"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

04 setembro 2005

CARTAS DE VINCENT A THÉO


Amsterdam, 3 de abril de 1878

Théo,

Voltei a refletir sobre a nossa conversa, e involuntariamente meditei nas palavras: “Somos hoje o que éramos ontem”. Isto não significa que se deva marcar passo, e não tentar desenvolver-se, ao contrário, há uma razão imperiosa para fazê-lo e para buscá-lo.

Mas para permanecermos fiéis a estas palavras, não podemos recuar, e quando começamos a considerar as coisas com um olhar livre e confiante, não podemos voltar atrás nem hesitar.

Os que diziam “nós somos hoje o que éramos ontem” eram “homens honrados”, o que se depreende claramente da constituição que redigiram, que subsistirá por todos os tempos, e da qual se disse que tinha sido escrita “sob as emanações do céu” e “com uma mão de fogo”. É bom ser um “homem honrado” e procurar sê-lo cada vez mais, e fazemos bem em acreditar que para isto é preciso ser “homem introspectivo e espiritual”.

Se tivéssemos a convicção de pertencer a esta categoria, seguiríamos nosso caminho com calma e confiança, sem duvidar do bom resultado final. Havia um homem que certo dia entrou numa igreja e perguntou: “Será possível que o meu zelo tenha me enganado, que eu tenha tomado o mau caminho e que continue errado? Ah! Se eu me livrasse dessa incerteza e se pudesse ter a firme convicção de que acabaria por vencer e alcançar êxito”. E uma voz então lhe respondeu: “E se tivesses essa certeza, que farias então? Faças portanto como se a tivesses, e não serás perturbado”. O homem então continuou seu caminho, não mais incrédulo, mas crente, e voltou à obra, sem duvidar nem hesitar mais. No que se refere a ser “homem introspectivo e espiritual”, será que não poderíamos desenvolver em nós este estado pelo conhecimento da história em geral e de determinadas personalidades de cada época em particular, desde a história sagrada até a da Revolução, e desde a Odisséia até os livros de Dickens e de Michelet? E não poderíamos tirar algum ensinamento da obra de homens como Rembrandt, ou das Ervas Daninhas de Breton, ou As Horas do Dia de Millet, ou o Benedicite de De Groux ou Brion, ou O Recruta de De Groux (ou senão de Conscience) ou Os Grandes Carvalhos de Dupré, ou até mesmo os moinhos e as planícies de areia de Michel?

Falamos bastante sobre qual é o nosso dever, e como poderíamos chegar a algo de bom, e chegamos à conclusão que nosso objetivo em primeiro lugar deve ser o de achar um lugar determinado, e uma profissão à qual possamos nos dedicar integralmente.

E acredito que estávamos igualmente de acordo de que o necessário é sobretudo ter em vista o objetivo final, e que uma vitória, após toda uma vida de trabalho e de esforços, vale mais que uma vitória obtida mais cedo.

Aquele que vive sinceramente e encontra aflições verdadeiras e desilusões, e que jamais se deixa abater por elas, vale mais que os que sempre vão de vento em popa, e que conheceriam uma prosperidade apenas relativa. Pois, em quem constatamos da maneira mais visível um valor superior, senão naqueles a quem se aplicam as palavras: “Lavradores,
vossa vida é triste, lavradores, vós sofreis na vida, lavradores, vós sois bem-aventurados”, senão naqueles que carregam os estigmas de “toda uma vida de luta e de trabalho suportada sem jamais se curvar”? É bom se esforçar em assemelhar-se a eles.

Avançamos portanto em nossa estrada indefessi favente Deo. No que me diz respeito, devo tornar-me um bom pregador que tenha algo de bom a dizer e que possa ser útil no mundo, e talvez fosse melhor eu conhecer em tempo relativamente longo de preparação, e estar solidamente confirmado numa firme convicção, antes de ser chamado a falar aos outros... A partir do momento em que nos esforcemos em viver sinceramente, tudo irá bem, mesmo que tenhamos inevitavelmente que passar por aflições sinceras e verdadeiras desilusões; cometeremos provavelmente também pesados erros e cumpriremos más ações, mas é verdade que é preferível ter o espírito ardente, por mais que tenhamos que cometer mais erros, do que ser mesquinho e demasiado prudente. É bom amar tanto quanto possamos, pois nisso consiste a verdadeira força, e aquele que ama muito realiza grandes coisas e é capaz, e o que se faz por amor está bem feito. Quando ficamos admirados com um ou outro livro, por exemplo, tomado ao acaso: A Andorinha, A Calhandra, O Rouxinol, As Aspirações do Outono, Daqui Eu Vejo Uma Senhora, Eu Amava Esta Pequena Cidade Singular; de Michelet, é porque estes livros foram escritos de coração, na simplicidade e na pobreza de espírito. Se só pudéssemos dizer umas poucas palavras, mas que tivessem um sentido, seria melhor que pronunciar muitas que não fossem mais que sons vazios, e que poderiam ser pronunciadas com tanto mais facilidade, quanto menos utilidade tivessem.

Se continuarmos a amar sinceramente o que na verdade é digno de amor, e não desperdiçarmos nosso amor em coisas insignificantes, nulas e insípidas, obteremos pouco a pouco mais luz e nos tornaremos mais fortes.

Quanto antes procurarmos nos qualificar num certo ramo de atividade e numa certa profissão, e adotarmos uma maneira de pensar e de agir relativamente independente, e quanto mais nos ativermos a regras fixas, mais firme se tornará o caráter, sem que para isto tenhamos de nos tornar limitados.

E é sensato fazer estas coisas, porque a vida é curta e o tempo passa depressa; se nos aperfeiçoamos numa única coisa e a compreendemos bem, alcançamos além disto a compreensão e o conhecimento de muitas outras coisas.

Às vezes é bom ir ao fundo e freqüentar os homens, e às vezes somos até obrigados e chamados a isto, mas aquele que prefere permanecer só e tranqüilo em sua obra, e não quer ter mais que uns poucos amigos, é quem circula com maior segurança entre os homens e no mundo. È preciso não se fiar jamais no fato de viver sem dificuldades ou sem preocupações ou obstáculos de qualquer natureza, mas não se deve procurar ter uma vida muito fácil. E mesmo nos ambientes cultos e nas melhores sociedades e circunstâncias mais favoráveis, é preciso conservar algo do caráter original de um Robinson Crusoé ou de um homem da natureza, jamais deixar extinguir-se a chama interior, e sim cultivá-la. E aquele que continua a guardar a pobreza e que a preza, possui um grande tesouro e ouvirá sempre com clareza a voz de sua consciência; aquele que escuta e segue esta voz interior, que é o melhor dom de Deus, acabará por encontrar nela um amigo e jamais estará só...

Que seja este o nosso destino, meu rapaz, que teu caminho seja próspero, e que Deus esteja contigo em todas as coisas e te faça triunfar, é o que te desejo com um cordial aperto de mão em tua partida.

Teu irmão que te ama,

Vincent
Vincent Van Gogh – Cartas a Théo.

2 comentários:

Anônimo disse...

que belo.

Anônimo disse...

Incompreendido e a frente do tempo, a frente até mesmo de nós, seu amor ao belo e seu modo de enxergar a vida em tons e fluidez tem muito a dizer até hoje.