialmente diversa da experiência real. A experiência real tem, obviamente, o peso da vida, a densidade, a complexidade específica e a irreversibilidade da vida. A experiência estética não. Trata-se de uma experiência “fictícia". Nela, o homem-autor lida com significações e não com fatos; o terreno no qual se move não é o chão do planeta, mas a linguagem; o tempo que “vive" na obra não corresponde ao tempo real da vida transcorrido enquanto a elaborava. Por isso mesmo, a dor que eventualmente experimentou em sua vida e que teria motivado a obra, nela deixa de ser a dor real, perde a especificidade da dor real; transforma-se, pela reflexão e assimilação ao universo simbólico do poeta, em puro significado, ainda que ligado à experiência vital.

E aqui há um outro ponto a sublinhar: a significação poética não é da mesma natureza que, por exemplo, a significação matemática ou filosófica. A significação poética nunca alcança o nível de abstração e generalidade que aquelas alcançam. Ela se nega a tornar-se conceito, lei ou princípio teórico. A poesia, a arte, é um tipo de realização intelectual que se situa entre a experiência direta do mundo e a formulação conceitual abstrata: o artista rejeita a experiência imediata do real, na medida em que a transforma em linguagem, mas também rejeita a sua transformação em conceito abstrato porque deseja preservá-la como vivência individual e afetiva. Essa é a razão por que não seria descabido afirmar que, se o artista, como todo ser vivo, necessita escapar à dor, não quer fazê-lo ao preço de renunciar à própria vida.


FERREIRA GULLAR
em Jornal Folha de São Paulo
Caderno MAIS! Página: 5-11
07/05/1995

04 setembro 2009

MEUS TRECHOS PREFERIDOS DE EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Mas nem mesmo com referência às mais insignificantes coisas da vida somos nós um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de que cada qual não tem mais do que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de contas ou de um testamento; nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. Até o ato tão simples a que chamamos “ver uma pessoa conhecida” é em parte um ato intelectual. Enchemos a aparência física do ser que estamos vendo com todas as noções que temos a seu respeito; e, para o aspecto total que dele nos representamos, certamente contribuem essas noções com a maior parte. Acabam elas por arredondar tão perfeitamente as faces, por seguir com tão perfeita aderência a linha do nariz, vêm de tal modo nuançar a sonoridade da voz, como se esta não fosse mais que um transparente invólucro, que, a cada vez que vemos aquele rosto e ouvimos aquela voz, são essas noções o que olhamos e escutamos. (p.24)

MARCEL PROUST
em Busca do Tempo Perdido – No Caminho de Swann
Tradução de Mário Quintana
15º edição. São Paulo: Globo - 1993

18 agosto 2009

VIOLAÇÃO

Acorrentado ao rochedo,
desde eras estou.
Em um ciclo sem fim,
minha víscera é regenerada,
enquanto a minha criatura se degrada.

De alma oca,
a vejo vagar pelo mundo.
Enfurecida tenta domar a phisis,
Desertificando o universo.
Prolifera-se feito um câncer.
Caminha destruindo por metástase.

Faz tempo que tenho medo.
Em nenhum outro animal,
em nenhum deus,
vi um olhar tão assustador.

Fracassei como criador.
Cometi o excesso
de dar vida ao homem.

01 julho 2009

ESTRANHEZA

Perceber que os olhos

direcionados para às estrelas,

não é o presente que eles captam,

nem tão pouco o futuro,

mas o passado longínquo;

luzes emitidas

antes da minha existência,

e que por puro acaso,

os meus olhos as captam,

essas mortas viajantes;

em segundos apreendo a morte,

a tantos anos luz.

Apurar a contundência do Nada

de que somos herdeiros,

humano morrer é assustador.

Seriamos o Nada,

mesmo se como estrelas

morrêssemos,

viajando em forma de luz,

no fluxo infinito do universo.

Somos um corpo opaco.

Somos filhos póstumos.

Morrer para o homem,

é uma sentença sem pós.

08 junho 2009

OBSTÁCULOS

Cristóvão buscava
a Cidade do Céu.
Pintada pela pena de Marco Polo.
Saiu o genovês navegando
para o ocidente.
Mas, como tudo na vida:
tinha uma pedra no meio do caminho.

27 maio 2009

PARODIANDO

SAÍNDO DA CAVERNA

Até alguns anos atrás eu vivia presa no fundo de uma caverna, imobilizada pelas correntes que me atava, a olhar sempre para a parede em minha frente. Enxergava apenas as sombras dos objetos, que alguns prisioneiros carregavam para lá e para cá, sobre suas cabeças: estatuetas de homens, de animais, vasos, bacias e outros objetos. Estas sombras surgiam e se desfaziam diante de mim. Acreditava que as imagens fantasmagóricas que apareciam diante de meus olhos eram verdadeiras, tomava esses espectros pela realidade. A minha existência era inteiramente dominada pela ignorância. Estava condicionada pelo lusco-fusco da caverna, crendo, iludida que as sombras eram realidade.

Entretanto um dia, um Sábio, de uma das mais sublimes artes: a literatura, entrou dentro da caverna e libertou esta pobre diaba de sua pesarosa ignorância e me levou com todo o cuidado para longe daquela caverna.

Num primeiro momento, quando cheguei do lado de fora, nada enxerguei, os meus olhos doíam pela extrema luminosidade do sol. Mas depois, comecei a desvendar aos poucos, com a ajuda daquele Sábio, as manchas e as imagens. Hoje sei que é doloroso chegar ao conhecimento e que tenho que percorrer caminhos bem definidos para alcançá-lo. Sendo preciso, que eu a todo instante rompa a inércia da minha ignorância e isso, requer muitos sacrifícios.

Ainda me encontro, na primeira etapa que passa os que saem da caverna. Não consigo captar na totalidade a realidade. Vejo apenas algo impressionista flutuar na minha frente, mas persisto com um olhar inquisidor, na tentativa de ver o objeto na sua integralidade, com os seus perfis bem definidos. Na tentativa de atingir o conhecimento, de ficar extasiada ao me deparar com um outro mundo, totalmente oposto ao do subterrâneo em que fui criada.

Desejo que o universo da ciência; das artes, principalmente a literatura e do conhecimento geral se escancarem perante a mim, para que eu possa então vislumbrar com o mundo das formas perfeitas.

Não quero mais pertencer ao território do homem comum, presa às coisas do cotidiano. Prefiro ser hostilizada por eles, que não acreditem em mim, que imaginem ser eu uma excêntrica, uma extravagante, uma retardada. Formas estas, que são tratados aos que saem da caverna e tentam dizer o que descobriram fora dela.
Justificar

20 setembro 2008

MEUS POEMAS FAVORITOS

O ÚNICO

O único assunto é Deus

o único problema é Deus

o único enigma é Deus

o único possível é Deus

o único impossível é Deus

o único absurdo é Deus

o único culpado é Deus

e o resto é alucinação

Carlos Drummond de Andrade (As impurezas do branco)

01 dezembro 2007

09 setembro 2007

IDÉIAS PARA SE PENSAR E FAZER UM BRASIL MELHOR I

Judiciário: idéias colhidas da entrevista concedida e publicada pelo jornal o Globo no dia 27/05/2007, do Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, Rodrigo Collaço:

“A sociedade tem razão de cobrar, porque realmente não tem havido julgamento em tempo razoável dessas causas (causas que envolve corrupção)”.

“Os juizes precisam ser independentes para julgar, mas o Judiciário não precisa ser independente do sentimento do povo”.

PROPOSTAS

“O poder judiciário deve ter política judiciária para fazer frente as demandas da sociedade, por exemplo, julgamento de processos que dizem respeito a corrupção”.

“Existem experiências positivas. Uma delas é a do Rio Grande do Sul, onde há uma câmara especializada do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos e vereadores. Não há estado no país que tenha mais prefeitos e vereadores punidos que o Rio Grande do Sul, porque lá houve especialização e os desembargadores têm apoio técnico no tribunal para julgar esses casos.”

“A gente percebe que a elite brasileira nunca se preocupou com a exposição do preso de calção, sem camisa, sendo puxado pelo cabelo para ser exposto à televisão. Agora, com a mudança de foco da polícia, as pessoas começaram a se questionar se não deve haver proteção da intimidade. As pessoas passam a ter uma conduta diferente porque estão, sendo atingidos segmentos que eram protegidos pela polícia e pelo judiciário.”

31 agosto 2007

A DITADURA DO MÉTODO

No Brasil, um dos principais conflitos, não explicitados, que se manifestam na educação é entre professores e os ditos especialistas que atuam na educação (pedagogos, psicólogos, supervisores, inspetores, etc). A causa principal dessa desavença é quanto ao método, que em vez de ser utilizado pelo professor de acordo com seus interesses pedagógicos ou mesmo pela afinidade que tem com um ou outro método, é imposto a ele pelas instituições de ensino, visando homogeneizar o “processo de aprendizagem” dos seus alunos.

É intensamente divulgado aos profissionais de educação, ficando até saturado a expressão, que a “missão fundamental de quem ensina é ajudar os alunos a pensarem por si próprios”. Fico pensando como! Pois se não é permitido a liberdade ao professor de escolher quais as estratégias, métodos, a didática mais adequada para ensinar determinado conteúdo, como ele poderá ensinar algo que ele não tem? A liberdade da escolha desses processos que envolvem a mediação do conhecimento do professor para o aluno é tão importante quanto a liberdade teórica da discussão entre docente e o discente dos conteúdos em que o professor é especializado. Uma expressão colhida num dos livros estruturadores do pensamento ocidental, pode representar bem esse imbróglio educacional, implantado com a supremacia dos especialistas sobre o ato de ensinar: “por ventura pode um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco?”[1] que é a meu ver essa expressão muito bem representada pelo quadro de Pieter Brueghel (ao lado).

Os professores reclamam e com razão que especialistas que nunca pisaram numa sala de aula, porém dominam um certo número de teorias que norteiam os rumos da educação, tiraram-lhes a liberdade. Liberdade que é a essência da profissão do professor, se ele não se sentir livre para ensinar, dificilmente os objetivos serão atingidos.

O que é mais grave, é que normalmente esses especialistas, com respaldo institucional, impõem ao professor o método da moda, ou aquele com a qual a instituição sente certa afinidade. Em contrapartida os especialistas, juntamente com as faculdades de educação, fincam pé nas suas “verdades absolutas”, partem para desqualificação dos professores que reagem a ditadura do método de ensino, ou são indiferentes a eles. Aí o resultado é esse que nós estamos acompanhando de camarote, dentro e fora das escolas.

Logo, percebe-se que esses profissionais não se entendem, um acha que manda e os outros fingem que obedecem e os alunos no meio disso, principalmente aqueles que não querem saber de nada, infelizmente a grande maioria, saem ano após ano tão ignorante quanto quando entraram na escola.

Professor que é professor não precisa de nenhuma babá pseudo-intelectual direcionando o seu trabalho. Ele é capaz de discernir qual o método é mais adequado para utilizar em sala de aula. Os profissionais da educação, devem ser suporte para esse professor e para os alunos. Os atores principais são professor e alunos o resto são apenas coadjuvantes do processo educacional. Porém quando tentam assumir um papel que não lhes são oportunos a educação sai perdendo em muito. E com isso toda a sociedade.

Vamos fazer uma analogia: um hospital, um médico, um paciente. De repente, José (paciente) não se sentindo bem, resolve procurar um hospital e marca uma consulta com um especialista. É atendido e o médico utiliza todos os procedimentos que ele julga necessários para curar o José. Até aqui tudo bem, não é! Pois vejamos o que poderia acontecer com José se neste tripé fosse aplicado o princípio gerencial atual que é aplicado nas escolas, com alunos e professores. José procura o hospital, marca a consulta com determinado especialista, este lhe atende, faz o diagnóstico, vêm um monte de especialistas, que não são médicos, e obrigam o médico que atendeu José a adotar determinados procedimentos. Esses procedimentos foram homogeneizados para todos os pacientes que qualquer médico venha atender, ou seja, é como indicar uma única medicação independente da moléstia que o paciente apresente. Se um paciente encontra-se num quadro de hipertensão e um outro tem câncer, os médicos, mesmo tendo especialidade distinta são obrigados a utilizar os mesmos medicamentos, os mesmos exames, o mesmo tratamento. Entendeu o que vem ocorrendo nas escolas brasileiras já há muito tempo?

Uma solução simples para isso é proporcionar a liberdade essencial para o professor de utilizar o método que lhe for mais conveniente. Quanto aos especialistas que vão para a sala de aula dos cursos de formação de professores e aplicam lá o método que desejarem. Isso é a chamada práxis.

[1] Novo Testamento, Lucas, 6:39.

08 julho 2007

A MORTE POR INANIÇÃO INTELECTUAL DE UMA CIÊNCIA



A antropologia, dentro dos diversos modelos de análise que desenvolveu ao longo de sua estruturação epistemológica, chegou a conclusão que não é prudente fazer a análise de um ‘objeto’ fora do seu contexto. No entanto, não acatarei essa premissa. Farei a crítica do vídeo aqui exposto, desconsiderando todo o seu contexto, do qual desconheço. Por este motivo poderei cometer equívocos, porém ao assisti-lo vi que era um bom exemplo para discorrer sobre os erros cometidos pela psicologia, o que vem fazendo com que perca a sua identidade, e o pior, passando a atuar de maneira banalizada e medíocre.

Ao ver o filme tive um acesso de horror, misturado com pena e decepção. Espera-se que um psicólogo, ao fazer uma intervenção num grupo, que tenha o mínimo de compreensão sobre os indivíduos do qual vai atuar. Quando vejo como se trabalha com grupos que se encontram dentro de instituições, muitas vezes desprovidos de tantas coisas essenciais e simples, no caso de asilos, por exemplo, é muito comum, perceber-se com poucos minutos de observação, como normalmente são grupos fragmentados. Eles se isolam do contato entre eles próprios.

No entanto, com o intuito de inverter esse quadro, muitos profissionais da psicologia costumam ignorar que nós seres humanos vivemos fases de vida, e isso é muito significativo para a nossa subjetividade. Não há coisa mais grotesca com o sujeito que ignorar isto. As crianças querem ser crianças; os adolescentes querem ser adolescentes; adultos querem ser adultos; e quando chega-se na velhice, o saudável é que se valorize essa nova etapa da evolução do indivíduo. As pessoas ao confundir, muitas vezes, velhice com morte e decadência procuram criar alternativas que exclua essa etapa da vida e passam a sugerir a regressão às pessoas, para um tipo, principalmente, adolescente contemporâneo. Traduzindo a mensagem que pude perceber com o vídeo, “olha, esqueça a velhice e vamos ser eternamente jovens”.

Eu duvido muito que esses senhores e senhoras que aparecem no vídeo, se fosse perguntados que tipo de comemoração que gostariam de fazer, se eles sugeririam esse tipo de festa que foi apresentada. Eles têm uma história do qual viveram e vivem e com certeza gostariam de expressá-la, porém são coibidos dentro desse modelo de sociedade de viver essa fase, junto com outras gerações, pois a velhice incomoda os jovens e os adultos e eles não querem saber de nada que os façam lembrar dela. O asilo é na verdade um local de exclusão de um fato que a nossa sociedade não suporta: a finitude. E como se confunde velhice com isso, escolheu-se um lugar em que pudessem afastar para bem longe a realidade que tanto se ignoram. Desta forma, senhores e senhoras são coagidos em nome da inclusão, a passar por esses constrangimentos de dançar um protótipo da "dança da garrafa brasileira".

A principal ferramenta de trabalho do psicólogo é a escuta. Porque é por meio dela que se pode compreender o sujeito, e assim, a partir daí, indicar algumas alternativas que visem a promover o potencial individual de cada um. O papel do psicólogo num primeiro momento é anular-se como sujeito, colocar-se em condições de igualdade ao sujeito ou grupo que se apresenta, para desta maneira iniciar o tratamento ou a intervenção. E não ficar reproduzindo estereotipo que a tantos faz sofrer, ao invés de libertar as pessoas, aumentam ainda mais o número de algemas.

É lamentável, mas a psicologia vem prestando um desserviço às pessoas.