"Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor". João Guimarães Rosa

10 outubro 2004

AINDA SOBRE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO: O SEU ESTILO LITERÁRIO – A CRÔNICA


A Crônica: Um gênero menor?

"É um gênero literário que tem assumido no Brasil, além da personalidade de gênero, um desenvolvimento e uma categoria que fazem dela uma forma literária de requintado valor estético, um gênero específico e autônomo.
Realmente, se algo existe em nossa literatura, que pode ser tomado como exemplo frisante da nossa diferenciação literária e lingüistica, é a crônica. Dificilmente poderá apontar-se coisa parecida, mesmo na literatura portuguesa, a uma crônica de Rubem Braga. E este autor ainda apresenta esta singularidade: é um grande escritor que entra para a história literária exclusivamente como cronista. Fato singular da literatura brasileira atualmente. Como fato muito significativo é a posição da crônica, sua importância, o grau de perfeição a que atingiu, depois de longa evolução através da qual se especializou, se desenvolveu uma forma literária específica, inclusive com um estilo próprio, uma maneira peculiaríssima.
Em primeiro lugar, é mister ressaltar a natureza literária da crônica. O fato de ser divulgado em jornal não implica em desvalia literária do gênero. Enquanto o jornalismo tem no fato seu objetivo, seu fim, para a crônica o fato só vale, nas vezes em que ela o utiliza, como meio ou pretexto, de que o artista retira o máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espirito, de sua graça, de suas faculdades inventivas. A crônica é na essência uma forma de arte, arte da palavra, a que se liga forte dose de lirismo. É um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima, ante ao espetáculo da vida, as coisas, os seres. O cronista é solitário com ânsia de comunicar-se. E ninguém melhor se comunica do que ele, através desse meio vivo, álacre, insinuante, ágil que é a crônica. A literatura, sendo uma arte – cujo meio é a palavra – e portanto oriunda da imaginação criadora, visando a despertar o prazer estético – nada mais literário do que a crônica, que não pretende informar, ensinar, orientar. E tanto ela não é indissoluvelmente ligada ao jornal, que esse prazer decorre da sua leitura mesmo em livro.
Outra característica é a natureza ensaística da crônica. É claro que se deve, para compreendê-la, distinguir o ensaio formal, crítico, biográfico, histórico, filosófico, discursivo, e que entre nós vai ficando sinônimo de estudo, e o ensaio informal, familiar, coloquial, em que são exímios os ingleses. Pois bem, esse último tipo confunde-se pelas suas características com a nossa crônica. Basta compararmos os pequenos ensaios de Steele, Addison, Hazlitt, Lamb, Chesterton, e outros da numerosa família inglesa, com a página de nossos cronistas, para vermos os seu parentesco. Evidentemente, não teremos que mudar de nome, pois é interessante a especialização da palavra "crônica" em português para designar o gênero. Pois, como se sabe, o sentido antigo da palavra, que vigorava no renascimento por exemplo, e ainda é corrente em outras línguas neolatinas, fazia da crônica um gênero histórico. Crônica, cronista (do grego cronos, tempo) relacionavam-se com o relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar. Desapareceu esse conteúdo, ficando a palavra para designar as pequenas produções em prosa, de natureza livre, em estilo coloquial, provocadas pela observação dos sucessos cotidianos ou semanais, refletidos através de um temperamento artístico.
De qualquer modo, o que se deve ressaltar é a importância que o gênero vem assumindo em nossa literatura. A crônica tem que valer-se da língua falada, coloquial, adquirindo inclusive certa expressão dramática no contato da realidade da vida diária.
As dificuldades em classificar a crônica resultam, como acentuou Eduardo Portela, do fato de que ‘tem a caracterizá-la não a ordem ou a coerência mas exatamente a ambigüidade’, que ‘não raro a conduz ao conto, ao ensaio por vezes, e freqüentemente ao poema em prosa’. A crônica, insiste o mesmo crítico, vive presa ao dilema da transcendência e do circunstante. As suas condições jornalísticas e sua base urbana tem que ser superadas para que ela ganhe em transcendência, seja construindo ‘uma vida além notícia’, seja enriquecendo a notícia ‘com elementos de tipo psicológico, metafísico’ ou com o humour, como Carlos Drummond de Andrade, seja fazendo ‘subjetivismo do artista’, ‘o seu universo interior’, sobrepor-se ‘a preocupação objetiva do cronista’, como Rubem Braga e Ledo Ivo."
Afrânio Coutinho – A Literatura no Brasil – 2º edição, vol. IV, pág. 77-78

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